* Victor Nogueira
Évora - Café
Arcada – interior
Eis aqui o mítico "Café Arcada".
Não se vê a porta giratória nem a tabacaria, à entrada, à esquerda. Fora, nas
arcadas, ficava a banca da velhota dos jornais. Na foto, dentro e à direita, o
balcão da pastelaria. Ao fundo, não me lembro se à direita, se à esquerda,
sobre-elevada, a barbearia. Descendo as escadas, à esquerda, o restaurante e os
WC, estes com velhote/a que viviam das gorjetas.
Penso que naqueles tempos os empregados de café - como os taxistas - só viviam
das gorjetas. Na foto não se vê o senhor Jaime, o engraxador, que surge nos
meus escritos tal como a vendedora dos jornais. Ao fundo, subindo as escadas,
desembocava-se na estreita rua da Alcarcova de Cima, que liga a Praça do
Sertório à antiga rua da Selaria (actual 5 de Outubro). Na foto não se veêm as
enormes ventoinhas no tecto, que nada refrescavam no verão. (2014.12.16)
1969
Encontro-me no vozear barulhento
do Arcada, onde a porta gira continuamente. "Adeus oh escriturário!" As
primeiras e únicas palavras que alguém me dirige, além do "obrigado" do
criado, perdão, do empregado, quando lhe paguei o garoto claro e lhe dei cinco
tostões [1969]. Mas as palavras do [Jacinto] Morte passaram como a chuva
escorrendo pela minha gabardina branco sujo, como o [António] Campos, que diz
poesia muito bem e que esteve em Luanda. A cadeira defronte a mim continua
vazia, apenas ocupada com o "chamberlain" [guarda-chuva]
e a gabardina. ( ) (POE - 1969.03.16)
1971
O ar abafado, a vozearia
imperceptível, mas não inaudível, enchem o café Arcada, para onde vim estudar
(...) É um domingo indefinido, um começo de tarde. (...) O café está cheio, na
sua grande maioria homens na casa dos quarenta, que cavaqueiam. Logo, a meio da
tarde, a clientela será diferente: os homens trarão as esposas e a prole. Nos
outros dias apenas as [mulheres] mais "evoluídas" aqui
virão. Mas são já muitas mais do que antigamente, se a memória me não atraiçoa.
(...) Olho à minha volta e vejo malta conhecida: além, o Morte que me acena,
como o Calisto, que há muito não via. O namorado da Gabriela discute
acaloradamente e o senhor D. Alexandre de Lencastre conversa com dois amigos
(sê-lo-ão?), que falam também com a cabeça e as mãos. Aqui, à minha esquerda,
está o velhote pequenitates que anda à Charlot; costuma pôr uma flor no copo de
água que normalmente acompanha a bica, fala em verso - os dois últimos primam
quase sempre pela falta de rima e métrica - e oferece moedas da sua colecção às
personalidades importantes que passam por Évora e às caras bonitas. Fala com
toda a gente e não sei se falará com alguém. Quando regressei de Luanda reparou
que eu tinha rapado a barba... largos meses depois do acto solene que me tornou
irreconhecível ao espelho, provocando-me, durante alguns dias, ataques de
hilaridade frente àquela face rejuvenescida e francamente risonha, sem o
sorriso voltaireano que dizem ser o meu - irónico e trocista -
de que muitas vezes me apercebo mas não contenho, mesmo nos momentos mais
solenes e sérios, de gravidade de circunstância. (...) O ar está [agora]
pesado; olho à minha volta e há clareiras na humanidade que me cercava. O relógio,
sobre a mesa, diz-me faltarem quinze para a uma. Horas de ir até lá fora,
apanhar um pouco de ar antes de regressar a casa para o almoço (NSF -
1971.01.31)
1972
Abraça por mim a malta da mesa do
café Arcada, companheiros das horas vazias. Como estas no Porto, aguardando os
exames de Fevereiro. Um abraço especial para a Guida [Morgado] e para a "terrorista" que
é a Zeca. ( ) (Lídia - 1972.01.01)
Estou no café, no
"velho", barulhento
e de ar viciado que é o Arcada. Deixei os jornais em cima de uma mesa, para
marcar o lugar, enquanto ia à tabacaria comprar uma folha de papel. (...) Ao
regressar encontrei um moço a folheá-los muito descontraidamente. Devia ser dos
Regentes Agrícolas. Que ficou algo atrapalhado e balbuciou pensando serem do
café. Que não acabou de lê-los, apesar da minha cordialidade. Enquanto escrevo
vou bebendo o galão
e comendo a sanduíche de fiambre, acto quotidiano das 17 horas. Na
sala meio cheia umas pessoas conversam, outras leem os jornais da tarde, alguns
estudam, uns olham simplesmente para coisa nenhuma, embrenhados sabe-se lá em
que pensamentos. Reconheço alguns, poucos, companheiros indiferentes, quase
móveis da casa. Dos outros, é de assinalar o seu mau gosto no vestir, fatos
escuros, a boina ou o chapéu de abas viradas para os olhos. Conversam com a
cabeça apoiada na mão, uns sorridentes, outros de rosto grave, testas
enrugadas. Por vezes recostam-se para trás nas cadeiras, outras juntam as
cabeças, convergindo para o centro da mesa, quais conspiradores. Olho à minha
volta e o café está [continua] meio cheio. O João Luís chegou e começou a
ler o jornal. Daqui a pouco chegarão o Camilo e o Carlos, que virão do exame.
Domingo Évora será um deserto, estupidificante. Eis que assomam à porta do café o Chico Garcia [seria o Chico Bellizzi ?] e o Manel. Ficaram‑se pelo balcão da pastelaria. Entretanto entra também o Álvaro Lapa, que é pintor, e corresponde cordialmente ao meu largo aceno. Entretanto o João Luís protesta porque não consegue ler o jornal; a mesa está desengonçada e tremeliques. (MCG - 1972.03.18)
Em Évora, novamente no café [Arcada], uma das três dominantes da
minha vida neste burgo perdido na imensa planície alentejana. Na mesa quadrada
de tampo encarnado, o habitual café com leite, o copo de água, os óculos, o
envelope e as folhas, meios de estar com os outros. O mesmo ar quente e
abafado, o ruído em surdina, a floresta de gente - forasteiros? - em torno de
mim. Naquela mesa as únicas caras conhecidas: o Dinis e o: Cachatra, pintor,
que esta tarde tem procurado impingir um dos seus quadros, aquele mesmo que tem
agora sobre a mesa. Cheguei de Beringel [onde moram os Brito Lança, tios do
Camilo] há umas cinco horas. (MCG - 1972.07.05) (
)
O café é um mar de gente
barulhentamente conversadora. As ventoinhas giram, mas nem por isso o ar está
mais fresco. Évora civiliza-se: conto cerca de dezoito elementos do sexo
feminino aqui no Arcada (minha pátria em terras alentejanas). O mundo caminha
para a perdição, diriam os "moralistas" de porta
para fora! (MCG - 1972.07.24)
Ouço o Zeca Afonso e daqui a
pouco vou até ao Arcada, dar dois dedos de conversa ao Camilo, lanchar a sandes
de fiambre, galão claro e iogurte habituais, e dar uma vista de olhos pelos
jornais da tarde. (MCG - 1972.09.22)
O Arcada é um mar de gente em burburinho,
uns lendo, outros comendo, outros escrevendo ou preenchendo sonhos de Totobola,
outros conversando com a língua e os dentes e os lábios e as mãos quando não
com o corpo inteiro. Do outro lado, além à minha esquerda, um homem está
sentado tirando dum saco de plástico algo cujo conteúdo lhe enche as mãos:
talvez moedas. Insólito, a seus pés, uma enorme e brilhante bacia de cobre
amarelado. O homem levanta-se - tem uma pasta de cabedal quase do seu tamanho -
pega na bacia e encaminha-se para a porta, por onde entra e sai muita gente,
com ar lento e vagaroso de quem nada tem para fazer. Lembro-me de há quatro
anos - ou mesmo há dois - e há muito mais mulheres e raparigas - algumas bem
giras por estas mesas. Évora "civiliza-se". Só a minha
hospedeira continua com as suas concepções retrógradas de outros tempos e
outras eras, que continuam [no fundo] a ser as de Évora. À minha direita dois
velhotes conversam: um deles conta qualquer episódio relacionado com a sua
estadia na Grande Guerra de 14/18. Olho à minha volta e o café está mais vazio;
não encontro o Camilo, que pela segunda vez passou há pouco além no corredor
central. Deve estar em dia não. Mais velhotes sentam-se ao lado da minha,
iniciando amena cavaqueira. Agora reparo que esta é a mesa deles. Adeus,
estudo. Um deles diz que os gajos da situação são os que mais maldizem o
Marcelo [Caetano] e os que mais o homenageiam. (MCG - 1972.09.28)
Estava eu para aqui alinhavando estas linhas (...) quando o Carlos me entrou pelo quarto dentro, com um "Ah! Estou muito cansado. Imagina lá que andei com o Camilo a ver monumentos; pela milésima vez fui ao Museu e à Sé". Sabes, por causa do Camilo andar na fase cultural! ( O menino agora anda a estudar latim, não conseguiu convencer qualquer de nós - eu e o Carlos - a acompanhá-lo em tão profundos estudos, mas nem por isso consegui escapar às longas dissertações ali à mesa do Arcada, especialmente quando descobriu um interlocutor: o Régua, que também estudou latim! (MCG - 1972.10.07)
Passei pelo café, que
estava vazio de quem me interessasse. Apenas a Lídia, o Tobias e o Luís, muito
entusiasmados porque em Évora "rebentara um golpe de estado" (!) O Tobias teria visto um movimento
desusado e aparatoso de polícias com capacetes de aço e metralhadoras
aperreadas nas imediações do Governo Civil. Para lá seguiu o grupo, mas sem
mim, pois tenho mais que fazer. Amanhã lerei os jornais e logo saberei. (MCG -
1972.12.15)
O Arcada hoje está impossível de
poluição, por causa dos alentejanos que hoje desceram ao povoado para
discutirem o preço do gado e o mais que não sei nem me interessa. (MCG -
1972.12.26)
1973
Chove. Está cinzento. A chuva faz
barulho no pátio. Amanhã é 3ª feira, o meu dia negro, pois a cidade - e o café
– [no Dia de S. Porco] enchem-se de alentejanos corpulentos,
solidamente parados no meio do caminho, de chapéu na cabeça e fatos escuros,
como se nada mais existisse no mundo senão as suas irritantes pessoas! Embora
cheia de gente, a cidade, para mim, está despovoada. Quando não estou na minha
torre (“cela”, como diz a D. Ilda)
ando por aí, pelo café, pelas livrarias, pelo Instituto [ISESE], quase sempre
(fingindo-me) muito atarefado. (NID - 1973 ?)
Vou até ao café lanchar e poluir
um pouco os pulmões. (MCG - 1973.01.24)
Quanto a mim, vou‑me embora p'rá reunião, com passagem pelo Café Arcada,
cheio de fumo e parecendo que nem mar de gente quando estamos no cimo das
escadas. (MCG - 1973.03.14)
Olho para os meus colegas e reparo que os tipos de Lisboa ainda não estão
de regresso. O filho - ou um dos filhos - do António Champalimaud - aluno do 1º ano, era um pratinho às 2.as
feiras, atrás do Veladas, alto, gordo, de cabelo alourado encarapinhado, para
este lhe tirar a falta. Uma cena perfeitamente risível. (MCG - 1973.04.02)
O dia hoje está maravilhoso e eu já me "averanei" no trajar. Évora está cheia de miúdas,
magotes delas, de fora, novinhas, que enchem as ruas e o Arcada, onde consomem
hectolitros de laranjadas e colas. (MCG - 1973.04.06)
O Arcada é um zum-zum de vozes e
louça e máquinas e cadeiras atiradas. Na mesa ao lado o Camilo delicia-se com
o "Ricardo III" do Shakespeare. De vez em quando
comunica-me um ou outro dos diálogos da peça. (MCG - 1973.06.08)
(...) Num ápice o Arcada enche-se. Terminaram as condecorações, os
toques de clarim e o desfilar das forças em parada. Já ontem se notavam muitos
forasteiros que de longes terras vieram até ao povoado. Além o senhor
Jaime abre e fecha os braços, como asas, enquanto vai dando lustro aos sapatos
de um cliente. Passam empregados com as bandejas cheias de chávenas, copos e
comes. O casalinho de namorados bebe chá com torradas. O mesmo que um casal já
caminhando para a meia idade aqui à esquerda, na mesa ao lado. Ele já acabou de
ler o Diário de Notícias (fraco gosto) e ela dá-lhe uma torradinha.
(...) O marinheiro levanta-se e parte. Afinal a bengala não é dele mas do amigo
que o acompanha. O senhor Tenente e o senhor Coronel cumprimentam-se, batem a
pala e apertam as mãos, enquanto as respectivas esposas se beijam. Na
carequinha do senhor Coronel o vinco na pele assinala a presença do boné, agora
sobre a cadeira. Entram pessoas de luto e há cumprimentos de mesa a mesa.
Precisava duma câmara de filmar. Sobre a minha mesa, "O
Século" (sabe) que dentro de dias será descerrada em Luanda uma
estátua ao Marcelo [Caetano]. Para além d'O Século a
lapiseira, um livro ("A Sociedade de Consumo") e o
porta moedas (agora é incómodo trazê-lo no bolso). (...) O Jorge apareceu ontem
pelo café, depois duma longa ausência. Mais velho, já não o miúdo que
conhecemos, agora com os ombros curvados, mostrando-nos os calos do trabalho de
servente de pedreiro. Gosto dele, mas não encontro nem os gestos nem as
palavras que lho digam. ( ) ( MCG - 1973.06.10)
De manhã fui até ao Jardim
[Público] e os meus passos levaram-me até ao campo de minigolfe. (...) Apesar
da minha propaganda ainda não arranjei ninguém para jogar comigo. O Carlos e o
Camilo só estão bem na poluição do Arcada. Quem lhes tirar a fumarada tira-lhes
a vida e o ser!!!
(…) Não se pode entrar hoje no
Arcada, cuja atmosfera deve ter muito pouco oxigénio, tornando-se assim
irrespirável. (XXX - 1973.07.03)
Este barulho do café cansa‑me e
dispersa‑me. Estou‑lhe demasiado sensível. O [Café] Portugal já tem
esplanada no passeio, mas o Betinho, dono do Arcada, deve andar em compressão
de despesas e o mar de gente daqui não se espraia pelo passeio. (...)
Entretanto mudei de mesa, estou agora na de tampo azul. O Chico Bellizzi sentou‑se
aqui, tomou uma limonada e agora aprecia o panorama em redor, enquanto assobia.
(MCG - 1973.07.08)
Greve dos Bancários em Évora? Nem cheiro dela! "Amanda‑se"
cada "boca" ali naquelas mesas do café que é impressionante. (MCG -
1973.07.16)
A mesa do café não é propriamente um local
de recolhimento e, em sentando‑se o primeiro, logo chegam os outros. Resultado: muitas vezes
os trabalhos têm de ser interrompidos. (MCG - 1973.11.12)
Ali ao
lado o Carmelo submete o Carlos a testes de inteligência. Pelas mesas vizinhas malta conversa ou
estuda; as vozes do Camilo e do João Luís sobressaem aqui na mesa atrás de mim.
(MCG - 1973.11.16
Levanto os olhos e vejo muitos
magalas, na sua farda verde oliva. Andam também pelas ruas, aos grupos,
espalhafatosos, como quem já tem o seu grão na asa. "Cheira-me" que
haverá dentro em breve mais um contingente para a guerra em África. Alguns
escrevem, curvados sobre o papel, a caneta firme na mão, como quem não está
habituado a frequentes escrituras. Parecem rapazes muito novinhos; uns
conversam, irrequietamente, outros têm um ar absorto, ausente.
O barulho invade-me e cansa-me.
Há pouco, dei de repente com um silêncio gradual, profundo. Levantei os olhos
do papel e era um magote de gente à volta duma mesa, em pé. Um silêncio em
crescendo gradual. Gente levantando-se, esticando o pescoço. Continuo a
escrever. Alguém se deve ter sentido mal, mas o meu curso de primeiros socorros
já tem oito anos. Um homem sai do meio do magote, os seus lábios mexem-se e
leio
"Desculpe-me" a mão passada pela testa como quem tem
suores ou tonturas. Sai pela porta giratória (há pouco atrás de mim) e perde-se
na noite das arcadas. (MCG - 1973.11.26)
O chão do café está um autêntico
chiqueiro. Juncado de papéis, beatas e fósforos. E terra. (MCG - 1973.11.27 A)
Comigo, aqui na mesa encarnada do
Arcada, após o jantar, a minha mãe e o Jorge, que trabalha como ajudante de
carpinteiro, vencendo uma jorna de 70 $ 00. Em Setúbal ganharia 120 $ 00, mas
os pais prendem no aqui no burgo [Évora] (...) O Camilo e o Carlos não
apareceram por aqui. O Jorge está aqui com uma conversa muito adulta, apesar
dos seus dezasseis anos. Ele agora está atrapalhado. Por causa da minha mãe
passou a tratar me por "senhor Victor" e por "vocemecê" [abandonando
o "Victor" e o "tu"] (...)
Perguntei ao Jorge se queria escrever qualquer coisa [para ti, nesta carta],
mas ele não quer, pois diz que parece mal a letra dele ao pé da minha de
doutor.
1974
(... ) E então, que me dizes ao
aumento do preço do petróleo e seus derivados? (Lá para Abril deve haver mais.
Olarilas!). A velhota dos jornais ali às portas do Arcada já desabafou comigo
esta manhã: não haver um raio que os partisse! Há 10 dias encomendara uma
garrafa de gás; está cozinhando a lenha. Que só na 3ª feira. "Os
patifes, os espertalhões, já sabiam disto e obrigam-me a pagar o gás mais
caro!" Como dizia o Carmelo, muito solene e sisudo na sua pose à
mesa do café: "Isto está cada vez pior!" (MCG -
1974.01.03)
O sol tenta romper o cinzento
carregado de chuva, mas em vão. Acordei hoje ao som de catadupas de água [à
tarde o sol descobriu e o céu azulou]. Quase um dilúvio que encherá ali a barragem
do Divor, livrando-nos da água sabendo a peixe. Já não era sem tempo. Chegámos
pouco antes das 22 horas. No Arcada o João [Garcia], a Filomena, o Camilo, o Zé
Pinto, o Ribeiro, o "Chinês" e o irmão cantavam em
coro desde as cantiguinhas da primária ("Ó Rosa, arredonda a
saia", "Tia Anica de Loulé"...) às excursionistas ("Santa
Catarina", "Rapsódia Portuguesa"...) passando por cânticos
gregorianos e pelos coros alentejanos e canções da Beira Baixa. Enfim, uma
grande audição, no café cheio e entretido com outros assuntos. (MCG -
1974.02.11)
Vim até aqui ao Arcada, muito
barulhento. Está um dia bonito, cheio de sol. Évora está cheia de miúdas,
aos bandos. (MCG - 1974.03.31)
É segunda-feira em Évora. o
Arcada vozento e cheio. Circundo o olhar e não reconheço a maior parte das
pessoas, que falam com grandes movimentos das mãos e do corpo - alguns - ou
lêem o jornal: "A Bola" ou "O Século”
Está um dia luminoso e soalheiro, este ano sem desfiles militares. Jovens
esquerdistas cá do burgo pretendiam organizar um comício anti-colonialista mas
parece-me que ficou tudo em águas de bacalhau (MCG - 1974.06.10)
Passei pelo café onde encontrei o João Luís, a Filomena, o Marçal. Fiquei
contente por vê-los mas já não é como antigamente. É como um fósforo que logo
se apaga. (...) A Filomena manda cumprimentos e isso faz-me lembrar que o mesmo
fizeram o Manuel Gonçalves (cada vez mais louco) e a mulher do Queiroga
(reaccionária em questões de namoros)
Évora é uma cidade estúpida. 6 meses de ausência (e se calhar a saturação de 6
anos) fazem-me ressaltar toda esta falta de dinamismo, de interesse, de
imaginação. É um encolher de ombros, um arrastar-se pelos cafés, um encostar-se
pelas paredes, um nada ter que fazer ou para onde ir. Uma perfeita
estagnação. (MCG - 1974.11.27)
1972
Dia de S. Pedro: uma pequena
pausa na leitura contrariada do cooperativismo agrícola, capítulo da Sociologia
Rural, parte ínfima da matéria de Sociologia II ... Estou envolto no vozear
barulhento neste fim de tarde, o ruído contínuo da máquina de café e da louça
na cozinha, o barulho dos carros ali na rua. Seguramente um contraste com a
Salvada, silenciosa nos seus ruídos campesinos, que o Pe. [Augusto] Silva tão
literáriamente descreve na sebenta, a propósito do meio físico rural: "O
citadino que chega ao campo é ordinariamente surpreendido pelo silêncio que aí
reina ou pelos ruídos novos que ouve (rumorejar das folhas, os gritos dos
animais, o canto das aves, etc.) Tem a impressão de respirar mais à vontade ou,
ao contrário, de ser surpreendido pelo vento, crestado pelo ardor do sol."Enfim,
o rapaz Silva saiu-me um "poeta". Esqueceu-se foi de
falar no maravilhoso céu estrelado [que vi em Beringel, estirado no terraço
duma casa que foi do Marquês de Minas] (..) [Entretanto] o ruído diminuiu,
sinal de que se aproxima a hora de jantar.(MCG - 1972.06.30)
1973
A tarde de hoje tem estado
verdadeiramente tempestuosa: vento ciclónico e chuva a cântaros. É um prazer
andar pelas ruas com o vento a bater na cara e o cabelo revolto. Mas desde há
uns largos momentos que me encontro no abrigo que é o café Portugal - hoje é 3ª
feira e o Arcada está poluído e barulhento. O vidro da montra, defronte do qual
me sentei, está embaciado, como se fosse nevoeiro, e as pessoas que passam,
correndo ou vergadas sob os guarda‑chuvas abertos são sombras fantasmagóricas,
como as luzes do outro lado da rua. Na mesa ao lado o Camilo escreve. Deve ser
o 3º testamento, nesta tarde. (...) . (MCG - 1973.01.16)
Aqui estou no café, hoje no
Portugal. São dez da manhã. (...) O empregado acabou de pôr‑me aqui a sandes de
fiambre e o galão. Já não posso ver o pão seco com manteiga mais o copo de leite em casa da D.
Vitória. Nem o frango de aviário ou o bife (!) com arroz e batatas fritas ou as
batatas fritas com fiambre e ovo. Que falta de imaginação, quanto mais não seja
na apresentação. Claro que também já deito pelos olhos sandes de fiambre,
abomináveis pregos no pão, galões claros, copos de leite frio.
O café está quase vazio, com um
velhote aqui e além lendo o jornal ou rapazes estudando. Para lá das amplas
montras passam pessoas, umas lentas, outras apressadas, umas sozinhas, outras
conversando, olhando em frente ou de olhos fitos no chão. (MCG - 1973.06.28 A)
Isto é que hoje foi um DIA!... Uma trovoada mesmo por cima da
cidade: relâmpago, trovão e corte momentâneo e breve da electricidade eram
simultâneos, iluminando e escurecendo o "Portugal". Então e os aguaceiros? Vá lá, que o céu
está a descobrir. (MCG - 1973.07.10)
1973
Chegou agora o Guerreiro, mas vai
lendo os vespertinos para se pôr em dia. Assisti ontem, como não podia deixar
de ser, ao discurso do Marcelo Caetano
sobre o Ultramar Português, na sequência dos incidentes verificados em Lisboa
na Capela do Rato, após a atitude
tomada por um grupo de católicos - chamados progressistas - sobre a paz - e as
consequências da guerra colonial. (...) Pois o discurso do 1º Ministro foi
atentamente escutado pela audiência ali do Café Alentejo onde vejo o pouco que
me interessa na TV. Escutado atentamente mas não reverentemente. Um discurso
notável pela sua construção, pelo encadeamento (embora falacioso) das ideias e
factos, pela sua poesia ("Que bom
poder ser moralista...", faz-me lembrar um dos poemas dum dos
heterónimos do Fernando Pessoa, pela deturpação dos factos e pela demagogia.
Nem o tom nem o tema me surpreenderam. Parece um facto que o Governo Português
procura uma solução política para o problema colonial. (MCG - 1973.01.16)
1973
E eu, que até já estava a
habituar-me ao sossego dumas férias em Évora: levantar, uma volta pela cidade
com passagem pelo [apartado] 65, umas leituras de estudo, almoço, uma ida até à
Nau [na parte nova da cidade], mais
modernizada que o Arcada e parecendo uma cervejaria em Luanda, pelas casas,
pelas ruas desafogadas, pelos rapazes e raparigas menos "cinzentos" que os de cá de cima, mais umas leituras e
uns inquéritos - o cinema é que está mau porque não tem corrido nada de jeito. (MCG - (1973.04.12)
1973
Na pequena salinha do café
do senhor Gonçalves (é outro que não o da Raymond Street) alguns clientes
assistem à televisão ali por cima do balcão: o Jorge Alves apresenta o programa
da próxima semana. O [Emídio] Guerreira queixa‑se que a sopa está quente (...).
Comecei hoje a comer aqui neste café, junto ao jardim infantil, entre a Praça
de Touros e o Rossio [de S. Brás]. O almoço estava saboroso. Esperemos que
assim continue. Ali numa mesa ao lado um grupo de jovens vê uma colecção de
fotografias pornográficas, que de vez em quando mostram a outros noutra mesa,
cruzando o meu campo de visão. Entretanto a TV transmite um documentário sobre
a guerra israelo-árabe, prendendo a atenção dos clientes. (...) Na televisão
sereias soam numa cidade síria, sobrevoada por aviões israelitas que a
bombardeiam. Escombros e feridos enchem o ecrã. (MCG - 1973.11.21)
São 20:30; aqui estou [em Évora]
no café Parque, um bocadinho contigo, a televisão trabalhando e homens ao
balcão conversando e bebendo a bica. Ali a minha mãe faz as contas com a sra.D.
Alice [Quaresma], das refeições na messe [dos oficiais]. Estava eu aqui muito
bem acabando o meu jantar com o João Luís Garcia e o Emídio Guerreiro quando
elas irromperam por aqui adentro. A Maria Antónia - penso que é o nome da
cozinheira - muito delicada e sorridente, "recebe
as ordens". Sou levado a concluir que tem qualquer preconceito contra
os homens, pois nunca lhe ouvimos nem saudação ou vislumbrámos um sorriso. (MCG
- 1973.12.04)
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