sexta-feira, 14 de agosto de 2020

a música nas cartas e o quarto do estudante, em évoraburgomedieval

* Victor Nogueira


Música
1969

Ouço o Concerto nº 1 para piano, de Tchaikowski. Os sons desprendem‑se em cavalgada, saem do piano pelo alto-falante, umas vezes de mansinho, outras violentamente, elevam‑se, envolvem‑nos, penetram em nós e arrebatam‑nos. Neste momento os violinos dialogam com o piano, tentam impor‑se‑lhe, este assemelha‑se a um riachozito saltitante. A voz daqueles eleva‑se, tentam emudecê‑lo. Os violinos perdem a sua delicadeza, tornam‑se autoritários. Abafam o piano, o frágil, quem diria, piano! Veio a calma. Lentamente, a medo, uma flauta tenta quebrar o silêncio. Outras vozes vão‑se‑lhe juntando. Violinos e piano restabelecem o diálogo, secundados por outros elementos. Há uma quietude no ambiente. Uma voz grave, que não identifico, surge. O piano saltita pelo riacho, de pedra em pedra, apressa‑se, corre ligeiramente pelos prados. Os outros seguem‑no. Os sons misturam‑se, elevam‑se em cascata. O diálogo repete‑se serenamente, em espiral. Termina mais uma cena.
Silêncio. Violência. Brusquidão. Violinos e piano defrontam‑se de novo. Implacavelmente o piano tenta impôr-se. Consegue, com alguma luta. Os violinos aceitam a derrota e rendem‑lhe homenagem. Ele aceita‑a do alto da sua vitória. Os sons ora dialogam, ora competem entre si. Os violinos são os árbitros. Parece que nada mais pode deter o piano, soltito, com ternura, com delicadeza, umas vezes, com altivez, outras. Ah! os outros silenciaram‑no.  Mas ele debate‑se, liberta‑se, corre, surdo à majestade dos violinos. Está sozinho. É perseguido, tenta fazer‑se ouvir. Mas é tarde! Este final soberbo, empolgante, arrebatador! (NSM - 1969.01.23)

O rádio transmite neste momento a valsa O Danúbio Azul [de J.Strauss]. E eu deixo‑me levar na onda dos seus acordes, vogando liberto deste quarto deserto. Mas a valsa terminou e alguém pediu um disco dum tipo qualquer que pede à querida que  relembre os momentos felizes, para que ele possa esquecer todo o seu amargor. É o programa do Matos Maia. A malta telefona, repete uma frase publicitária, pede um disco e, frequentemente antes de desligar, pergunta: "Posso dizer o meu nome?" E ficam todos felizes da costa ! ...  Pobres pessoas que se contentam com tão pouco! (ASV - 1969.02.29)
Neste momento ouço um disco da Rita Olivais. As músicas são calmas, repousantes. Parece que os sons musicais vão caindo ou talvez brotando de alguma saída. Os poemas, quanto a mim, nada de especial têm. Mas alguns dos versos, a forma como representam as ideias, são, a meu ver, felizes. E a música valoriza‑os bastante.
O disco terminou e surge agora o Adriano Correia de Oliveira. Os versos dele são um pouco diferentes. Ou não fossem muitas das letras do Manuel Alegre. Mas a poesia deste (duma "Praça da Canção" são panfletárias demais, falsas. Ouvir uma Trova do Vento que Passa ou Canção com Lágrimas ou lê‑los é muito diferente. Ao lê‑los parecem‑me inautênticos, talvez porque só me agrade aquilo que sinto, que me diz alguma coisa. O que não sucede com os poemas do Manuel Alegre. (MED - 1969.04.28)
Vivaldi é um compositor muito agradável de ouvir‑se. A sua música é sonora, alegre, colorida! (NSF - 1969.12.12.)

1970
A tarde cai e do gira-discos evolam‑se as notas da "Dança Macabra", que de macabra nada tem. (NSF - 1970.05.17)
A tarde está tristonha. Dos alto-falantes do gira‑discos saem as notas da "Rapsódia Húngara" de Liszt. Não há dúvida que o piano é um instrumento agradável de ouvir. E a Rapsódia Húngara nº 6?!  Dá uma sensação de afirmação persistente, que nunca se quebra. Mas uma das minhas composições preferidas é o "Concerto para piano, nº 1", de Tchaikowski.  (NSF - 1970.03.21)
À "Rapsódia Húngara" de Liszt (o piano é maravilhoso!) junta‑se o chilrear dos pássaros no telhado, o ronronar duma avioneta pelos ares e o ruído abafado do trânsito na Praça do Giraldo, aqui a dois passos. (NSF - 1970.05.17)

1971

Escrevo‑te e ouço a "Sagração da Primavera" do Stravinsky. Sou doido! Estou endividado, preciso urgentemente de renovar o meu inestimável guarda‑roupa, não quero pedir dinheiro para casa, não sei como ganhá‑lo ...  E continuo a gastá‑lo em livros e discos! Sei que não devo fazê‑lo, que ficarei chateado por isso, mas continuo a fazê‑lo. (NSM - 1971.01.14) (*)

Preparo a frequência de Sociologia II enquanto ouço a "Valsa" de Ravel. É uma tarde de domingo, dum inverno já não rigoroso, aprazível. Sentado numa cadeira, os pés noutra, rodeado de livros, papéis e apontamentos. Daqui a pouco vou até ao café lanchar e ler o jornal. A dona da casa ainda não veio arrumar o quarto. (NSF - 1971.01.24)
Como única companhia nesta tarde o José Afonso, melhor, a voz do Zeca Afonso, que sai dos alto‑falantes e enche o quarto, mas não a minha alma, demasiado grande para a minha alma tão pequena. (NSF - 1971.02.28) (*)

São quase 20 horas.  Como sempre, o meu quarto está transformado em sala de reunião. Eu escrevo, dois jogam à batalha naval, outro estuda e a D. Teresinha ouve música. (NSF - 1971.03.21)
Como sempre ouço música. Desta feita o meu amigo Vivaldi e os seus concertos, que têm algo de primaveril, recordando bosques e pássaros e riachos. (NID - 1971.04.05)

(…) obrigado pelo tecto que me abriga, pela luz que me ilumina,
                pela música que ouço
obrigado pelo Zeca Afonso, pelo Vivaldi
obrigado pelos livros, pelo Steinbeck pelo Jorge Amado,
                pelo Manuel Alegre e pelo António Reis
obrigado por tantos eles
obrigado pelo ramo de flores,
                pela erva no telhado, pequenas florestas galgando montes (…)  (POE 1971.04.14)

Bach no gira‑discos: a calma e a harmonia do velho Johann Sebastian. O turbilhão que é o meu espírito talvez se acalme com ele. Rios tumultuosos sobem dentro de mim. Eles preferiam Zorba ([1]) e o delírio até à exaustão: descansar o cansaço.
Bach é agora um hino à alegria. Se fosse traduzir por imagens o que ele me desperta falaria de flores cujas pétalas se abrem lentamente, ao retardador, de qualquer coisa de esvoaçante, de saltitante, duma sensação de leveza. Bach permitiu que se rompessem os diques feitos das recusas, das negações, das violências destes dias de exames, calor e frustração. (MCG - 1972.07.14)
A D. Teresinha lá ficou. "Entrou de férias", tendo ido contrariada para Barrancos. Não sei se regressará. Depois de vocês partirem e como fora vaticinado, passou a visitar‑me. Mas o respeitinho é muito lindo e ficava muito caladinha sentada numa cadeira, ouvindo música. (MCG - 1971.08.14) (*)

A Associação [dos Estudantes] é para mim um meio de estar com os outros e, paradoxalmente, de me afastar deles, por esquecê‑los enquanto pessoas. Ás vezes, agora cada vez mais frequentemente, estou consciente disto, das barreiras que cavo ao lançar pontes. Procuro os outros para me encontrar e perco‑me no meu egocentrismo alocêntrico. A Associação [de estudantes] é um meio de esquecer a minha profunda solidão, encontrando‑a. Sempre este desejo de sair de mim, de encontrar (‑me em) os outros, de encontrar‑me nas "coisas" que faço, que passam a ser como se "eu". (No gira-discos: guitarra clássica)

(...) É depois do jantar. Um enorme cansaço, desolador, entorpecedor, tem‑se estado apoderando da minha cabeça. Completamente alheio enfiei a comida, acabando primeiro que os outros, uma grande irritação pela barulheira do rádio na cozinha (sempre a merda ruidosa do rádio), um enfado pelas desajeitadas tentativas do sr. Marquês para tirar‑me do meu alheamento, do meu mutismo, a despedida brusca. Todo este cansaço, todo este desalento, pelo clarão súbito da última página, pela consciência de que todas as nossas relações são um jogo cujas regras (subconscientemente) sabemos (mas não queremos admitir), que toda a vida é uma enorme representação teatral, um palco mundano. (Lembras‑te, Shakespeare? Lembras‑te, Stau Monteiro da "Angústia para o Jantar"?)   (NSM - 1971.12.01/03) (*)

Pronto. Lá arrefeceu tudo ao pegar na caneta para dizer do meu espírito, do que nele se passa. Esvai‑se‑me por entre os dedos e nas mãos apenas o resto do que não é. No gira‑discos, Strawinsky. É ao lusco‑fusco, o candeeiro aceso defronte a mim, enquanto o Rocha tira apontamentos do "Rapport Sur la Situation Sociale dans le Monde en 1963", edição da ONU ([2]). Apesar do aquecedor, tenho os pés gelados. Estou enfiado no roupão. O silêncio é perturbado apenas pelo leve respirar, os ruídos das canetas deslizando rápidas pelas folhas, o roçar das mangas nas mesas. (...) O Rocha pôs outro disco: Bach, uma cantata. (NSM - 1971.12.01) (*)

                O meu fiel amigo permite que o Luís Góis cante para mim, neste momento, a "Toada Beirã" Ontem à noite o Carlos esteve cá em casa. Tencionava ir ao cinema para ver "Sete Noivas para Sete Irmãos" [de Stanley Donen] mas atrasei‑me a escrever, mudando por isso de planos, o que permitiu‑lhe encontrar‑me. Estivemos a conversar até às tantas. (NSM - 1971.12.02) (*)

1972

                Aqui em casa novamente; a tua carta amiga e cordial diante de mim, Zorba no gira‑discos, uma vontade doida, que acordou esta manhã comigo, uma vontade doida de bailar até ao delírio para cansar sei lá o quê ... as tensões pela alegria e pela impossibilidade da tua presença ... Mas o importante és tu e a alegria ao pensar-te. Como ficaria ou me sentiria se aceitasses namoro ao Diogo? É parva, a miúda! Sei lá como ficaria ou me sentiria se isso acontecesse! Vê lá se queres que eu me estenda ali na cama a pensar no que sentiria se.... Somos demasiado cautelosos para nos comprometermos e, portanto, somos livres de fazermos o que quisermos (ou pensamos ser o nosso querer); continuando com as nossas interessantes conversas sem nada de concreto, podendo dar‑lhe o significado que queiramos. Apenas sei dizer‑te que gosto da tua maneira de falar e de escrever - reflexo teu - e que sinto um enorme desejo da tua presença, do teu riso, do teu corpo, em suma, de ti. E sei também que a minha maneira de ser, a minha frieza e austeridade, se não permitem que eu viva tão intensamente como desejaria, também não me deixarão morrer. Eduquei‑me para nunca me entregar totalmente e deixar sempre assegurada a retirada. Esta é a única resposta que posso dar á tua questão hipotética. (MCG - 1972.07.06) (*)

          Ouço o Zeca Afonso e daqui a pouco vou até ao Arcada, dar dois dedos de conversa ao Camilo, lanchar a sandes de fiambre, galão claro e iogurte habituais, e dar uma vista de olhos pelos jornais da tarde. (MCG - 1972.09.22)

Estirado no divã,[do meu quarto] olhos fechados, o Carlos [Nunes da Ponte] ouve as gravações [de órgão] que efectuou no sábado - algumas composições de sua autoria, outras de Bach. Está contente com a sua genialidade. (MCG - 1972.07.10 - ?) (*)

É ao entardecer dum dia gelidamente outonal. Ali no divã o Aristides e o Zé Manel cantam e tocam do Zeca Afonso "Traz outro amigo também" (MCG - 1972.10.11)

        Ali o José Emílio pergunta‑me se estou escrevendo as minhas memórias, entre uma garfada de arroz e outra de carne. (...) É depois do jantar. Chove e as pingas caiem descompassadamente no cimento, lá em baixo no pátio. O rádio transmite uma música solene e majestosa que não identifico

O Aristides vai folheando um livro de poesia e divido a minha atenção entre o que escrevo e o que ele me diz. - lá vou dando conta do recado (O Aristides comenta o Fernando Pessoa dizendo que é poesia de salão). (MCG - 1972.10.12)

O tempo já convida a vestir‑se o roupão, acender o aquecedor e ficar‑se pacatamente em casa, ouvindo música ou conversando, quando não se joga uma partida de cartas (MCG - 1972.10.30)

 De que vou falar-te, eu que neste momento consideraria a felicidade suprema chegar a casa e sentar -me numa poltrona confortável, com Bach ou Mozart no ar e talvez amigos - ou amigas - o corpo sereno sem dentes cerrados! Mas não tenho dinheiro nem livre curso ao meu dinamismo em algo que me entusiasme! (MCG - 1972.11.20)

1973
Cheguei agora do Arcada. Já foi tempo de arrumar a livralhada, despir o casaco, ligar o aquecedor e pôr no gira‑discos "Pequena Serenata Nocturna" de Mozart. Estou fatigado. Uma tarde inteira com o Camilo e ainda não começamos a redigir o texto-base provisório do nosso trabalho para Planeamento Social - análise das contradições entre os princípios e objectivos do III Plano de Fomento, para 1968/73. (MCG - 1973.02.02)  (*)

O inverno, lá fora, voltou com a chuva e o frio, e também o nariz entupido e a cabeça pesada pela constipação; silenciados o gravador e o gira‑discos (agora sem Bach ou Mozart) enquanto o rádio vai transmitindo música latino‑americana e alguém faz ouvir os seus passos pelo corredor antes de fechar a porta. Passo a mão pela cara e é lixa; com mais uns dias seria uma penugem sem aspereza. Sinto‑me engordurado e gostaria de ter tomado um bom banho que o frio pelo vidro partido e a constipação não determinaram. As pontas do bigode incomodam e não encontro o espelho nem uma tesoura pequena para apará‑lo. Será que ao botá‑lo abaixo perderei o "it"? (MCG - 1973.03.11) (*)

Verdadeiramente o quarto até parece outro, mesmo atendendo à evolução na continuidade. Que não gostou muito da brincadeira foi a D. Vitória, que ficou enxofrada por eu ter posto no corredor a abominável moldura do espelho da cómoda. Ao regressar a casa hoje aquilo estava de novo no meu quarto, arrumado embora num canto. Quando desci a ilustre senhora começou a mandar vir, que aquilo ficava no meu quarto e mais blá‑blá que me ia enchendo as medidas. Enfim, disse‑me que me alugou o quarto para dormir e se eu queria uma sala de convívio que alugasse um apartamento. (!) 

               Ah! Ah! Ah! ... e este até tem sido um ano sossegado: pouca gente vem para cá para o paleio e para ouvir música ou estudar como nos primeiros anos, nem as meninas ([3]) ainda cá puseram os pés, como algumas de outrora, muito menos tendo eu feito qualquer tentativa nesse sentido. Enfim, a gente tem de desculpar os nervos dos outros! (Aquilo deve também ser por causa das fotografias e posters "imorais e contra os bons costumes". " Porcarias e palhaçadas", como doutras vezes desabafou). Mas o problema é que o monstro acima referido não ficará no meu quarto. Vamos deixar arrefecer o copo de água e quando a vozinha estiver menos agreste e o olhar menos sofredor atacarei novamente, desta vez com um sorriso Pepsodent, que doutro modo não vai a ilustre senhora. (MCG - 1973.03.13)
                Os ares lá por casa andam tempestuosos. Começou já não sei bem porquê, continuou no dia em que paguei a pensão e deve ter piorado ontem: o João Luís e a Maria Antónia estiveram no meu quarto, á tarde, ouvindo música. A D. Vitória não grama o João Luís e uma rapariga lá em cima - ai Jesus, credo, que lá se vai o bom nome da minha casa!  Para além disso o João Luís não tem o mínimo sentido das conveniências, o que de modo algum serve para lançar água na fervura. (MCG - 1973.03.20) (*)

O céu está novamente azul e a tarde vai a meio. (...) No gira‑discos, música do século XVII, de Corelli. Nada condizente com a desarrumação que vai pelo quarto, com livros e papéis pelo divã, conjuntamente com as calças que a D. Vitória nunca arruma naquele simulacro de guarda‑fatos (MCG - 1973.05.01)

Qual é neste momento o meu anseio máximo? Descansar! Como sempre comecei a entusiasmar-me com o trabalho, desta feita o de Sociologia do Desenvolvimento, que já vai em ... - imaginem - dezoito páginas.  Como não sei parar para descansar, nem tenho possibilidades de fazê-lo, o resultado está à vista. Gostava de estar assim sentado, sentindo a brisa acariciando-me o rosto e o afago duns dedos na minha pele. Mas não pode ser, que tu estás longe. E ... Como reagiriam outras pessoas se eu fosse capaz de sentar-me ao fundo das escadas, seduzido pelo gosto bom  dum sorriso, e abraçasse, num gesto sem malícia, camarada, quase fraternal, a pessoa que lá estivesse? Ai Jesus, credo! Mas ... Sê-lo-ia? (MCG - 1973.05.11)

Está frio e eu cansado. Passo os dias na biblioteca ou no café, como vagabundo. Gosto do silêncio do meu quarto - só se ouve o tic-tac do relógio e o roçar da caneta no papel. O café, com o seu ruído e a fumarada, cansa-me. Mas lá é que estão as pessoas, lá é que se conversa, lá é que falamos a sério ou rimos a bandeiras despregadas, lá se gasta o dinheiro, em lanches e ceias, de pão de forma ou galões claros ou bolos. Uma pequena fortuna ao fim do mês.

(...)  De tarde requisitei a sala de jantar, mais fresca, e lá fiz o estendal de livros e códigos e leis e decretos leis, para tentar fazer um esquema da matéria para ver se amanhã me conseguia safar [no exame de Direito do Trabalho] (MCG - 1973.06.28 b).

Ao chegar a casa - será por isso que o Camilo passa dias no café? - o desejo de entrar em nós e a desolação porque não se pode contar aos livros aquilo que nos vai na alma ou comunicar as maravilhas das descobertas que se vão fazendo diariamente. O carinho e a ternura estão fechados dentro de mim, por trás desta máscara que não é se não uma parte de mim. Não saberás o que é para mim este desenraizamento. Compreendo muita coisa - sei até coisas demais que não tenho onde aplicar. O quarto reflecte-se no negrume brilhante do vidro da janela onde se espelham os candeeiros. (..) O tempo foge-me por entre os dedos e não sei o que me ficará dele. (MCG - 1973.12.14)


1974

É ao anoitecer. Ouço uma sessão de órgão que o Carlos gravou para mim, vai para dois anos. Os óculos encavalitados no nariz, a minha mãe vai lendo um trabalho meu sobre "A Ocupação Portuguesa de Angola" (MCG - 1974.01.21)

       Apetecia‑me ir a casa de alguém, com uma poltrona confortável, ouvir música ou conversar. (...) A partir de 6ª feira os jornais diários passam a custar 2$50. Tudo aumenta, minha gente. (1974.01.30)

Acabei de jantar: o [Emídio] Guerreiro e eu comprámos comida no "snack" Camões e viemos de abalada até casa com um carregamento de salada russa (bah!), filetes de pescada (estavam bons mas tinham espinhas) e borrego assado com ervilhas (saboroso, mas a carne era tanta como os ossos). Meio queijito (que o Guerreiro tinha) e maçãs (que tenho ali) e fizemos a festa por 38$50 cada um. Ah! esquecia‑me, como fundo musical a "Pequena Sinfonia Nocturna", de Mozart. A cadeira (desmontável) que a minha mãe me deu permite um sentar confortável. Gosto muito de estar sentado nela: estuda‑se bem. (1974.04 24)

No gira-discos “Donovan" interpreta "Atlantis", quase abafando o cair da chuva no pátio, neste entardecer cinzento, que seguramente apagará as fogueiras de S. João. São 20:15 e a tua presença enche‑me os sentidos e a memória como se estivesses aqui junto a mim. Já é tarde e não me apetece ir jantar a casa do sr. Rolo. Não consegui almoçar senão um prego e um copo de leite, pois os "turistas" tomaram de assalto as tascas, cafés e restaurantes. (MCG - 1974.06.24)

fotos em 1974 e 2017
Tchaikovsky Piano Concerto No 1
Martha Argerich, piano - Charles Dutoit, conductor

Orchestre de la Suisse Romande 1975


Comments

Victor Barroso Nogueira Pois, esse gira-discos Phillips (em Luanda chamava-se "pick up") já é uma peça de museu. Comprei-o em Évora, em 1969, na Loja de Electrodomésticos do pai do meu colega Custódio Sertório. Muita malta em Évora ia ao meu quarto para ouvir música nele ou no gravador. de cassetes. 




[1] - Do filme Zorba, o Grego.
[2] - Organização das Nações Unidas.
[3] - Hóspedes da casa.

Post scriptum  -  1987
Ali no gravador canta o Zeca Afonso, que tinha uma voz muito bonita. E ao mesmo tempo fico triste com elas (canções), porque me fazem lembrar o tempo do fascismo, quando havia esperança de lutar e conseguir um mundo melhor, sem guerra,. nem miséria, nem fome, mas onde houvesse alegria, liberdade e paz. (SNS - 1987.04.26)

VER

em Évora, o pickup Philips

Sem comentários:

Enviar um comentário

Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)