* Victor Nogueira
Vem sentar-te
comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente
fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida
passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlaçemos as
mãos).
.
Depois
pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não
fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um
mar muito longe, para o pé do Fado,
Mais longe que
os deuses.
.
Desenlacemos as
mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos,
quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale
saber passar silenciosamente.
E sem
desassossegos grandes.
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Não queiras,
Lídia, edificar no espaço
Que figuras
futuro, ou prometer-te
Amanhã.
Cumpre-te hoje, não esperando
. Tu mesma és tua vida.
Não te
destines, que não és futura.
Quem sabe se,
entre a taça que esvazias,
E ela de novo
enchida, não te a sorte
Interpõe o abismo?
In memoriam
Soube ontem,
pelo Zé Pinto e acidentalmente, que a Lídia morreu há uns dias. A Lídia, mas não só, fez parte do nosso grupo
de "estrangeiros" ou "exilados" em évoraburgomedieval,
Nunca me esqueci da Lídia [Cascalho], com aquele seu ar de menina, e da malta, que "vivem" nas minhas memórias escritas, apesar das voltas da vida. Da Lídia tenho fotos duma perambulação de alguns de nós pelas ruas do burgo (2021 11 17)
Á porta do ISESE - Lídia,
Camilo Monteiro Carlos Nunes da Ponte e Victor (Foto Luís Tobias ?)
Os
Companheiros das horas vazias - Abraça por mim a malta da mesa do café Arcada,
companheiros das horas vazias. Como estas no Porto, aguardando os exames de
Fevereiro. Um abraço especial para a Guida [Morgado] e para a
"terrorista" que é a Zeca. (Carta para a Lídia
- 1972.01.01)
Cartas para
Amareleja
1972
Nas minhas deambulações de hoje encontrei a Lídia e o Jorge. Este andava á procura de dez tostões para o cinema - eu fiz que não percebi a indirecta; informou-me que esteve em Beja a trabalhar no circo e á minha observação sobre a sua magreza retorquiu "É da fome que passo." (e que não está em mim remediar) (MCG - 1972.02.23)
O café é um mar de gente barulhentamente conversadora. As ventoinhas giram, mas nem por isso o ar está mais fresco. Évora civiliza-se: conto cerca de dezoito elementos do sexo feminino aqui no Arcada (minha pátria em terras alentejanas). O mundo caminha para a perdição, diriam os "moralistas" de porta para fora! (MCG - 1972.07.24)
Passei pelo café, que estava
vazio de quem me interessasse. Apenas a
Lídia, o Tobias e o Luís, muito entusiasmados porque em Évora "rebentara
um golpe de estado" (!) O Tobias teria visto um movimento desusado e
aparatoso de polícias com capacetes de aço e metralhadoras aperreadas nas
imediações do Governo Civil. Para lá seguiu o grupo, mas sem mim, pois tenho
mais que fazer. Amanhã lerei os jornais e logo saberei.
Évora moderniza-se. Este ano o Giraldo terá iluminações natalícias. Vamos ver se as colocam antes de eu abalar ou não as retiram antes do meu regresso. (MCG - 1972.12.15)
1973
Volto a página e pergunto-me que
mais vou eu escrever? Levanto-me, dou uma volta pelo quarto, remexo numas
quantas coisas e torno a sentar-me para escrever isto.
Entretanto a D. Vitória regressa,
para levantar a bandeja do lanche e despejar o cinzeiro (o João, o Carlos, o
Tobias e a Lídia empestaram-me o quarto com cigarros). Há cinco anos que lido
diariamente com a D. Vitória e nunca as nossas relações foram muito cordiais
nem estreitas!
Acendo o candeeiro, não porque seja
absolutamente necessário, mas num gesto algo inconsciente ou automatizado.
Olho para a minha direita e vejo um enorme
calhamaço: "Os Macondes de Moçambique", vol III - "Vida
Social e Ritual". Terei de consultar este e os dois primeiros para
redigir a monografia de Antropologia Cultural. (MCG - 1973.01.26)
1974
Safa, que fartura! Isto não devia
ser assim; cada vez que um tipo muda de casa é uma chatice. P'ra quê um tipo
levar a tralha atrás? Sim, para quê? O sentido de posse é uma invenção
diabólica, um atentado à liberdade. 7 caixotes, um MALÃO e uma mala, eis a
bagagem que fica em casa da D. Vitória.... E deitei fora 6 sacos enormes cheios
de papelada. Safa! (...) Estou para aqui todo partido. Vá lá que tive ajuda
para transportar os caixotes do 2º andar para o r/c: o Cabeça, a Lídia e mais
dois casais. (...) Foram uns tipos porreiros. O sr. Veladas, contínuo do ISESE,
ajudou-me a serrar tábuas e pregar os caixotes. Amanhã à tarde devo ter tudo
pronto! (MCG - 1974.09.02)
os primeiros poemas – 03
O profundo desenraizamento e "solidão" numa évoraburgomedieval castradora, opressiva, sexista, repressiva e fechada aos "estrangeiros" [nunca qualquer alentejano ou eborense durante o meu longo exílio de 6 anos me convidou para sua casa, salvo a Lúcia Carmelo e a Margarida Morgado], não obstante o meu quarto na rua do Raimundo, ter sido sempre uma praça aberta - talvez o único quarto de hóspedes em évoraburgomedieval onde a malta entrava livremente, incluindo as raparigas que ousavam afrontar a "censura" das pessoas de públicas virtudes e privados vícios. Era o quarto dos debates culturais e políticos, onde se estava também para estudar, conversar, jogar ás cartas, ouvir a minha discoteca ou ler os livros da minha biblioteca, apesar das censuras e oposição da minha hospedeira. E no entanto, quando frequentei Económicas de 1966 a 68, dava-me com bastantes colegas alentejanos, simpáticos, afáveis e com uma abertura que não vim a encontrar em Évora e na maioria das suas gentes.
Este meu isolamento minorou com a
formação daquilo que eu chamo o "grupo" ou a "malta do
Arcada", quase todos não alentejanos - a que eu chamaria o "núcleo
duro" que o sustentava - o Camilo (Angola), o Lira Fernandes
(Moçambique), o Carlos Nunes da Ponte (Porto), o João Garcia (Santarém), o
Rocha (transmontano), o Manuel Antunes (Covilhã), o Carlos Mota de Oliveira
(Lisboa), entre outros, para além dos alentejanos, como o Vidigal Pereira, o
Humberto Valentim, a Domingas Lobato, a Lúcia Carmelo, a Dídia e o irmão, a
Suzete Chaveiro, a Margarida Morgado, o Luís Tobias e a Lídia ou o Ilhéu, para
além do António Viegas (Manteigas) ou do Victor Gil (Trancoso) ou a Antónia, Para
lá do que chamo "núcleo duro", isto é, permanente, outros
membros iam saindo quando terminavam o curso ou iam para a tropa ou entretanto
iniciavam o seu percurso no ISESE, como o Jacinto Morte e o António Campos e o
João Gonçalves ou a Filomena, o Zé Pinto, o Ribeiro, o "Chinês",
como se vê seguidamente: (in “os primeiros poemas – 03” 2013 11 05)
évoraburgomedieval no antigamente (4)
No café é que fiava mais fino e
no Arcada, para além das mulheres dos engenheiros da Siemens, só por lá
apareciam a Dídia (com o irmão), a Antónia, a Lúcia e a Domingas (com o
Valentim), para além da Lídia, todas elas mal vistas pelas castas e marialvas
mentes masculinas, a que a maioria das mulheres se sujeitavam, mesmo que dentro
delas lavrasse o mais intenso fogo que não deixavam transparecer. (in “évoraburgomedieval no antigamente (4)” 2011 08
24)
memória
de zeca afonso e do fascismo
évoraburgomedieval no antigamente (4)
Terminado o Liceu [em Luanda], rumei para Economia no Porto, onde apenas estive 15 dias e mudei-me para Económicas em Lisboa e depois para Sociologia em Évora. Esta era uma sociedade muito fechada e nós, os «estrangeiros das colónias», medianamente abonados, formávamos um grupo: o Henrique, da Beira, (Moçambique), o Camilo, de Benguela e este escriba, de Luanda. Ao nosso grupo reuniram-se os estrangeiros semi-abononados, de fora do Alentejo, o João e a Filomena, de Santarém, o Luís Filipe de Lisboa, o Carlos do Porto, o Valentim, namorado da Domingas, ele de Beja e ela de Évora, a Lúcia de Évora, e um casal de irmãos, salvo erro o Henrique e a Dídia, a Suzete, e dois ou três transmontanos e outros tantos da Beira Interior. Depois havia as aves de arribação de Évora e arredores, que umas vezes se sentavam à nossa mesa, outras no Café Portugal, como o Pingarilho, o Janicas, o Zé Pinto, o Ilhéu, o Custódio, a Lídia, o Tobias e o Carmelo, para além do Cabral que era o único filho de agrário que convivia connosco.
A Lídia e o Tobias, que não estudavam e creio que já trabalhavam, eram os únicos eborenses que conviviam connosco, para além da Lúcia, da Domingas, do Pingarilho e do Custódio. Mais tarde juntou-se-nos a Isabel, de quem já falei noutro post, sobrinha do Conde de Vilalva.
Também havia o Aristides, dos Açores, um homem bom, ex-seminarista que tinha já feito a guerra colonial, um «revoltado» que dizia que convivia connosco porque não éramos tão «reaças» como a maior parte dos nossos colegas embora não tão «radicais» como ele, mas enfim, ele tinha de dar-se com alguém, como nos dizia. Os da Beira interior e de Trás os Montes também eram ex-seminaristas que, embora menos abonados, andavam mais ou menos «perdidos» na medievalidade de Évoranoantigamente.
(…) Os cafés da malta eram dois,
O Portugal, que já fechou, ponto de encontro dos eborenses e da malta do
reviralho, e o Arcada, mais fino, também «escandalosamente» frequentado pelas
esposas dos alemães da fábrica Siemens e pelas nossas colegas, acima referidas.
As outras, ou estavam hospedadas em lares religiosos, em casa dos pais ou em
quartos alugados, segregadas dos hóspedes masculinos, e com horas de entrada e
saída, atentamente vigiadas pelas «hospedeiras», ciosas do bom nome e reputação
das suas casas de hóspedes. Era assim como nas aldeias e vilas alentejanas onde
existiam quase sempre duas sociedades recreativas: a dos ricos/agrários e a dos
pobres/assalariados rurais, completamente estanques.
(…) De
modo que aquilo era uma comunidade, onde cada um partilhava com os outros o que
estes não tinham. No meu caso, tinha uma biblioteca e uma discoteca razoáveis,
um gira-discos e um quarto enorme. De modo que quando me sabiam em casa aquilo
era um corrupio, para lerem livros ou os jornais, ouvirem música, conversarmos
ou estudarmos. Como aquilo era uma casa de hóspedes eu subverti as regras todas
da hospedeira, a D. Vitória, que me dizia que me tinha alugado o quarto a mim e
não a um bando de cavalgaduras que passavam o dia escada acima escada abaixo.
Outra das regras subvertidas era a das raparigas, as que estavam na mesma casa,
iam até lá ouvir música, conversar ou pedir-me livros emprestados, tal como
algumas colegas do Instituto. Aquilo então exasperava a D. Vitória: uma
vergonha, isto é uma casa de respeito, onde é que já se viu meninas enfiadas
nos quartos dos senhores?!
Também
pousavam pelo meu quarto alugado algumas colegas nossas, como a Antónia e a
Isabel Pimentel, sobrinha do Conde de Vilalva, para além da Lídia e das
hóspedes da casa.
Apesar de todos os protestos, amuos e resmungos da D. Vitória, a única concessão que por minha iniciativa lhe fiz foi ter a porta do meu quarto aberta sempre que lá estivessem elementos do sexo feminino [Aliás a D. Vitória aguentava as minhas «bizarrias» e reclamações sobre a comida pois eu pagava mais de mensalidade que qualquer dos outros hóspedes pois tomava banho e mudava de roupa diariamente - hábito de Luanda - e lhe emprestara o meu aparelho de Televisão - na altura um luxo - que ela colocara na sala de jantar e era usufruído pelo restante pessoal da casa, indo eu para o Café Alentejano sempre que havia um raro programa que me interessasse]
Claro que nunca recebi ordem de despejo. De modo que
fiz uma concessão à D. Vitória: quando estivessem as meninas ou senhoras no meu
quarto eu deixava a porta aberta. (in “memória de zeca afonso e do fascismo”
2014 02 23 “évoraburgomedieval no antigamente (4)
2011 08 24)
A malta do Café Arcada em Évoraburgomedieval - A Lídia, a quem se dirigia esta carta, era uma das nossas companhias num tempo em que as meninas sérias não andavam com os rapazes nem iam ao café. Por isso tinha má fama perante as boas consciências eborenses. Depois empregou-se nos correios e entretanto nunca mais soube dela. ("A malta do Café Arcada em Évoraburgomedieval" 2018.04.10)
Memórias em évoraburgomedieval
«A malta do Arcada III - No
Arcada o João [Garcia], a Filomena, o Camilo, o Zé Pinto, o Ribeiro, o
"Chinês" e o irmão cantavam em coro desde as cantiguinhas da primária
("Ó Rosa, arredonda a saia", "Tia Anica de Loulé"...) às
excursionistas ("Santa Catarina", "Rapsódia Portuguesa"
...) passando por cânticos gregorianos e pelos coros alentejanos e canções da
Beira Baixa. Enfim, uma grande audição, no café cheio e entretido com outros
assuntos.» (MCG - 1974.02.11) :-) (in “Memórias
em évoraburgomedieval” 2018 11 15)
Foto Victor Nogueira - Évora - 1974.Dezembro - dum voo com Carlos Seruca Salgado
NATUREZA MORTA
Évora é uma terça -mercado numa praça
…......numa praça em terça-mercado um café
…......de um café em praça numa terça-mercado
de agrários cinzentos
como cepos sem vida
e o meu cansaço
o meu cansaço é uma ilha escarpada em
….....................passos em pontes pontas sem margens
Por onde os mares com arvoredos nas encostas verdejantes
…............as mãos..........armas ou arados
…..................................nos dias que vão?
…..onde o tempo das papoilas
.…........................dos cantares
….......... cabelos soltos ao vento
…......... de abril em maio?
Évora é uma ilha
…......ilha em pedra e cal
….....de ruas estreitas e tortuosas
….....as miúdas em bandos cerrados
….....nas mãos dos homens
….....rapazes velhos em
Évora há colunas pântanos lamaçais
…......relógios parados ponteiros partidos
…......pesos ….sombrios.....de âncoras em cadeias
….....de casebres refulgindo
….....em dias fechados
….....de ferro e cinzento
Évora
…...... é
…...... uma
…...... escarpa
…...... agreste
…...... com
…...... lábios
…...... cerrados
…...... em
…...... deserto
…...... sem
…...... fundo
Victor Nogueira - Poesia
7210. 016.3 / 3. 008
1972.Outubro.17 (1985.Outubro.13/1989.Março.01)
VER
José Eliseu Pinto Qui, 20:42
ResponderEliminarSempre bom revisitar o burgo medieval através das tuas/nossas memórias. Bonito o tributo à memória da nossa amiga Lídia, de quem já temos saudades. Abraço.
Carlos Bunes da Ponte
ResponderEliminarBela evocação da nossa querida Lídia