* Lurdes Nobre
7 de novembro de 2021 às 17:13 ·
Soube pelo António Couvinha que morreu a Lídia Cascalho.
Hoje Évora fica muito mais pobre, não porque a Lídia fosse rica ou tivesse sido presidente do que quer que seja, mas porque ela foi uma das primeiras Mulheres Livres que Évora viu. Foi uma das primeiras contestatárias, uma das primeiras a traçar o seu caminho sem pedir licença e nem desculpas!
Conheci a Lídia muito miúda, o Pai o Cascalho era o cabeleireiro da minha mãe, muitas vezes enquanto esperava pelo arranjo dos cabelos, subi ao 1º andar e ficava na sala com a Lídia, naquela época uma adolescente e eu uma menina. Lia-me trechos de livros que eu não entendia, ria quando eu fazia uma pergunta idiota de miúda perguntadeira, e deixava-me fascinada com as pinturas que me mostrava, não sei se dela se de outos, mas eram muito diferentes dos quadros de frutas e mulheres elegantes que estava habituada a ver. Fascinava-me com as suas roubas exuberantes, com o seu cigarro sempre na mão, Depois voltei a encontrar a Lídia na adolescência, muitos anos depois dela ter aberto a porta dos cafés grandes às mulheres para que pudessem entrar sozinhas, eu entrei, mas se me escapei das balas que a tinham atingido, nao me livrei das farpas, tantos anos depois mesmo assim não foi fácil, ainda era mal visto, mas a Lídia tinha-nos aberto a porta e nós lá estávamos, quisesse-se a cidade ou não. Também ali a Lídia me surpreendia, dava o peito às balas quando alguém lhe fazia algum reparo à forma de pensar e de estar. Assumia as suas escolhas, os seus amigos e não levava desaforo para casa. Lia alto e bom som o trecho de um qualquer livro que achava servir para mudar as mentalidades mesquinhas de uma cidade burguesa e profundamente covarde nas suas formas de aceitar a diferença. Saia de cabeça erguida, com a certeza de que só ela era senhora do seu destino. O café Portugal fechou e deixei de ver a Lídia todos os dias, varias vezes ao dia, afinal tínhamos em comum a segunda casa o Café. Cada uma foi para um lado e durante anos só nos cruzávamos nas ruas da cidade, muitas vezes perto dos correios onde trabalhava, o cumprimento era rápido, como rápidas se tornaram as nossas vidas, mas o tempo não transformou a Lídia, continuou a ser o que sempre foi, num desses dias parou e cheia de uma felicidade transbordante disse-me ter sido reformada, via-se livre das amarras de um emprego que a consumia e que sempre detestou. Voltei a perder a Lídia de vista, passou a ficar em casa a maior parte do tempo e apesar da nossa amizade eu não era visita da sua casa, erro meu e perda minha pois muito teria a aprender com a Lídia, mas as coisas são como são. Há uns anos passando de carro pela rua de Aviz via-a caída na rua, tinha-se sentido mal mesmo à porta, parei o carro, interrompi o transito e fui levantar a Lídia, tentei chamar a ambulância, não me permitiu, era só um ataque epilético, disse, não lhe fariam nada só precisava dormir e disso percebo eu, só quis que a colocasse em casa, foi o que fiz com muito custo e a ajuda da Midus, que ela era nesta fase da sua vida uma mulher pesada, sentei-a no sofá, deixei-a com um livro ao lado e uma garrafa de agua, como me pediu. Cá fora os carros atras desatinavam nós estávamos nas tintas, que se esgoelassem, rimos disso as duas, que esperassem, cambada de gente que não entende a solidariedade. Bati-lhe à porta no dia seguinte, já estava bem. O rumo das nossas vidas seguia. E hoje soube que ela se foi. A mulher que desafiou Évora, quando ninguém o tinha feito, que quebrou tabus, que teve a audácia de escolher o seu caminho, que nos mostrou que o bolor e a castração da cidade amuralhada podem ser enfrentados, deixou-nos sem fazer alarde, ao contrario do que fez toda a vida, partiu sem dar nas vistas. Évora ficou mais pobre mesmo que não saiba, todas as cidades ficam mais pobres sem os seus cidadãos de coragem. Eu e as mulheres ficamos muito mais pobres, pois parte uma das que mais lutou pela nossa liberdade, sem nunca empunhar a bandeira do que quer que fosse, aquela que sempre esteve na linha da frente enfrentando o conservadorismo e o machismo da cidade medieval, encarrando as balas de frente sozinha, e foram muitas as balas que foram desferidas ao peito da Lídia Cascalho, peito que nos protegeu a todas as que também quiseram trilhar o caminho da Mulher Livre. Lidia Cascalho não terá o seu nome numa rua da cidade, não terá um minuto de silencio nas reuniões institucionais, não receberá homenagens nos movimentos feministas, mas foi uma das eborenses mais importantes das décadas de 60 a 80. Lídia, a corajosa, Lídia a rebelde, Lídia a contestaria, Lídia a escritora que nunca editou um livro, Lídia a mulher que Évora nunca percebeu, mas que ela obrigou a aceitar, pode não ter nada disto, mas ficará na minha memoria e na de muitos outros como a mulher mais Livre que Évora teve, mais livre que a própria liberdade,
Até já Lídia, obrigado em meu nome, da minha filha e da minha neta!
https://www.blogger.com/blog/post/edit/7871625280202208315/6330954244622990163
Sem comentários:
Enviar um comentário
Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)