No tempo em que eu era mais jovem
a minha memória não era uma manta de retalhos
cada vez mais esfiapados
em farelos
Tudo e todos apareciam nos seus lugares
com nitidez
Hoje sou menos jovem
e a história e o passado estão cada vez mais esmaecidos.
No tempo em que eu era mais jovem
o meu rosto era risonho
e o teu olhar cintilante;
caminhávamos lado a lado
As ruas da cidade eram largas e desassombradas
e tu a serei-a dos meus encantos.
Santa Maria dos travesseiros e das travessuras,
tanto que gostámos um do outro
tanto que de ti gostei
e escrevo no passado porque o futuro nunca se realizou.
Se hoje me sentasse perante mim
não reconheceria o jovem que fui nos vinte anos que tive
hoje com as olheiras das noites mal dormidas
e o rosto baço;
apenas os olhos continuam a sorrir com o brilho das pupilas
apenas iguais as finas rugas ao canto dos olhos.
A cidade não cresceu
manteve-se igual a si mesma
pequena, mesquinha, de vistas curtas
sem a vastidão das plagas africanas onde o horizonte estava
para além do infinito e tudo era nítido e contrastante
sem meias águas
De abril e das manhã límpidas a grandeza do sonho
da claridade logo ali,
generosa e cintilante ao virar da esquina, ao alcance da mão
e no sorriso duma criança, nada mais resta
foram-se as águas e ficaram as mágoas
sem anáguas
No tempo em que éramos jovens
as ilusões não eram mil paredões amortecidos com a dureza
duma rocha!
Ainda haverá esse dia que seja alvorada e não cerrada noite?
Quem está por detrás das palavras, das máscaras?
Quem está sem assombro para lá do proscénio?
Quem mora em nós?
Porque azedou a suavidade do nosso riso cristalino e porque
nos afogamos na mansidão das águas revoltas?
No tempo em que éramos jovens o futuro não era uma vereda
nem a memória uma rede de interstícios
A vida era feita de portas e janelas abertas ao sol, ao
vento, à chuva, à brisa ….
Hoje que já não somos jovens
que esperamos um do outro ?
De que cor são ás águas ?
Águas-mil, águas-fel, águas-mel, águas ardentes?
Que esperamos das ondas que morrem na areia da praia?
“Hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas”
Cada dia que surge é sempre o 1º dia do resto das nossas
vidas!
E cada vez menos são os primeiros dias após cada dia que
passa para lá desta noite.
Haverá dia em que a noite se torne ainda alvorada alvoreada,
para além do (es)correr da fina areia que no cerca e soterra
?
De quantos rios e risos se faz o mar
e sobre que ondas as gaivotas se fazem ouvir para além do
canto da cotovia?
No tempo em que éramos jovens …
,,, era límpido e generoso o futuro !
E hoje ?
Paço de Arcos 2014.06.11
Foto Victor Nogueira
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Maria Jorgete Teixeira
Fez-me lembrar, vagamente, o poema "Aniversário" de Álvaro de Campos. Volto a dizer: gosto deste teu lirismo nostálgico.
• 10 ano(s)
Clara Roque Esteves
Vítor Victor Nogueira, este é o teu registo que mais aprecio. Uma grande sensibilidade, uma ternura nostálgica, um tecer de sentimentos e sentidos muito bem elaborado, sentido e consentido. Gostei muito. Muito obrigada pela partilha e, mais uma vez, as minhas desculpas se não te leio regularmente porque nem todos os dias entro no FB. Um grande abraço.
• 10 ano(s)
Graça Maria Teixeira Pinto
Brilhante! Destes, gosto! Uma nostalgia, uma ternura,o poeta deixa-se ir por entre as emoções, sem se deter em barreiras. Bj
• 10 ano(s)
Margarida Piloto Garcia
Lirismo cativante neste belo poema. Há um certo desencanto e pessimismo mas ao mesmo tempo aquele "agora sou menos jovem" traz em si uma brisa de esperança. Adorei estas tuas palavras.
• 10 ano(s)
Jose Gravanita
quando nos soltamos num lirismo que abrange o nosso passado, é impossível libertar-nos do desencanto que a nossa vida revela em cada momento...saírmos do novelo é tão difícil!...
• 10 ano(s)
Manela Pinto
amei compadri Vitro, falta o livro, beijo
• 10 ano(s)
Texto reflexivo e encantador. Tudo já está dito, mas gostaria de acrescentar minhas impressões. Quando somos jovens, a esperança parece gritar alto e se mover em nosso peito, e vamos agindo, até sem pensar, porque o grito dela nos ensurdece. O futuro parece mais próximo, e conseguimos determiná-lo com mais clareza. ainda sou relativamente jovem, mas já sinto os sintomas a que você se refere. Quando éramos jovens, fazíamos tudo depressa, e aproveitávamos a vida para errar, já que tínhamos muito tempo para consertar. Agora, que não somos tão jovens, olhamos para trás e visualizamos erros que não foram corrigidos, e acertos sem vvalor ou validade. O desespero da nostalgia bate à porta, mas, como você mesmo disse, Victor, há uma solução; pensar que estamos sempre no nosso primeiro dia de vida. O que passou, passou. E o que ainda passará, não sabemos.
há 9 anos
Filipe Chinita
obrigado.meu querido camarada e poeta
• 5 ano(s)
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)