* Victor Nogueira
Continuando a lenta decifração dos papéis não datados, amarelecidos pelo escorrer do tempo, cuja 1ª recolha se encontra em
http://aoescorrerdapena.blogspot.pt/2014/11/entre-eros-e-afrodite-33-nas-brumas-do.html
Considerando a não datação das folhas, os excertos foram sequenciados de acordo com a ordem em que se encontravam no maço dos originais que me foram cedidos na feira das velharias. Por vezes há hiatos, talvez por extravio ou errada ordenação no molho.
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(...) Ao contrário do que me tens dito, sei o que pretendo da vida e dos outros, embora nem sempre alcance o que pretendo. Posso morrer buscando em vão a liberdade, a paz e a serenidade. Mas não aceito a paz e a serenidade dos cemitérios, porque a procuro na Vida com os outros, em sociedade. E sei que amando embora os outros, "amo (também) a liberdade, mesmo que ela seja um punhal cravado no meu peito".
Os alentejanos dizem que primeiro as pessoas têm de provar que merecem a amizade. Mas eu entendo que é a vida que prova se as pessoas merecem ou não a continuidade da nossa amizade, do nosso afecto. Talvez por isso é que a minha é uma casa de portas abertas e janelas escancaradas á chuva, ao sol e ao vento e nela não tenho móveis nem caixas nem portas trancadas ou fechadas à chave.
Como atrás referi, poderá parecer extemporânea esta longa "conversa", que no essencial já tivemos de viva voz por várias vezes ao longo destes anos. Não entro, recuso-me a entrar, nas guerras de afectos exclusivistas e de ciúmes sempre possessivos. O ciúme é para mim uma indicação de falta de confiança em si mesmo e nos outros, de insegurança, de medo.
Eu sou, nas tuas palavras, o "maldoso", que te mente, que te "engana" com as amigas, que te achincalha, magoa e ofende a tua sensibilidade. E assim acabo por ter para contigo "conversas" e atitudes que me desagradam mas que são a consequência do modo como te relacionas comigo e que não aceito. Porque ou há igualdade, compreensão e respeito mútuos ou então não vale a pena chover no molhado. Confio em ti; não te controlo, não te vasculho os bolsos e a carteira. Embora tu me digas que se o não faço, se não tenho ciúmes, se não mostro ciúmes, é porque não te amo. Nada mais errado, digo-te eu.
As pessoas não devem ser possessivas. Cada um de nós tem as suas qualidades e os seus defeitos, que se ajustam ou não. Não podemos é pensar que cada um de nós preenche todas as expectativas e todos os requisitos. Uma panela de pressão sem válvula de segurança é potencialmente explosiva e destrutiva.
Uma coisa é as pessoas compartilharem aquilo que é comum, outra é quererem "policiar" tudo, com exigências exclusivistas. Num casal, o exigível, para mim, é a lealdade, a verdade, a confiança, respeito e solidariedade mútuas, a cooperação, é não haver jogos duplos. E além disso deve deixar-se a cada um a liberdade das suas recordações, da sua memória, dos seus (outros) afectos e simpatias.
Há um tempo e um lugar para tudo e para todos na vida. Não "ando" com esta e com aquela! Não ando pois a saltitar entre ti e as outras ou "aproveitando" as ocasiões". Estou contigo e com mais ninguém enquanto estiver contigo e não te disser o contrário. Mas tu não entendes isto. Não concluas daí que eu sou o bom e tu a má da fita. O que sucede é que não nos temos ajustado e cada um de nós não tem correspondido às expectativas que trazia em si relativamente ao outro.
No entanto, por muito que aprecie certos aspectos da tua companhia e personalidade, por muito que sinta por vezes a tua falta, não mudo em nada daquilo que considero essencial. Nem te exijo a ti que o faças!
Não gosto de aborrecer ou magoar deliberadamente os outros, mas também não gosto que os outros me aborreçam ou magoem. Assim como não quero mudar os outros, também não aceito que me mudem naquilo que considero essencial. Assim como não quero infernizar a vida dos outros, também não quero que infernizem a minha. E digo: “é bom ter quem nos afague e diga bom dia com alegria e fantasia". Mas … com tantas mágoas e "barreiras" de lado a lado, creio que nenhum de nós seria feliz com o outro. Outra poderia ter sido por exemplo a nossa situação actual se desde o início não tivesses querido "controlar" a minha vida, amizades e sentimentos.
Não te escrevi um poema. Não te escrevi uma carta poética. Escrevi‑te simplesmente. E as minhas mãos estão vazias e o caminho á minha frente não existe; existe apenas o instante á frente do meu nariz e para além dele névoa e sombras. Nada mais do que isso, onde nasce o desencanto pela vida e pelas pessoas. Não quero magoar‑te, mas sinto‑me tão cansado que gostaria que fossemos apenas amigos. Para serenidade de ambos.
Quando tu precisas de mim, sabes sempre onde estou ou como procurar-me. Não te minto nem ando fugido. Mas se precisar de ti, nem que seja só para falar com uma voz amiga, nem sempre sei onde estás, como resultado das tuas fugas e mentiras.
Não era assim que esta carta estava escrita no meu pensamento. Aliás, no meu pensamento esta carta já teve várias formas. Mais fluidas. Variando conforme o estado de alma e o correr do tempo. Mas quando chegou a altura de fixar a fluidez do pensar, o que fica é esta pálida, imperfeita e distorcida imagem, feita de signos que se alinham em carreirinha uns a seguir aos outros.
Mas isto também não é muito importante. Quiseste entrar na minha vida de rompante, como quem ocupa uma cidade para se impôr aos seus habitantes. Quiseste entrar na minha vida e na minha alma como se eu não existisse: tentaste impor-me amizades, vivências, comportamentos, atitudes. É como a história da tua fotografia na minha mesa-de-cabeceira, ali, como quem marca o terreno e a propriedade.
Não preciso da fotografia para me recordar de ti ou para me comover ou enternecer ao pensar em ti. Não é preciso que os outros saibam que eu me lembro de ti. E não me recordo de ti por causa da fotografia. Lembro-me de ti quando arrumo o armário da sala e vejo os frascos que me deste. Ou quando abro o porta-moedas e encontro o pequeno canivete. Ou quando reparo no colorido boneco do negro tocando trompete. Ou quando vejo a saboneteira, ao utilizar o lavatório. Recordo-me de ti quando barro o pão com o doce que me deste e que está no fim. Ou quando visto a elegante e bonita camisa de flanela aos quadrados. São marcas tuas, a partir das quais, conforme o dia, nascem outras recordações, enquanto para mim tiveres qualquer significado.
Olho para a saboneteira e lembro-me de Coimbra e da casa cheia de sol e do corredor com "azulejos". Vou a Leiria e no jardim lembro-me que estivemos lá: "Estive aqui com a Maria!" E lembro-me do Porto e dos cafés barulhentos e da primeira vez que foste a minha casa. Ou recordo a vez em que fomos ao Carregado ou a Santarém ou que fui ter contigo a Coimbra, tu já de roupão e pijama pois pensavas que eu já não apareceria. Recordo-me das vezes em que me apeteceu ficar contigo até de manhã, mas em que não fiquei e saí de madrugada porque não queria que as pessoas falassem de ti.
São tanto marcas tuas que um dia, após aquele em que saíste de minha casa na sequência de mais um dos teus disparates, fiz um molho com as tuas "ofertas" todas: camisas, toalhas, suspensórios, barrete do Pato Donald, fronhas das almofadas, camisolas de lã, "bonecos", para ir descarregar tudo em tua casa. Porque não queria coisas que me fizessem lembrar de ti. Salvo erro foi pela altura em que te pus a tua fotografia no teu saco. Porque o que é importante és tu e não a tua fotografia ou as tuas "marcas", que sem ti nada valem. Quando deixares de ser importante para mim, então não passarão senão de adornos ou de objectos utilitários no meio de outros adornos e objectos utilitários.
Mas voltemos atrás. Tivesses tu outro feitio, fosses menos disparatada, impulsiva e temperamental ! ... Já te disse e já te escrevi: gosto de ti e sinto a falta de ti, do teu sorriso e da tua alegria, do teu carinho, da ajuda que me dás, da companhia que me fazes, do teu corpo junto ao meu, da tua cabeça recostada no meu ombro ou no meu braço, do teu braço pousado no meu peito, da minha mão cariciando os teus cabelos e não só. Gosto da ta mão na minha qando caminhamos pela rua ou conversamos no café ou no restaurante. Mas não sou impulsivo como tu e não gosto dos teus ciúmes descabidos, dos teus disparates, dos teus destemperos, numa palavra, de tudo aquilo que referi muitas vezes de viva voz e na carta que te escrevi.
Quiseste entrar na minha vida de rompante, como quem ocupa uma cidade para se impôr aos seus habitantes. O que foi contraproducente. Terás tentado entrar ávida e possessivamente na minha vida, talvez como quem bebe com sofreguidão a água da fonte, sequiosa por carinho e atenção após a travessia do deserto. Como se só tu existisses! Tu e os teus filhos e eu por acréscimo! Sem que aceitasses os meus, em guerrilha desgastante e constante.
A vida tem um ritmo e tu não avanças com a delicadeza duma flor mas sim com o rompante dum bulldozer ou dum furacão, que arrasam tudo por onde passam.
Preparo-me para encerrar estas linhas até que um novo dia alvoreça no horizonte. Até sempre!