QUERIDO DIÁRIO SIM DIÁRIO NÃO
CONFORME O SOL OU A LUA
Estou aqui no meio dos
montes verdejantes do Minho e tudo isto é muito lindo, calmo e sossegado. Ontem
estivemos ali sentados no quintal
ouvindo os grilos e conversando à luz da lua
em Quarto Minguante, o relógio da torre sineira cantando o tempo que passava. E hoje, hoje, quando acordei e
me levantei, fiquei simplesmente deslumbrada com esta portentosa paisagem. Pena
o dia estar nublado, limitando a linha
do horizonte e a. cadeia de montanhas. A
TV não fala senão no despiste e no
incêndio dum camião cisterna com 27 000 litros de gasolina e gasóleo, por
alturas da cidade de Santa Maria da
Feira. Bem, mas deixemos estas notícias mórbidas que não ligam com este
bucolismo rural e serrano.
Sou muito linda,
encantadora, donairosa e simpática.
Embora normalmente só escreva sobre mim e não sobre os outros, especialmente
quando são esses horríveis seres que não deveriam existir nem pertencer à raça
humana, salvo alguma raríssima excepção. Mas, caramba, até pareço o João que não vai direito ao assunto. Pois o gajo
está cada vez mais parvo e tenho pouca paciência para aturá-lo. Tem a mania de
não seguir sempre, mas sempre, sem discussão, as opiniões que lhe faço a mercê
de emitir. E depois é tão lento, com aquela voz arrastada e aquela maneira de
um pé não dar um passo sem pedir licença ao outro!
Gosto que os homens, esses
seres inferiores, me admirem e pisem o chão que piso. Mas nada de confianças. A
gente dá-lhes a ponta do dedo mindinho do pé direito e depois eles trepam, trepam
como aguardente de marufo, sempre ao mesmo. Temos de saber manter a nossa
liberdade e mantê-los na ordem, se preciso com chicote, silêncio ou desprezo,
para pô-los mansinhos a virem lamber a nossa mão de cauda a abanar, tal qual a
Porcina fazia ao Chico Malta, naquela telenovela que dava pelo nome de Roque
Santeiro. Por princípio a gente tem de ter cuidado ao dar‑lhes a mão, salvo
seja, mesmo que sejam nossos amigos e digamos (mui raramente) que retribuímos a
sua amizade.
Ai! mas sou tão linda,
elegante e simpática! Custa-me dizê-lo, não vão pensar que sou vaidosa, querido
diário. Gosto que elogiem e refiram as minhas qualidades, méritos e virtudes, mas não posso
reconhecê-lo, sape‑gato. Sou ternurinhas, e também terra-a-terra porque a lua
está muito longe e não tem água nem verdura. A única coisa boa da lua é não
haver lá homens. Vejam lá que o parvo do João Baptista disse-me para pôr as
minhas lindas e rendadas calcinhas lavadas a secar, para me não constipar. O
parvo, vinha uma rabanada de vento e lá ficava eu de rego ao 1éu! Parvo! Parvo!
Mil vezes Parvo! Então ele não sabe que lá em Luanda se dizia "Larga o
osso que não é teu ...'” ou “Guardado
está o bocado ..." Parvo e presumido!
Só gosto de escrever sobre
mim, mas se não fossem os outros eu não existia. O papel já está a terminar e
vou ter de encerrar esta tua página, querido diário. Sou tão charmosa,
elegante, des1izante e bem feitinha, embora por vezes embirrante e com mau
feitio, como diz o João Baptista, que no fundo até nem é mau rapaz e por vezes
acerta!
Tenho mesmo de encerrar esta
Página, por hoje, meu querido diário, pois o papel está mesmo no fim e quero
que pensem que sou sempre não vaidosa e simples!
PRINCEZA,
simplesmente
1989.08.22
SALVADOR/SERRA DO SOAJO
Menina do Alto da Serra - Tonicha
Nuno Nazareth Fernandes -Ary dos Santos
Ano: 1971
Menina de olhar sereno
raiando pela manhã
no seio duro e pequeno
num coletinho de lã.
Menina cheirando a feno
casado com hortelã.
Menina que no caminho
vais pisando formusura
levas nos olhos um ninho
todo em penas de ternura.
Menina de andar de linho
com um ribeiro à cintura.
Menina da saia aos folhos
quem te vê fica lavado
água da sede dos olhos
pão que não foi amassado.
Menina do riso aos molhos
minha seiva de pinheiro
menina da saia aos folhos
alfazema sem canteiro.
Menina de corpo inteiro
com tranças de madrugada
que se levanta primeiro
do que a terra alvoraçada.
Menina de fato novo
ave-maria da terra
rosa brava rosa povo
brisa do alto da serra.
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)