segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Epístola a Faia Maria




João  Baptista Cansado da Guerra para Faia Maria

Já me esquecera destas fotos mas ao vê-las lembrei-me logo delas. Todas elas sofreram tratamento de imagem, e dalgumas vão pormenores em que te realço. Gosto de algumas delas. No Jardim Público de Oeiras descobri algumas outras fotos em que estás, mas pouco diferem das que já conheces e te enviei. 

Ao passar a pente fino as minhas fotos nas diversas pastas que tenho no disco externo de segurança,  para elaborar o Roteiro Cultural de Penélope com Ulisses descobri que muitas desaparecerem misteriosamente pois ao encontrar umas verifiquei que não estavam guardadas algumas outras. É interessante verificar que com a Marquesa de Alorna tens ao meu olhar algumas expressivas fotos e foi a ela que inconsciente ou subconscientemente regressei na penúltima vez que estivemos em Paço de Arcos, tu regressada a Ítaca, quando em vez de ir sózinho contemplar o rio ou o mar, como sugeriras, resolvi passar pelo Parque dos Poetas para uma sessão fotográfica complementar. ( "a marquesa de alorna no parque dos poetas em oeiras" https://aoescorrerdapena.blogspot.pt/2017/09/a-marquesa-de-alorna-no-parque-dos.html) Não me lembro quem é o poeta em que te aninhaste. Já descobri, trata-se do poeta cabo-verdiano Jorge Barbosa, de quem no final transcrevo um apropriado poema. 

Ao rever as fotos, lembro-me da cena do arco-íris mas já esquecera o poeta do amor pelas pessoas apesar do seu desencanto, que figura numa das fotos, Manuel Bandeira e o seu "Vou-me embora para Pasárgada". 

Beijos de Ulisses para Penélope


Poema do mar por Jorge Barbosa


O drama do Mar,
O desassossego do Mar,
            sempre
            sempre
            dentro de nós!

O Mar!
cercando
prendendo as nossas Ilhas,
desgastando as rochas das nossas Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
roncando nas areias das nossas praias,
batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...

O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das ilustrações
nas fitas de cinema
e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da terra!

O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais!...

O Mar!
saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados,
histórias da baleia que uma vez virou a canoa...
de bebedeiras, de rixas, de mulheres, nos portos estrangeiros...

O Mar! dentro de nós todos,
no canto da Morna,
no corpo das raparigas morenas,
nas coxas ágeis das pretas,
no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente!

            Este convite de toda a hora
            que o Mar nos faz para a evasão!
            Este desespero de querer partir
            e ter que ficar!



Vou-me embora pra Pasárgada, por Manuel Bandeira


Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água.
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.


© MANUEL BANDEIRA
In Libertinagem, 1930

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