quinta-feira, 31 de outubro de 2019

pingos do mindelo 12.19 - nocturnos

* Victor Nogueira

PINGO = gota; café com leite servido em chávena de café (no sul diz-se "garoto"); grão ou conta de ouro.

NOCTURNO = Sonata de carácter triste; parte do ofício das matinas; que se faz ou sucede de noite.


O separador do Google Chrome hoje afinfa-nos com o Halloween ou Dia das Bruxas. Escreveu outrora Cervantes, pela voz de D. Quixote, que não acreditava em bruxas, mas que as havia, havia. 
Eu cá não acredito na sua existência, nem em bruxedos, bruxarias e maus-olhados ou assombrações, embora a crença popular na sua existência tenha ao longo dos milénios levado à morte de muitas mulheres, queimadas em fogueiras, ateadas pela fúria popular, em "divertidos" folguedos, ou pela "Santa Inquisição"

Célebres ficaram as chamadas "bruxas de Salém" (The Crucible), tema duma peça de teatro de Arthur Miller, denunciando o anticomunismo do que ficou conhecido como "macarthismo".

Noutro registo há as bruxas boas ou más criadas por Walt Disney, muitas vezes baseadas em "contos de fadas" de origem popular, por vezes tenebrosos.

Mas as "bruxas" revivem espalhando-se pelas sete partidas do mundo, como mais um negócio consumista para encher a bolsa do capital.

Contudo, em tempos de igualdade do género, haverá alguém que defenda a criação do "Dia dos Bruxos" ou. no ramo da doçaria, o "doce do avô" ou os "papos de anjolas"?!

O tempo continua cinzentonho, mas não de chuva quase contínua ou não fosse a meteorologia apenas previsional, Nada de novo se passa no quintal, salvo o restolho  ter sido coberto por um oleado para que se decomponha para utilização posterior como adubo natural. Rolas de negro "penadas" e saltitantes pardais, como se fossem gaivotas em terra, esvoaçam pelo campo ou pousam com brevidade no muro do quintal.

Continuando as propostas literárias e musicais relacionadas com o outono, que por estas bandas não tem árvores esquálidas, de ramos descarnados pela queda das folhas em tapetes dum castanho dourado, o palco é para "Les Feuilles Mortes", escrito pelo poeta francês surrealista Jacques Prévert em 1945, tema do filme "Les Portes de la nuit", realizado em 1946  por  Marcel Carné, Dois são os registos sonoros de "As folhas mortas" que se apresentam: o de Cora Vaucaire e o de Yves Montand.


Cora Vaucaire "Les feuilles mortes" (versão original) - Prévert/Kosma


Yves Montand - "Les Feuilles Mortes"  (Autumn Leaves)


Les Feuilles Mortes - Jacques Prévert

Oh, je voudrais tant que tu te souviennes,
Des jours heureux quand nous étions amis,
Dans ce temps là, la vie était plus belle,
Et le soleil plus brûlant qu'aujourd'hui.
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle,
Tu vois je n'ai pas oublié.
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle,
Les souvenirs et les regrets aussi,
Et le vent du nord les emporte,
Dans la nuit froide de l'oubli.
Tu vois, je n'ai pas oublié,
La chanson que tu me chantais...
C'est une chanson, qui nous ressemble,
Toi qui m'aimais, moi qui t'aimais.
Nous vivions, tous les deux ensemble,
Toi qui m'aimais, moi qui t'aimais.
Et la vie sépare ceux qui s'aiment,
Tout doucement, sans faire de bruit.
Et la mer efface sur le sable,
Les pas des amants désunis.
Nous vivions, tous les deux ensemble,
Toi qui m'aimais, moi qui t'aimais.
Et la vie sépare ceux qui s'aiment,
Tout doucement, sans faire de bruit.
Et la mer efface sur le sable,
Les pas des amants désunis...

Sobre este  tema Serge Gainsbourg escreveu  e interpretou "La Chanson de Prévert ", em 1961


Serge Gainsbourg - "La chanson de Prévert"

Oh je voudrais tant que tu te souviennes
Cette chanson était la tienne
C'était ta préférée, je crois
Qu'elle est de Prévert et Kosma

Et chaque fois les feuilles mortes
Te rappellent à mon souvenir
Jour après jour les amours mortes
N'en finissent pas de mourir

Avec d'autres bien sûr je m'abandonne
Mais leur chanson est monotone
Et peu à peu je m'indiffère
A cela il n'est rien à faire

Car chaque fois les feuilles mortes
Te rappellent à mon souvenir
Jour après jour les amours mortes
N'en finissent pas de mourir

Peut-on jamais savoir par où commence
Et quand finit l'indifférence
Passe l'automne vienne l'hiver
Et que la chanson de Prévert

Cette chanson, Les Feuilles Mortes
S'efface de mon souvenir
Et ce jour là, mes amours mortes
En auront fini de mourir

No anterior  pingos do mindelo 11.19 - "veija-me, veija.me muito ....  falou-de de "Chanson d'automne", de Charles Baudelaire, que serviu de inspiração a outra criação de Serge Gainsbourg: "Je suis venu te dire que je m'en vais"


Serge Gainsbourg - "Je suis venu te dire que je m'en vais"


Je suis venu te dir'que je m'en vais
et tes larmes n'y pourront rien changer
comm'dit si bien Verlaine "au vent mauvais"
je suis venu te dir'que je m'en vais
tu t'souviens des jours anciens et tu pleures
tu suffoques, tu blémis à présent qu'a sonné l'heure
des adieux à jamais
oui je suis au regret
d'te dir'que je m'en vais
oui je t'aimais, oui, mais- je suis venu te dir'que je m'en vais
tes sanglots longs n'y pourront rien changer
comm'dit si bien Verlaine "au vent mauvais"
je suis venu d'te dir'que je m'en vais
tu t'souviens des jours heureux et tu pleures
tu sanglotes, tu gémis à présent qu'a sonné l'heure
des adieux à jamais
oui je suis au regret
d'te dir'que je m'en vais
car tu m'en as trop fait- je suis venu te dir'que je m'en vais
et tes larmes n'y pourront rien changer
comm'dit si bien Verlaine "au vent mauvais"
tu t'souviens des jours anciens et tu pleures
tu suffoques, tu blémis à présent qu'a sonné l'heure
des adieux à jamais
oui je suis au regret
d'te dir'que je m'en vais
oui je t'aimais, oui, mais- je suis venu te dir'que je m'en vais
tes sanglots longs n'y pourront rien changer
comm'dit si bien Verlaine "au vent mauvais"
je suis venu d'te dir'que je m'en vais
tu t'souviens des jours heureux et tu pleures
tu sanglotes, tu gémis à présent qu'a sonné l'heure
des adieux à jamais
oui je suis au regret
d'te dir'que je m'en vais
car tu m'en as trop fait


Nocturno outonal em Alcobaça - foto victor nogueira


quarta-feira, 30 de outubro de 2019

pingos do mindelo 11.19 - "veija-me, veija.me muito ... "

* Victor Nogueira

E esta, hein?, como diria o Fernando Pessa. A minha estimada antiga vizinha na Praia do Bispo publica algumas com piada!


Agora é que percebi a canção: «veija-me./ veija-me muito.», quando os lábios e os olhos em transe se confundem e se metem as mãos pelos pés. Sim essa celebérrima canção de 1940, escrita pela então adolescente Consuelo Velásquez, ainda eu não era nascido, interpretada por cantores de todo o mundo. Está pois desvendado o verdadeiro significado de "Besa-me mucho", a seguir interpretada por Cesária Évora.


´Cesária Évora - "Besa-me mucho"

O nevoeiro e a chuva desceram ao povoado, cobrido tudo de melancolia. Apesar disso, as rosas continuam viçosas, enquanto de quando em quando velozes bandos de rolas sobrevoam os campos e a chuva tamborila no cimento, como delicadas pedrinhas.

O jardim é um espaço com ar  um tanto ou quanto selvático, para lá dos frutos que se vão desenvolvendo no limoeiro e na tangerineira. enquanto na horta crescem nabiças. 









Com ajuda do Paulo os livros já estão colocados nas prateleiras, faltando a tarefa fastidiosa de ordená-los. Com o quarto da frente desimpedido, resta arrumar o do meio e a cozinha. A noite caíu e fica, de Paul Verlaine, a "Chanson d’automne".


Charles Trenet - "Chanson d'automne"


Les sanglots longs
Des violons
De l’automne
Blessent mon coeur
D’une langueur
Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l’heure,
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure;

Et je m’en vais
Au vent mauvais
Qui m’emporte
Deçà, delà
Pareil à la
Feuille morte.



Imagens captadas em 2019.10.30


pingos do mindelo 10.19

* Victor Nogueira

"L'importante c'est la rose", crois moi" dizem  Louis Amade e o Principezinho, de Saint-Exupery. E alguém me diz: "As rosas sorriem para ti! E sorrindo elas para mim serão, em memória, um campo da cor do trigo em flor, como na historia d'o Pequeno Príncipe, o Conde Niño?

Portanto a abertura é com as rosas do quintalejo, neste dia cinzento que ameaça ser pluvioso, com um solitário bando de rolas, em cerrada formação, cruzando o campo. Mas não só rosas, também outras flores merecem não ser esquecidas!








A América Latina está em convulsão. Enviam-me um vídeo da multidão entoando "El Pueblo Unido, jamás será vencido!". É o Chile aquele país onde se tentou implantar o socialismo por meios pacíficos, através de processos eleitorais "democráticos". E a América Latina aquele subcontinente que o Tio Sam considera o seu qintalejo privativo, organizando intervenções militares, golpes de Estado, massacres  e assassinatos contra Governos e pessoas que ousem tentar pôr causa os interesses capitalistas norte-americanos. É o Chile aqueke país onde se instaurou uma feroz ditadura militar em benefício do gramde capital estado-unidense, e sobre o qual Kissinger afirmava: 

"Não vejo porque precisamos ficar parados e assistir um país tornar-se comunista por causa da irresponsabilidade do seu povo. As questões são muito importantes para deixarmos os eleitores chilenos decidirem por si mesmos."
- Sobre o apoio dos EUA ao golpe que derrubou Salvador Allende, presidente democraticamente eleito do Chile, em 11 de setembro de 1973.


Inti Illimani - "El pueblo unido jamás será vencido" -  Chile 2019

El pueblo unido jamás será vencido é uma canção com música de Sergio Ortega e texto do grupo Quilapayún, compota em junho de 1973, para o Governo de Unidade Popular liderado por Salvador Allende.



O "fantasma" de Kissinger assombrou Portugal e a "Revolução dos Cravos", que deveria ser "estancada" se necessário com um banho de sangue para servir de vacina na Europa. Em alternativa Kissinger acabou por apoiar o "Grupo dos Nove" e o PS de Soares, que chegou a defender a intervenção estrangeira para esmagar o que ele dizia ser a "Comuna de Lisboa" [e Setúbal]

No vídeo acima  os manifestantes no Chile entoam "O Povo unido, jamais será vencido". Mas, apesar de a cantiga (poder) ser uma arma, a verdade é que em Portugal a contra-revoluçao liderada por Mário Soares venceu. Esta foi  uma das canções muito entoadas após o 25 de Abril, seguindo-se as versões de Luís Cila e de Ary dos Santos.


1974 - Luís Cília - "O povo unido jamais será vencido"

El Pueblo Unido Jamás Será Vencido - Sérgio Ortega e Grupo  Quilapayún

El pueblo unido, jamás será vencido,
El pueblo unido jamás será vencido...

De pie, cantar
Que vamos a triunfar.
Avanzan ya
Banderas de unidad.
Y tú vendrás
Marchando junto a mí
Y así verás
Tu canto y tu bandera florecer,
La luz
De un rojo amanecer
Anuncia ya
La vida que vendrá.

De pie, luchar
El pueblo va a triunfar.
Será mejor
La vida que vendrá
A conquistar
Nuestra felicidad
Y en un clamor
Mil voces de combate se alzarán
Dirán
Canción de libertad
Con decisión
La patria vencerá.

Y ahora el pueblo
Que se alza en la lucha
Con voz de gigante
Gritando: ¡adelante!

El pueblo unido, jamás será vencido,
El pueblo unido jamás será vencido...

La patria está
Forjando la unidad
De norte a sur
Se movilizará
Desde el salar
Ardiente y mineral
Al bosque austral
Unidos en la lucha y el trabajo
Irán
La patria cubrirán,
Su paso ya
Anuncia el porvenir.

De pie, cantar
El pueblo va a triunfar
Millones ya,
Imponen la verdad,
De acero son
Ardiente batallón
Sus manos van
Llevando la justicia y la razón
Mujer
Con fuego y con valor
Ya estás aquí
Junto al trabajador.



"Portugal Ressuscitado " - 1977 - 25 Canções de Abril

Portugal Ressuscitado
José Carlos Ary dos Santos

Depois da fome, da guerra
da prisão e da tortura
vi abrir-se a minha terra
como um cravo de ternura.

Vi nas ruas da cidade
o coração do meu povo
gaivota da liberdade
voando num Tejo novo.

Agora o povo unido
nunca mais será vencido
nunca mais será vencido

Vi nas bocas vi nos olhos
nos braços nas mãos acesas
cravos vermelhos aos molhos
rosas livres portuguesas.

Vi as portas da prisão
abertas de par em par
vi passar a procissão
do meu país a cantar.

Agora o povo unido
nunca mais será vencido
nunca mais será vencido

Nunca mais nos curvaremos
às armas da repressão
somos a força que temos
a pulsar no coração.da camioneta dos "monos".

Enquanto nos mantivermos
todos juntos lado a lado
somos a glória de sermos
Portugal ressuscitado.

Agora o povo unido
nunca mais será vencido
nunca mais será vencido.

As arrumações prosseguem, com a ajuda do vizinho Paulo. O mobiliário está  colocado nos sítios, podendo agora começar a arrumar-se a roupa, os livros, os dvd's, os discos de vinil, e os cd's de música. Uffa! No quintal está o que espera a passagem da camioneta dos "monos", depois de contactar a Junta de Freguesia.
imagens captadas em 2019.10.29

terça-feira, 29 de outubro de 2019

intermezzo

* Victor Nogueira



foto victor nogueira - eça e ramalho escreveram «O Mistério da Estrada de Sintra». Menos ambicioso, eu fotografo «O Mistério na Serra da Arrábida», onde não se sabe bem se a terra confina com o Mar-Oceano ou com o Sétimo Céu!


Álvaro de Campos - ESCRITO NUM LIVRO ABANDONADO EM VIAGEM

Venho dos lados de Beja.
Vou para o meio de Lisboa.
Não trago nada e não acharei nada.
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro.
Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:
'Fui como ervas, e não me arrancaram'

s/d

Álvaro de Campos - Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.

Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?
Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...

11-5-1928


segunda-feira, 28 de outubro de 2019

pingos do mindelo 09.19 - as mortiças labaredas

* Victor Nogueira

Não, não estamos em tempo de festas juninas, apesar de em vésperas do Verão de S. Martinho. É apenas a queima do restolho, antes que fique empapado em água, incomburente. Fica o bailado sinuoso das labaredas, embora contidas, não avassaladoras, animado pelo crepitar da matéria que vai sendo reduzida a cinza.



Até ao momento saíram furadas as previsões meteorológicas; apesar do dia cinzentonho, ainda não choveu e da parte da tarde o sol tentou irromper por entre as nuvens para nos dar um arzinho da sua graça. Um pássaro negro, um melro, pousou além no muro mas alçou voo antes de conseguir fotografá-lo. Surpreendentemente este ano não tem havido revoadas de aves ali no campo de milho após a ceifa e debulha mecâncicas. No quintalejo vão-se sucedendo as fases da vida na roseira: desde o botão que se vai abrindo até desabrochar completamente para de seguida fenecer com as pétalas, esparsas e sem viço, pelo solo.





- foto victor nogueira - 

Muitas vezes tomo as refeições na cozinha, numa mesinha que também é a mesa de apoio para prepará-las. Esta é a vista que tenho então defronte de mim, similar á da sala de jantar.

No plano de obras que venho concretizando desde há anos, e para cuja fase inicial e de arranque contei com a colaboração prestimosa do Sérgio, no plano de obras está pois e neste momento a modificação da cozinha, que inclui a mudança do lava-louças e criação duma bancada de apoio.

Será esta a vista e não uma parede aulejada (que remonta ao tempo em que o meu avô Barroso a mandou edificar, a dois passos da estação ferroviária do então comboio suburbano da Póvoa de Varzim, hoje em dia estação do metro de superfície do Porto).

Claro que a paisagem vai variando, ao sabor das estações climáticas e dos trabalhos agrícolas no campo que se estende até ao horizonte,

Que propostas suplementares ficarão para hoje? Françoise Hardy? Jacques Brel? Edith Piaff? Os Conchas? Elvis Presley? 


Françoise Hardy - "Tous les garçons et les filles"


Elvis Presley - "Are You Lonesome Tonight"


Zeca Afonso - "Maria Faia"


DISTRACÇÃO

Procuro-te
levando-me-te
como quem nas mãos leva
um sopro de fragilidade
que tu
em gesto ou palavra dispersas

Caindo na seriedade
o sorriso
apagado
Setúbal . 1989.Setembro

Mais prosaicamente, o almoço hoje foi puré de batatas com almôndegas, café e pera-rocha, que sem combustível o corpo arrefece, a cabeça entontece e falece o ânimo.


XLIX
Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.

Alberto Caeiro in "O guardador de rebanhos"

imagens captadas em 2019.10.27/28

domingo, 27 de outubro de 2019

pingos do milndelo 08.19 - sol e sombras

 * Victor Nogueira

Neblinado e cinzentonho está o dia, não soalheiro. No quintal, vista da janela desta sala em que estou, a roseira está pintalgada de rosas amarelo-pérola. Para lá da árvore da borracha espreitam rosas avermelhadas.

Esta madrugada o relógio atrasou uma hora, felicidade suprema para quem me replica que terá mais uma hora para dormir. Quem não se atrasa nem espera por nós é a Vida; essa, indiferente, prossegue a sua marcha, sendo cada vez menos  à nossa frente os primeiros dias do resto das nossas vidas, até ao silêncio final.

Hoje, que te escrevo, é o primeiro dia deste ano de 1994. Hoje, que me lês, é o primeiro dia do resto de nossas vidas. Cada dia que passa é sempre o primeiro dia do resto de nossas vidas. A única diferença é haver cada vez menos primeiros dias à nossa frente. (1994.01.01)

Que propostas de leitura, que notícias, nesta manhã não soalheiro e com um leve nevoeiro para lá da janela?

  Notícias do Bloqueio II

        Estão suspensas as palavras
        Proibidos os gestos
                   de ternura, amizade e amor.
         O silêncio invade as ruas
                   entra nas casas
                   senta-se á mesa da gente.
         Que sentido tem dizer
                   amor
                   amiga
                   camarada
                   companheiro?
         Que sentido tem
                   abrir as mãos e os olhos
                   e perguntar qual o significado do
                   que vemos, ouvimos, entendemos e sentimos?
         Gaivotas loucas, alvoraçadas, enchem os ares
         de movimento e ruído
         enquanto a vida escorre pelos dedos
                   indiferente
                   medíocre
                   submissa.  (Setúbal 1985)

Que amo e procuro em Penélope, vagueando pelas sete partidas do Mundo? E, na verdade, quem verdadeiramente é e onde está Penélope? Quem é "A" Penélope? Em que alto da madrugada a encontrarei? Que palavras novas para lá das que já lhe escrevi, para ela, remoçadas, inventarei?

O que amo em ti é a vida
são os campos, as encostas verdejantes
a cidade, os carros que passam
os animais, as plantas e as árvores
as montras iluminadas e coloridas
a chuva na vidraça ou no rosto
o sol, o mar, a brisa
o cheiro a maresia
o perfume das flores
.
O que amo em ti é
a verdade
a ternura amor que entre nós é
a camaradagem
o andar que percorre o corpo
sem segredos nem esconderijos
a novidade aventura
o frémito, o prazer, a paz
.
Somos milhares somos milhões
...........pelas estradas e pelos atalhos
...........pelos campos e pelos pinhais
...........pelas ruas e pelos becos
na cidade dos homens
................ombro a ombro
................frente a frente
................lado a lado
desencontrados  (1982.01.16 Setúbal)

Teria qualquer sentido colocar ali o retrato de Penélope,  sorridente e graciosa, como presença, pois não há  marcas dela nesta casa do Mindelo!? Mas perante a ausência, que significado ganham ou perdem as memórias e os objectos?


Não preciso da fotografia para me recordar de ti ou para me comover ou enternecer ao pensar em ti. Não é preciso que os outros saibam que eu me lembro de ti. E não me recordo de ti por causa da fotografia. Lembro-me de ti quando arrumo o armário da sala e vejo os frascos que me deste. Ou quando abro o porta-moedas e encontro o pequeno canivete. Ou quando reparo no colorido boneco do negro tocando trompete. Ou quando vejo a saboneteira, ao utilizar o lavatório. Recordo-me de ti quando barro o pão com o doce que me deste e que está no fim. Ou quando visto a elegante e bonita camisa de flanela aos quadrados. São marcas tuas, a partir das quais, conforme o dia, nascem outras recordações, enquanto para mim tiveres qualquer significado.

Olho para a saboneteira e lembro-me de Coimbra e da casa cheia de sol e do corredor com "azulejos". Vou a Leiria e no jardim lembro-me que estivemos lá: "Estive aqui com a Maria!" E lembro-me do Porto e dos cafés barulhentos e da primeira vez que foste a minha casa. Ou recordo a vez em que fomos ao Carregado ou a Santarém ou que fui ter contigo a Coimbra. (…)

Porque o que é importante és tu e não a tua fotografia ou as tuas "marcas", que sem ti nada valem. Quando deixares de ser importante para mim, então não passarão senão de adornos ou de objectos utilitários no meio de outros adornos e objectos utilitários.

A manhã escorreu com Penélope no meu pensamento. Mas outras necessidades mais prosaicas têm de ser satisfeitas, como preparar e cozinhar o almoço. Talvez lulas com puré instantâneo. E de seguida lavar e arrumar a louça. E depois, na companhia do fiel Fiesta, vaguear por aí, parando talvez à beira-mar ou à beira-rio, ouvindo música e continuando a ler as interesantes entrevistas de Oriana Fallaci a líderes políticos, feitas no idos de '70 do passado milénio: "Entrevista com a História". O tempo está insidiosamente frio e nada convidativo para andar a vaguear a pé.

Entretanto, ficam rosas, as rosas do quintalejo, no estádio deste domingo, o  último deste mês de Outubro.





Consulto a meteorologia e ela indica-me que previsionalmente toda a semana será nublada e de chuva. Vamos ver o que nos trará, mais tarde, o S. Martinho, da castanha e do bom vinho, diz a popular sabedoria.

imagens captadas em 2019.10.27