sábado, 10 de agosto de 2024

Em torno da Primavera

 


* Victor Nogueira

2024 04 02  

No Portugal do Minho a Timor havia o livro único e as então chamadas redações, sobre as vaquinhas que dão leite ou a Primavera e as andorinhas. Não me lembro se em Luanda havia andorinhas, mas se as houvesse seguramente que não anunciariam uma estação inexistente, pois havia apenas duas, a quente, de copiosos aguaceiros e assustadoras trovoadas relampejantas, de calor infernal, e a do cacimbo, de temperatura amena e noites orvalhadas (cacimbo). Também não havia burricos ou bois puxando carroças pelas ruas, nem vaquinhas ou ovelhinhas ordenhadas com o leite distribuído ao domicílio. O leite que bebíamos era enlatado, da Nestlé, condensado ou em pó. Portantus, o que o livro único no Portugal do Minho a Timor nos "ensinava" era para muitos uma fantasia, um livro virtual, duma suposta realidade que nada tinha ver com a nossa mundividência.

Estive a estudar no Porto em 1962/63, no Grande Colégio Universal e deste nada recordo salvo episódios anedóticos, com colegas meus. Um entendia que eu tinha forçosamente de conhecer um qualquer parente dele que residia em Luanda, como se esta fosse uma aldeia e não uma cidade com cerca de 150 mil habitantes. Outro espantava-se quando lhe afirmava que não havia leões a passearem-se por Luanda. Um terceiro admirava-se de eu não ser "preto", pois quem nascesse em África tinha que ser forçosamente "preto" e não "branco", como eu, que lhe dizia que nascera em Angola! Para ele, eu estava a mentir-lhe!

No Portugal de faz-de-conta do Minho a Timor, em Portugal nevava, chovia e fazia frio na época natalícia, enquanto que em Luanda, nos trópicos, a data era pluviosa, infernalmente quente, todo o mundo em mangas de camisa e na praia.

Para celebrar este Abril do cinquentenário, dois poemas, um de Miguel Torga, outro de Alberto Caeiro.

Primavera, por Miguel Torga


Abre-te, Primavera!
Tenho um poema à espera
Do teu sorriso.
Um poema indeciso
Entre a coragem e a covardia.
Um poema de lírica alegria
Refreada,
A temer ser tardia
E ser antecipada.
Dantes, nascias
Quando eu te anunciava.
Cantava,
E no meu canto acontecias
Como o tempo depois te confirmava.
Cada verso era a flor que prometias
No futuro sonhado…
Agora, a lei é outra: principias,
E só então eu canto confiado.

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Quando vier a Primavera, por Alberto Caeiro

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

7-11-1915

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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)