Francisco Gabriel / Victor Nogueira
Estava em Évora, concluindo o curso de Sociologia.
Estudante e dirigente no Movimento Associativo Estudantil
Universitário
Em 1932, em todos os manuais de leitura estava incluída a
seguinte frase: “Na família, o chefe é o pai; na escola, o chefe é o mestre; na
igreja, o chefe é o padre; na Nação, o chefe é o governo.”
Era uma sociedade cinzenta e repressiva, com muita
desigualdade social, controlada pelos Serviços de Censura e vigiada pela PIDE
(polícia política) e a sua rede de informadores. Eram limitados os direitos de
reunião, de manifestação, de associação e fraudulentos os processos eleitorais.
Grande parte da população vivia em barracas ou habitações insalubres, sem saneamento básico, electricidade e água canalizada ao domicílio, especialmente a que vivia em
bairros de lata ou no campo.
A censura controlava a informação na imprensa escrita
e audiovisual, proibindo tudo o que pusesse em causa o Governo e o sistema. Os partidos políticos
eram proibidos e os seus militantes ou simpatizantes perseguido, presos e torturados, por vezes
mesmo assassinados, pela polícia política e outras forças policiais. Os sindicatos eram controlados pela polícia política
e as greves proibidas. A entrada na
Administração Pública (Estado)dependia de informação favorável da polícia
política e de prestarem juramento que estavam integradas na ordem social
vigente e repudiavam activamente todas as ideias subversivas e o comunismo. Era
proibida a emigração, mas as pessoas emigravam clandestinamente, a salto, para
fugirem à miséria e à guerra colonial. Era proibido dizer mal do Governo e da
sua política, contestar a guerra colonial ou defender a independência das
colónias; quem o fizesse estava sujeito a ser preso pela polícia política.
Havia listas de livros e de filmes proibidos pelas Comissões de Censura.
As mulheres tinham menos direitos que os homens e estavam sujeitas
à autoridade do marido. Estes podiam proibi-las de terem uma profissão ou de trabalharem
fora de casa. O divórcio era proibido para quem tivesse casado pela Igreja
Católica, o que era a maioria dos casamentos. Os filhos nascidos fora do
casamento, considerados ilegítimos, tinham menos direitos que os filhos “legítimos”, havendo muitas pessos cujos
documentos de identificação diziam “filho de pai incógnito”, porque o pai se recusara a
reconhecê-los ou perfilhá-los. As relações entre rapazes e raparigas,
especialmente em meios pequenos, eram vigiadas e controladas
O casamento era proibido às mulheres em profissões como
hospedeiras da TAP, telefonistas e enfermeiras. As mulheres não podiam seguir
as carreiras da magistratura, diplomática, militar e polícia. Mesmo assim, os costumes
impediam as mulheres de exercer certas profissões.
As professoras do ensino primário só podiam casar se
autorizadas pelo Ministro da Educação e desde que provassem que o futuro marido
tinha rendimentos certos e informação favorável das autoridades administrativas
e da polícia política. Nas exolas, sempre que fosso possível, havia separação
entre rapazes e raparigas: havia escolas do ensino primário distintas, umas
para rapazes, outras para as raparigas, assim como havia liceus masculinos e
liceus femininos. Quem tinha
possibilidades frequentava o Liceu, que permitia tirar um curso universitário.
Quem não tinha possibilidades económicas, ficava apenas com a 4ª classe do
ensino primário ou tirava um curso tecnico-profissional numa escola industrial
ou comercial. Os livros de estudo tinham de ser aprovados pelo Governo e eram o
“livro único” no Portugal do Minho a Timor, como então se dizia.
Disto falo num poema meu, intitulado “Raízes”
(…) Em Luanda nasci
Em Luanda vivi
Em Luanda estudei
Não Angola mas Portugal
Todos os rios e afluentes
Todas as linhas férreas e apeadeiros
Todas as cidades e vilas
Todos os reis e algumas batalhas
as plantas e animais
que não eram do meu país.
De Angola
pouco sabiamos
até ao 4 de Fevereiro, até ao 15 de Março
Veio a guerra e
a mentira
que alimenta
a Guerra,
Veio a guerra e a violência
veio a guerra e a liberdade.
Em Évora a 11 de Novembro
Em Luanda a bandeira do meu país
no mastro subiu.
Era o tempo da liberdade e da esperança. (…)
As pessoas não tinham assistência na doença nem na
maternidade, era proibida a interrupção voluntária da gravidez e não havia
assistência/e acompanhamento durante a gravidez e no parto. Por esse motivo a mortalidade infantil era elevada.
Não havia subsídios de invalidez nem para os desempregados
nem pensões de reforma para a maioria da população. Pelas ruas, nas esquinas e
nos adros das igrejas ou batendo à porta das casas, muitas pessoas, especialmente
crianças ou idosos, pediam “uma esmolinha, pela Graça de Deus”. Nas empresas
privadas os salários e as pensões de reforma das mulheres eram muito inferiores
aos dos homens. Nalgumas profissões os trabalhadores não tinham ordenado, como
os empregados de café ou os taxistas, que viviam apenas das gorjetas dos
clientes. Aliás, dar uma gorjeta era um hábito generalizado.
Havia uma elevada taxa de analfabetismo, com maior
incidência nas mulheres. Os analfabetos não podiam votar nem serem eleitos.
Foi uma enorme sensação de alívio, por podermos falar e agir
sem o receio de sermos perseguidos e presos
Para a população branca a situação era similar à de Portugal,
embora houvesse mais à-vontade no vestuário feminino e liberdade nas relações
entre rapazes e raparigas. Até ao início da guerra colonial a censura e
repressão sobre a população branca era menor que em Portugal
A esmagadora maioria da população era negra e não tinha
quaisquer direitos políticos nem sociais, estando sujeita ao “Estatuto do Indigenato”, que
só foi abolido após o início da guerra colonial.
Os “indígenas” não podiam frequentar as escolas do ensino
primário, salvo a das missões católicas ou protestantes, pelo que a
maioria não sabia ler nem escrever em
português. Para terem os mesmos direitos que os brancos tinham de abandonar os
costumes tradicionais e fazerem prova de se expressarem correctamente em
português, escrito e falado, passando a ser considerados assimilados (o que era
uma minoria na população angolana, tal como nas restantes colónias africanas) e
poderem então frequentar o ensino técnico-profissional e o liceal.
A maioria dos que terminavam o liceu, qualquer que fosse a
etnia, não tinha possibilidades de prosseguir estudos universitários em
Portugal (a Metrópole) Até ao início da guerra colonial, em 1961, havia Liceus
apenas nalgumas capitais de distrito (Angola era 14 vezes maior que Portugal) e
só em 1962 foram criados estudos universitários
em Luanda, cursos de medicina, ciências e engenharias, em Nova Lisboa,
(actual Huambo), cursos de agronomia e veterinária, e em Sá da Bandeira
(actual Lubango), cursos de letras,
geografia e pedagogia. Alguns anos mais tarde foi criado em Luanda o curso de
economia.
A maioria da população negra, sobretudo nas regiões rurais,
estava sujeita ao regime de contrato, na prática ao trabalho forçado, nas
explorações agrícolas e nas obras públicas, sem direitos e sujeitas a castigos
físicos, sem julgamento prévio, aplicados quer pelas autoridades
administrativas, quer pelos patrões. Até ao início da guerra colonial a
população negra trabalhadora tinha de ter uma caderneta de trabalho, assinada
pelo patrão, sem a qual estava sujeita a ser presa e a trabalhar na estrada
(obras públicas). As forças policiais, em busca de elementos subversivos,
faziam periodicamente “rusgas” nos musseques, bairros da população negra e de
brancos pobres, água ao domicílio ou saneamento básico.
Não havia regime de apartheid (como na colónia portuguesa de
Moçambique e nos países racistas de minoria branca, como as antigas colónias
inglesas da Rodésia do Sul e da África do Sul). Mas existia uma enorme segregação social, que
afectava a maioria da população negra, sujeita aos trabalhos mais pesados ou
menos gratificantes e mal remunerados.
Uma vez, em miúdo, em Luanda, ao atravessar uma rua, fui
atropelado por um negro que conduzia uma bicicleta. Nem ele nem eu conseguimos
evitar o atropelamento, embora tivéssemos tentado evitá-lo. Considerei então de
uma enorme injustiça que ele ele tivesse sido castigado, sem apelo nem agravo,
por ter atropelado um “menino branco”.
Quando fui estudar para Évora, habituado à liberdade de
convívio entre rapazes e raparigas, em Luanda e na Universidade em Lisboa, “surpreendeu-me”
a segregação na convivência entre rapazes
e raparigas. As raparigas e nossas colegas que frequentavam o café connosco,
por serem irmãs ou namoradas dum ou
doutro no nosso grupo, ou apenas amigas, eram consideradas pela maioria dos
eborenses como raparigas perdidas ou mesmo prostitutas. Na casa de hóspedes em que vivia, os
estudantes e as pessoas empregadas tinham quartos próprios, independentes, mas
as raparigas estudantes dormiam no mesmo quarto com a hospedeira, não fosse o
diabo tecê-las.
No Instituto [Económico e Social de Évora} onde ia frequentar
sociologia, ao entrar pela 1ª vez noma sala de aulas, como a 1ª fila de
carteiras estava vaga, sentei-me numa delas. Era obrigatório assistir às aulas,
pelo que o contínuo marcava as faltas aos ausentes. O senhor Veladas abordou-me dizendo que não
podia sentar-me nas 1ªs filas, pelo que mudei de lugar pois, entretanto, entrara o
professor. No fim da aula fui ter com o contínuo para me dizer porque não podia
sentar-me na 1ª fila, que aliás continuara desocupada. Respondeu-me que as 1sª
filas eram reservada às meninas. Perguntando-lhe
a razão disso, respondeu.me que as meninas não se podiam sentar no meio dos
rapazes, porque podiam fazer coisas que não deviam. Como o meu curso tinha
alguns contestatários, de que passei a ser o líder, pouco depois as meninas
sentavam-se no meio dos rapazes, não só no nosso curso, como nos restantes!
Uma vez estava no jardim público com a minha namorada
Celeste, com quem vim a casar, quando lhe dei um casto e furtivo beijo, logo de
seguida sentindo a varinha do guarda, que não vira, batendo-me no ombro e
avisando-me que “poucas vergonhas” daquelas não eram permitidas!
O fim da guerra colonial e todas, as conquitas então
alcançadas com o movimento dos trabalhadores e das populações por melhores
condições de vida e de trabalho, apesar de alguns das liberdades, dos direitos
e dos nossos sonhos de então ainda se não terem concretizado ou terem sido
desvirtuados.
Apesar dos retrocessos e das insuficiências no mundo do
Trabalho, da Justiça, do Ensino, da Saúde, da Segurança Social face a
vicissitudes da vida, a luta por uma sociedade mais justa, mais igualitária,
mais fraterna e mais solidária mantém-se como necessária à Humanidade, conjuntamente
com a luta pela Paz entre os Povos e a resolução pacífica dos conflitos
internacionais.
Não há “uma”. Mas pelo contraste entre o antes e o “agoramente”,
na música e poesia “Os vampiros”, “Grândola, Vila Morena” e “Canto Moço”, de
José Afonso, “Soneto do Trabalho” e “Portugal ressuscitado”, de Ary dos Santos,
“Liberdade”, de Sérgio Godinho, “Pedra filosofal”, de António Gedeão … Sem esquecer as “Canções Heroicas”, de
Fernando Lopes Graça.
Ou os romances “Cerro Maior”, de Manuel da Fonseca,
“Levantados do chão”, de José Saramago e “Até amanhã, camaradas”, de Manuel
Tiago, pseudónimo de Álvaro Cunhal. De
referir a peça teatral “O Canto do Papão Lusitano”, de Peter Weiss, entre
outras.
Na pintura “A poesia está na rua”, de Helena Vieira da Silva,
os “Desenhos da prisão”, de Álvaro Cunhal ou os cartoon de João Abel Manta, que
retratam os tempos anteriores e posteriores ao 25 de Abril.
Sobre a colonização portuguesa, os poemas “Monangambé” e
“Carta dum contratado”, de António Jacinto, “Meninos do Huambo”, de Rui
Monteiro”, poetas angolanos, “Reza Maria”, de José Craveirinha, poeta
moçambicano, “Trindade”, de Alda do Espírito Santo, poetisa santomense sobre o
massacre de Bafetá. Em prosa são de referir, p. ex., o romance “Maiombe”, de
Pepetela, angolano, ou os contos reunidos sob o título “Luuanda”, de Luandino
Vieira
Como outras revoluções anteriores, no mundo e ao longo dos
séculos, o 25 de Abril foi o resultado da luta do povo português e dos povos
das colónias pela liberdade e por melhores condições de vida e de trabalho,
numa sociedade mais justa, igualitária, fraterna e solidária.
Galeria fotográfica
(Se tiveres alguma foto da altura estás a vontade para
enviar)
Fotos Victor Nogueira – Mural na Rua António Maria Cardoso (sede da PIDE-DGS) [Comissão Organizadora das Comemorações Populares do 25 de Abril] - E quatro companheiros nesta rua antes de se render a PIDE matou, tombaram pela liberdade no dia da libertação
Foto Victor Nogueira - Mora, 1975
CAMARADA NÃO TE DEIXES ILUDIR COM FALSOS SOCIALISMOS. SOCIALISMO HÁ SÓ UM, O SOCIALISMO PROLETÁRIO O QUE LIBERTA O HOMEM DA EXPLORAÇÃO DO CAPITALISMO E O CONDUZ AO COMUNISMO. NÃO TE ILUDAS, NEM COM FALSOS SOCIALISMOS NEM COM FALSAS LIBERDADES
Foto Victor Nogueira - Évora 1976 03 12 manifestação dos trabalhadores rurais alentejanos
Foto Victor Nogueira - Évora 1976 03 12 Manifestação dos trabalhadores rurais, pela Reforma Agrária – ‘A terra a quem a trabalha´
Fotos Victor Nogueira – Mural na Rua António Maria Cardoso (sede da PIDE-DGS) [Comissão Organizadora das Comemorações Populares do 25 de Abril] - E quatro companheiros nesta rua antes de se render a PIDE matou, tombaram pela liberdade no dia da libertação