* Victor Nogueira
Num dos meus 1ºs anos do Liceu uma redação de Português tinha como tema "O que vês da tua janela". Como morávamos na Praia do Bispo, à beira-mar, com o Brasil defronte, do outro lado do oceano, escrevi um texto em que falava do mar e das viagens marítimas "para dar novos mundos ao mundo". Mas a professora devolveu-mo com nota negativa, argumentando que não fora escrito por mim, assim cortando cerce as minhas pretensões literárias. Ao contrário, no 3º ciclo liceal, as minhas traduções de textos ingleses eram pela professora - Laura Soveral - e devido à sua qualidade partlhados em voz alta , por ela e perante a turma. Mas, tal como a minha biblioteca da infância e da adolescência, também os meus cadernos escolares se perderam, por terem ficado em Luanda.
Muitos anos depois comprei um livro com textos de crianças e comentei para a Celeste que não acreditava que tivessem sido escritos por miúdos. A Celeste foi buscar os cadernos dos alunos para que eu lesse os textos livres deles e tive de render-me à evidência. Mas nos meus tempos de liceu, salvo raras excepções, nos anos 50 e 60 do passado século, a norma era nivelar pela mediania quem sobressaísse pela inventividade, originalidade ou criatividade.
1. - Parque Florestal da Ilha do Cabo (Luanda)
1963/64
Ouve-se o marulhar das águas. Além, um tractor. No mar [na baía] um barco evoluciona e as gaivotas mergulham pescando. Um barco de guerra entra na baía. É o F331. Uma criança chora. Provavelmente alguém desabafou a sua fúria sobre ela. Mas o ruído predominante é o do marulhar das ondas. A temperatura ideal seria a de agora. Ali os trabalhadores pousam as pás à sombra de um pinheiro. Lá longe, do outro lado, a chaminé da SECIL [fábrica cimenteira] deixou de lançar para a atmosfera o elegante penacho de fumo branco. Mas, será que está trovejando? Eis que uma breve aragem faz com que as folhas das palmeiras entrem nesta sinfonia da natureza. Não, aquilo deve ser um avião e não a trovoada. Mas parece estar sempre no mesmo sítio. Através dos pinheiros, naquela curva, divisa-se ainda o navio de guerra. Nesta sinfonia há instrumentos que não consigo identificar. Que paz, nada de yé-yés; só, completamente entregue à contemplação desta maravilha, sempre diferente, que é a natureza.
Os pescadores acabam de puxar o dongo [canoa, piroga] para a praia. O Zé come pão de ló. Hoje resolveu ocupar o meu lugar de comilão mor. Duas gaivotas, elegantes na sua alvura, passeiam à beira-mar. Aquele barco ancorado dança vagarosamente ao sabor das ondas. Gostaria de poder descrever isto tudo, não em prosa, não em verso, mas musicalmente.
Notas finais: lado negativo: moscas, praia suja, água fria. (Num dia qualquer de Novembro 1963 a Julho 1968)
2. - Um acampamento na Iha do Mossulo (Luanda)
1962
Fizemos um acampamento [da Mocidade Portuguesa] na Ilha do Mossulo, nas férias. Gostei imenso da vida ao ar livre e lamento não ter tomado parte noutros acampamentos. Levantavamo-nos entre as 6:00 e as 6:30. Como era o primeiro a acordar, na minha barraca (tenda) acordava os meus três companheiros. Até às 7:00 havia missa, às 8:00 mata-bicho (pequeno-almoço). Até às dez passeávamos, depois tomávamos banho [na praia] e às 13:00 almoçávamos. Às 17:00 tornávamos a tomar banho e em seguida lanchávamos. Por volta das 19 horas era o jantar e às 21:00 a "chama" (convívio à roda duma fogueira). Finda esta, deitávamo-nos. A ronda era feita pelos Irmãos [Maristas]. O tempo corria calma e alegremente. Pena é que fossem só quatro dias.
Na "chama" houve números muito bons. Contavam-se anedotas, cantava-se e, no final, após as exortações do capelão-militar, senhor alferes Alexandre, guardava-se um minuto de silêncio. [O irmão director [Colégio Cristo-Rei, dos Irmãos Maristas]. José Hermeto, aka Ignacio Gregory, interpretou canções do folclore brasileiro].Formou-se uma orquestra, com vocalista, reco-reco, tambor (um caixote), pandeiretas, ferrinhos, castanholas e uma garrafa e uma faca (instrumento musical inventado por nós).O capelão cantava bem. No último dia estiveram lá uns brasileiros, entre eles o vice-cônsul do Brasil [muito brincalhão], que animaram a "chama" com as suas anedotas. (CS - 1962.01.15)
Gostei bastante dos dias que passei no acampamento. Passámos uns dias alegres e em franca camaradagem. (...) Na última noite os pretos que foram connosco fizeram uma batucada e se os deixassem seriam capazes de batucar a noite inteira. (...) Os únicos "senões" foram os mosquitos, os meus braços pareciam uma planície com montes, e os caranguejos. Na minha barraca nunca apareceu nenhum, a não ser na última noite, mas esse deve lá ter sido posto. Já estávamos deitados quando um dos meus companheiros de barraca gritou "Um caranguejo!" Agora imagine-se três pessoas levantarem-se e tentarem sair da barraca ao mesmo tempo, por uma porta estreita. Por fim lá conseguimos sair daquele inferno. Lá dentro só ficou o quarto rapaz, que, acendendo a lanterna, se pôs a perseguir o caranguejo com uma machadinha. Subitamente ouvimos um berro e pensámos que o caranguejo lhe tivesse mordido. Nada disso, ele é que o tinha morto, celebrando a "passagem de mundo" daquele perturbador do nosso descanso.
Uma noite duas barracas ruíram uma "cónica" e outra "canadiana". Os donos da "cónica" - três alunos - ergueram-na. Mas o Irmão [Marista] a quem pertencia a canadiana teve de dormir ao relento, pois não sabia montá-la e nenhum [de nós] se ofereceu para ajudá-lo. Foi bem feito, pois ele durante todo o tempo que durou o acampamento distinguiu-se sobremaneira pela sua atitude antipática. (MLF - 1962.02.01)
3. - Eleições e manifestações na fase terminal do fascismo (Évora)
1973
30 foram as camionetas (fora os automóveis particulares) que de Évora se deslocaram a Lisboa para apoiar o Marcelo [Caetano]. Beja, Santarém, Leiria, Portalegre, enfim, milhares de tipos confluíram para a manifestação do entardecer [em Lisboa]. Pena não autorizarem as contra-manifestações. (...) O Diogo diz que da Amareleja não terão ido pessoas à manifestação (salvo talvez os da Casa do Povo). Não porque sejam do reviralho, mas porque não se metem nestas coisas (viver não custa..). (MCG - 1973.07.19)
Ontem à noite (1973.10.24), no regresso de Arraiolos, muitos Mercedes a caminho de Évora, onde às 21:30 alentejanos cinzentos de ar sisudo aguardavam ordeiramente o início da sessão de propaganda da ANP [Acção Nacional Popular]. Debaixo dos arcos [arcadas], uma fila de homens, com ar humilde e jeito de rebanho descido da camioneta, dirigia-se para o cinema onde se realizaria a tal sessão. A Oposição não comparecerá as eleiçõesno domingo. O Marcelo [Caetano] bater-se-à contra nada. (MCG - 1973.10.25).
(...) Num ápice o [café] Arcada enche-se. Terminaram as condecorações, os toques de clarim e o desfilar das forças em parada. Já ontem se notavam muitos forasteiros que de longes terras vieram até ao povoado. Aqui à minha direita, muito ternos, uma moça conversa com o namorado e deixa entrever um grande pedaço da pele das costas, entre as calças e a blusa. Questões de posição! À esquerda, um marinheiro com familiares (?) exibe a sua condecoração de fresca data. Além o senhor Jaime abre e fecha os braços, como asas, enquanto vai dando lustro aos sapatos de um cliente. Passam empregados com as bandejas cheias de chávenas, copos e comes. O casalinho de namorados bebe chá com torradas. O mesmo que um casal já caminhando para a meia-idade aqui à esquerda, na mesa ao lado. Ele já acabou de ler o Diário de Notícias (fraco gosto) e ela dá-lhe uma torradinha. (...) O marinheiro levanta-se e parte. Afinal a bengala não é dele mas do amigo que o acompanha. O senhor Tenente e o senhor Coronel cumprimentam-se, batem a pala e apertam as mãos, enquanto as respectivas esposas se beijam. Na carequinha do senhor Coronel o vinco na pele assinala a presença do boné, agora sobre a cadeira. Entram pessoas de luto e há cumprimentos de mesa a mesa. Precisava duma câmara de filmar.
Sobre a minha mesa, "O Século" (sabe) que dentro de dias será descerrada em Luanda uma estátua ao Marcelo [Caetano]. Para além d'O Século a lapiseira, um livro ("A Sociedade de Consumo") e o porta-moedas (agora é incómodo trazê-lo no bolso). (...)
O Jorge apareceu ontem pelo café, depois duma longa ausência. Mais velho, já não o miúdo que conhecemos, agora com os ombros curvados, mostrando-nos os calos do trabalho de servente de pedreiro. Gosto dele, mas não encontro nem os gestos nem as palavras que lho digam. ( MCG - 1973.06.10)
Levanto os olhos e vejo muitos magalas, na sua farda verde oliva. Andam também pelas ruas, aos grupos, espalhafatosos, como quem já tem o seu grão na asa. "Cheira-me" que haverá dentro em breve mais um contingente para a guerra em África. Alguns escrevem, curvados sobre o papel, a caneta firme na mão, como quem não está habituado a frequentes escrituras. Parecem rapazes muito novinhos; uns conversam, irrequietamente, outros têm um ar absorto, ausente.
O barulho invade-me e cansa-me. Há pouco, dei de repente com um silêncio gradual, profundo. Levantei os olhos do papel e era um magote de gente à volta duma mesa, em pé. Um silêncio em crescendo gradual. Gente levantando-se, esticando o pescoço. Continuo a escrever. Alguém se deve ter sentido mal, mas o meu curso de primeiros socorros já tem oito anos. Um homem sai do meio do magote, os seus lábios mexem-se e leio "Desculpe-me" a mão passada pela testa como quem tem suores ou tonturas. Sai pela porta giratória (há pouco atrás de mim) e perde-se na noite das arcadas. (MCG - 1973.11.26)
Os magalas ainda não embarcaram, continuando a encher ruas e cafés. Cheguei há instantes da tabacaria, onde confirmei um anti-slogan: "Não telefone, vá!" Uma hora, foi o tempo que levei para conseguir uma chamada para Lisboa. (...) A gasolina é quase como agulha em palheiro para encontrá-la. Está praticamente esgotada em Évora ou Lisboa. P'rá semana há mais! Domingo passado, segundo o Carlos, às 4 da tarde já havia 3 ou 4 carros parados numa bomba aguardando pela meia noite para poderem seguir rumo a Lisboa. No regresso de Portalegre tiveram de juntar-se-lhes. (...)
Hoje à tarde o dono do Zé do Casarão estava furioso, telefonando quando por lá passei a comprar o "Comércio do Funchal" (agora gastando páginas numa inútil polémica com a "República"; uma guerra de alecrim e manjerona!). E o senhor desabafou comigo. Estava furioso com o chefe da PIDE. Que mandou lá buscar o último fascículo da "Enciclopédia do Vilhena", que foi devolvido meia hora depois, por um contínuo, que disse: "O senhor chefe diz que pode vender!" Ah! Ah! Ah! Porque, dizia o Zé, "isto é um abuso. Se queria ler, pedia-mo emprestado. Porque ele não tem competência para decidir ou não da apreensão de revistas e livros, sem autorização do Ministro do Interior." Ah! Ah! Ah! E acrescento-lhe eu: "E de qualquer modo não podia levá-lo sem levantar um auto de apreensão" E lá deixei o Zé, furioso, telefonando não sei para quem." (MCG - 1973.11.27)
1974
Hoje foi o Dia da Polícia e está explicado porquê toda a semana têm desfilado pelas ruas da cidade: preparação do grande acontecimento, em que estrearam os capacetes cinzentos com viseira protectora, espingarda de baioneta calada ao ombro, deixando, na esquadra, o escudo protector das pedradas dos manifestantes. 50 000 mil contos teria sido a quantia gasta nos últimos tempos pelo Governo para equipar a polícia. Ah! Ah! Os tempos vão desassossegados! (1974.03.12)