Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

ISTO NÃO É UM POEMA MAS SIMPLES DESALINHAVADO

* Victor Nogueira

ISTO NÃO É UM POEMA MAS SIMPLES DESALINHAVADO

quem responde ao meu apelo
não será quem eu quero
e
quem eu quero não sei quem seja
.
os dias e as noites liquefazem-se
e o meu sorriso é uma máscara que se me colou à pele
.
dentro da máscara e para lá do sorriso
uma crisálida moribunda
na busca do desassombro das portas e janelas abertas
ao sol, ao vento, à maresia, ao viandante sem arnês, andarilho ou maltês ....
.
na ressaca das ondas vem um país pequenino
vazio, frio e cinzento
um país de meias tintas e lantejoulas de pechisbeque
e salamaleques com mil reverências a suas "insolências"
preso a séculos de sujeição, de inquisição e de pinas maniques
com o passado como tiques
e, mesmo na penumbra, com medo da própria sombra !.

Resta-me a recusa
de não ser capacho ou mata-borrão
e a afirmação
da não sujeição!

Dói e rói esta solidão pela recusa em ser a formiga no carreiro !

Mindelo 2014.12.30

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A Casa do Sol Nascente



tradução de Victor Nogueira

The House of the Rising Sun

There is a house in New Orleans
They call The Rising Sun
And it's been the ruin of many other poor boys
And god, I know, I'm one

My mother was a tailor
She sewed my new blue jeans
My father was a gamblin' man
Down in new orleans

And the only thing a gambler needs is
A suitcase and a trunk
And the only time he'll be satisfied
Is when he's on a drunk

Oh mother, tell your children
Not to do what I have done
Spend your lives in sin and misery
In the house of the rising sun

Well I've got one foot on the platform
And the other on the train
I am going Back to new orleans
to wear that ball and chain

There is a house in New Orleans
They call The Rising Sun
And it's been the ruin of many other poor boys
And god, I know, I'm one


A Casa do Sol Nascente

Há uma casa em New Orleans
conhecida por Sol Nascente
que foi a ruína de muitos garotos pobres
e Deus meu, sei porque fui um deles

A minha mãe era alfaite
E costurou as minhas blue jeans
O meu pai era um batoteiro
Lá, em New Orleans

Hoje um batoteiro precisa apenas
De uma mala e de um cofre
E a sua única satisfação
É estar perdido de bêbado

Oh Mãe, diz às tuas crianças
Para não fazerem o que eu fiz:
Desperdiçarem as suas vidas na luxúria e na miséria
Na Casa do Sol Nascente

Bem, com um pé na plataforma da estação
E o outro no comboio
Vou regressar a New Otleans
Para usar aquele relógio (de bolso) e a corrente

Bem, há uma casa em New Orleans
Conhecida como O Sol Nascente
Que tem sido a ruína de muitos garotos
E, Deus meu, eu sei porque sou um deles.


domingo, 14 de dezembro de 2014

il gattopardo, de lampedusa


No fundo, no fundo nada muda, apenas as moscas, como no romance de Lampedusa, "O Leopardo" onde Don Fabrizio Corbera, Príncipe da Casa Salina ou o seu sobrinho, face à vitória de Garibaldi e da reunificação italiana afirmava que é preciso que algo mude para que o essencial se mantenha. Tal como para a Casa de Salina, passou o tempo da Casa do Espírito Santo, a reunificação agora a um patamar mais elevado, o do continente europeu.

sábado, 13 de dezembro de 2014

PARA MEMÓRIA FUTURA, DOIS PROVÉRBIOS DE MINHA AUTORIA

PARA MEMÓRIA FUTURA, DOIS PROVÉRBIOS DE MINHA AUTORIA (penso eu de que)

1. - não há pior cego que o zarolho
2. - na república das hienas, os leopardos são tunantes !

domingo, 30 de novembro de 2014

em évoraburgomedieval - uma sessão cultural no antigamente

* Victor Nogueira

Aqui, espalhados pela mesa, vários recortes de jornais, a maioria deles da Isabel da Nóbrega, que já conheço desde há seis anos pelos artigos que tem publicado no "Diário de Lisboa" e na "Vida Mundial". Actualmente já nem sempre aprecio tanto os seus artigos como outrora: porque ela teria mudado a sua maneira de escrever? Ou eu a minha maneira de ser? Vi-a apenas uma vez (em Évora) há dois anos, num colóquio sobre poesia - o Ary dos Santos - conhecido pelas letras da "Desfolhada" e de "Menina" - declamou - e bem - poemas seus ).
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 A esse colóquio o Ary chegou muito atrasado e já "entornado"  [e pelo desrespeitoso atraso vaiado por parte da assistência] e com uma garrafa de brandy com que ia molhando as goelas ao longo da sessão. Quem costuma andar lá pelas reuniões em Évora, como eu, conhece um certo número de autodidactas, o mais enfadonho dos quais é um tipo de bigode e óculos. Pois esses autodidactas - numa atitude compreensível mas inaceitável - aproveitam estas "manifestações " culturais para botar faladura a propósito e - sobretudo - a despropósito. De modo que para o fim aquilo começou a aquecer - o Ary dos Santos, bêbado, a falar contra a situação, em português vernáculo (e o Presidente da Direcção da Sociedade Operária de Cultura e Recreio Joaquim António de Aguiar  muito aflito, por causa da PIDE e dos castos ouvidos das senhoras presentes) os autodidactas discutindo com a assembleia e a mesa, o Victor Ângelo e outros alimentando a discussão (dessa vez não abri o bico, pois por mim falava o... Ângelo).
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José Saramago e a Isabel da Nóbrega procuravam, em vão, acalmar os ânimos. Apaixonei-me pelo rosto da Isabel. Se a vissem, aqueles olhos grandes, as suas mãos, a atenção e o cuidado para não ferir os autodidactas - vaiados pela assistência! Estou a vê-la sentada, aflita à procura da palavra e do gesto, falando às pessoas, voltada para elas, aflita por não poder falar com os dois campos simultaneamente, um grande respeito pelas pessoas! Entrevi a depois à saída e fiquei algo desiludido: o seu corpo não me pareceu corresponder à nobreza do seu espírito. Pouco sei dela: que tem escrito alguns romances, que terá dois filhos da minha idade.(MCG - 1972.09.02)
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sábado, 22 de novembro de 2014

em socalcos



em socalcos
ou
na pleneplanície
no devir são os rastos
pálidos, insonoros

no areal
(as)sombras do esquecimento
a mão inerte

na penúmbria
se desfiam e desenlaçam

setúbal 2014.11.22

foto victor nogueira

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

porto - nº 44 da travessa da carvalhosa 1949/1950 -



foto de família - porto - nº 44 da travessa da carvalhosa 1949/1950 - 

Para além do escriba, os meus avós António, Alzira e Zé Luís e os meus tios José e José João, para além da minha mãe. Por exclusão, a fotógrafa deve ter sido a minha tia Lili. 


Quando nasci os meus avós e seus filhos estavam em Angola, pois o meu avô Luís era quimico-analista na Fazenda Tentativa, de açúcar, no Caxito, nos arredores de Luanda. Tal como o meu pai o meu avô ficou "enfeitiçado" por Angola mas a vida não lhe permitiu que para lá regressasse. Na altura da foto o meu tio José João tinha retornado ao Porto para tirar o curso de arquitectura, tendo regressado a Luanda em 1956, pouco depois de concluí-lo. Nesta altura ainda chegou a dar aulas na Escola Industrial e Comercial de Setúbal, no ano em que ela passou do Largo da Palmeira para o Parque do Bomfim, a mudança feita por professores e alunos. Nesta mesma escola o meu pai e eu demos aulas, ele depois da independência de Angola, eu depois de terminar o curso de sociologia, contrariado pois nunca gostei de ser professor, proissão transitória que larguei mal pude. Mas o meu pai e o meu tio gostavam de dar aulas - em angola o meu pai nunca havia sido professor mas era um bom explicador de mim, qd tinha tempo para isso..

Depois do meu nascimento a minha avó Francisca insistia com a minha mãe para que mandasse o "menino" para o Porto, para juunto dela, mas faleceu antes de nos conhecermos. Existe apenas em resultado das memórias da minha mãe e do que dela a restante família me contou.

A casa tinha dois pisos e um grande quintal nas tazeiras onde havia criação - muito gostava eu de ver os coelhos nas gaiolas com o narizito a tremer e os olhos enormes ou aos saltinhois ziguezagueantes assim como os pintainhos amarelos partindo a casca do ovo e logo começando a andarilhar.. Para além da criação de animais havia uma enorme nogueira (produzia grandes nozes) e uma latada, cujas uvas a minha avó vendia para fora. A economia doméstica era complementada com o cultivo de batatas, alhos, couves e cebolas plantadas no referido quintal.

Toda a vida o meu pai não comia carne de coelho apesar dos castigos da Alzira pois em miúdo afeiçoava-se a eles e não podia vê-los no prato. Nesta altura a minha avó Francisca - que não conheci - e por quem o meu avô está de luto, que manteria toda a vida - já havia falecido.. Nesta foto falta o triciclo, que surge noutras. Tirando o meu avô Barroso, nunca ninguém na família pôs luto pela morte de familiares - o luto sempre foi e tem sido considerado pessoal, íntimo, não carecendo de exteriorização.

ELEGIA PELA MINHA FAMÍLIA DISPERSA



terça-feira, 18 de novembro de 2014

luanda cerca de 1952




foto de família - luanda cerca de 1952 - esta carrinha Morris, creio que de cor creme, foi o 1º carro da família, contemporâneo do "jeep" cuja carroçaria o meu pai construiu no quintal, referido em post anterior-
Na foto a paisagem árida e seca dos arredores de Luanda, onde proliferam imbondeiros, figueiras da índia, entre outras plantas xerófilas como os cactos candelabros ou similares aos do sisal, para além do capim, erva, verde apenas na estação "fria".
Na carrinha, por detrás da cabine, a característica grade onde a miúdagem se agarrava para viajar em pé na carroçaria, o vento acariciando o rosto.
Devido ao clima e ao contrário do que vim encontrar em Portugal, as carrinhas eram de caixa aberta e não se chamavam camionetas.
Atendendo à vestimenta, devera ser o "cacimbo", uma das únicas duas estações climáticas tropicais, esta caracterizada pelo "frio", seca, não pluviosa, do orvalho (cacimbo) e do nevoeiro. que à noite nos fazia sobre a camisa enfiar um casaco ou uma camisola.
A outra estação, a das chuvas, não tinha nome, coincidindo com o ano lectivo em Portugal, a partir de 1952, qd passei da 1ª para a 2ª classe: 9 meses de calor infernal, elevada humidade relativa, torrenciais aguaceiros e terríficas trovoadas estrondosas e relampejantes, seguidas de sol e céu límpido.
A chuva e as trovoadas eram quase sempre nocturnas e a forçada coincidência dos anos lectivos nas colónias a sul do Equador, e na "Metrópole", sacrificando milhares de estudantes, destinou-se a "proteger" sem "hiatos" lectivos a minoria muito minoritária capaz e com possibilidade de prosseguir estudos universitários em Portugal.
Em 1952 as viagens de barco entre Portugal e Angola duravam 12 dias e a partir de 1960 e tais reduziram-se para 8 dias. Quanto às viagens por avião eram de 12 horas (aviões a hélice, quadrimotores) no início da guerra colonial, reduzidas para 8 horas com os aviões a jacto. Contudo em 1963 ainda eram os quadrimotores a hélice e levámos 19 horas devido à proibição de voos portugueses sobre o espaço aéreo dos países africanos recém-independentes, devido à guerra colonial
.
Note-se que a rede escolar se ia afunilando desde a escola primária – abrangia essencialmente a minoria "branca" e não havia universidades nas colónias antes do início da guerra colonial em Angola, no início de 1961, potência colonizadora, como não poucos de nós, nascidos em Angola, paulatinamente, a passámos a considerar a partir de 1961,como se reflecte no meu poema "Raízes"

............."Maianga Maianga
.............Bairro antigo e popular
.............Da velha Luanda
.............Com palmeiras ao luar ..."

.............''A Praia do Bispo
.............Cheiinha de graça
.............De manha á noite
.............Sorri a quem passa ..."

............(das Marchas Populares em Luanda)

Longo era o bairro ao longo da marginal
Longo era o bairro do morro de S. Miguel ao morro da Samba
Grande era o bairro e grandes as casas
No meio o bairro operário e a igreja de S.Joaquim,
estreitas as ruas, pequenas as casas.

Nas traseiras, o morro,
no alto o Palácio,
Na frente a larga avenida,
o paredão, as palmeiras e os coqueiros
a praia que já não era do Bispo
mas das pedras, dos limos e dos detritos.

Mais além a ilha que era península
com a sanzala dos pescadores
casas de colmo no areal
da extensa e boa praia
o mar sem fim.

Em Luanda nasci
Em Luanda vivi
Em Luanda estudei

Não Angola mas Portugal
Todos os rios e afluentes
Todas as linhas férreas e apeadeiros
Todas as cidades e vilas
Todos os reis e algumas batalhas
as plantas e animais
que não eram do meu país.

De Angola
pouco sabíamos
até ao 4 de Fevereiro, até ao 15 de Março
Veio a guerra e
....................a mentira
que alimenta
..................a Guerra,
Veio a guerra e a violência
veio a guerra e a liberdade.

Em Évora a 11 de Novembro
Em Luanda a bandeira do meu país
no mastro subiu.
Era o tempo da liberdade e da esperança.

No Porto
Em Lisboa
Em Évora estudei
Em Évora casei
Em Évora vivi e nasceram o Rui e a Susana.

Em Setúbal moro e no Barreiro trabalho

Perdidos os amigos,
perdida a infância
Estrangeiro ......sem raízes ......sou em Portugal.


Victor Nogueira
1989


Creio que o da direita era o César, engenheiro e no Porto colega de curso dum dos meus pais, tb engenheiros

 

domingo, 16 de novembro de 2014

Luanda - as amigas e a miudagem c. 1952



foto de família -Luanda - cerca de 1952 - as amigas e a miudagem - na 1ª fila ao centro  a minha mãe e à esquerda o escriba.e à direita não sei se será o  caçula embora me pareça que não.seja e talvez tenha ficado em casa  por ser bébé. Na foto em pé a D. Noémia, a Beatriz (?), a Bia e a Laura, se os dois miúdos à direita forem a Elsa e O Waldemar. Mas se o múdo da direita for um dos filhods da Beatriz, então será talvez o Ruca (Rui), que salvo erro  morreu na guerra colonial, e assim não identifico a mocinha. Os miúdos à esquerda serão os outros filhos do Beatriz, um dos quais o Zeca (José). Com a morte da minha mãe foi-se a possibilidade de identificar muitas das fotos do seu espólio  fotográfico.

entre eros e afrodite 34 - nas brumas do tempo e da memória 02

* Victor Nogueira

Continuando a lenta decifração dos papéis não datados, amarelecidos pelo escorrer do tempo, cuja 1ª recolha se encontra em

http://aoescorrerdapena.blogspot.pt/2014/11/entre-eros-e-afrodite-33-nas-brumas-do.html

Considerando a não datação das folhas, os excertos foram sequenciados de acordo com a ordem em que se encontravam no maço dos originais que me foram cedidos na feira das velharias. Por vezes há hiatos, talvez por extravio ou errada ordenação no molho.



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(...) Ao contrário do que me tens dito, sei o que pretendo da vida e dos outros, embora nem sempre alcance o que pretendo. Posso morrer buscando em vão a liberdade, a paz e a serenidade. Mas não aceito a paz e a serenidade dos cemitérios, porque a procuro na Vida com os outros, em sociedade. E sei que amando embora os outros, "amo (também) a liberdade, mesmo que ela seja um punhal cravado no meu peito". 

Os alentejanos dizem que primeiro as pessoas têm de provar que merecem a amizade. Mas eu entendo que é a vida que prova se as pessoas merecem ou não a continuidade da nossa amizade, do nosso afecto. Talvez por isso é que a minha é uma casa de portas abertas e janelas escancaradas á chuva, ao sol e ao vento e nela não tenho móveis nem caixas nem portas trancadas ou fechadas à chave.

Como atrás referi, poderá parecer extemporânea esta longa "conversa", que no essencial já tivemos de viva voz por várias vezes ao longo destes anos. Não entro, recuso-me a entrar, nas guerras de afectos exclusivistas e de ciúmes sempre possessivos. O ciúme é para mim uma indicação de falta de confiança em si mesmo e nos  outros, de insegurança, de medo.

Eu sou, nas tuas palavras, o "maldoso", que te mente, que te "engana" com as amigas, que te achincalha, magoa e ofende a tua sensibilidade. E assim acabo por ter para contigo "conversas" e atitudes que me desagradam mas que são a consequência do modo como te relacionas comigo e que não aceito. Porque ou há igualdade, compreensão e respeito mútuos ou então não vale a pena chover no molhado. Confio em ti; não te controlo, não te vasculho os bolsos e a carteira. Embora tu me digas que se o não faço, se não  tenho ciúmes, se não mostro ciúmes, é porque não te amo. Nada mais errado, digo-te eu.

As pessoas não devem ser possessivas. Cada um de nós tem as suas qualidades e os seus defeitos, que se ajustam ou não. Não podemos é pensar que cada um de nós preenche todas as expectativas e todos os requisitos. Uma panela de pressão sem válvula de segurança é potencialmente explosiva e destrutiva.

Uma coisa é as pessoas compartilharem aquilo que é comum, outra é quererem "policiar" tudo, com exigências exclusivistas. Num casal, o exigível, para mim, é a lealdade, a verdade, a confiança, respeito e solidariedade mútuas, a cooperação, é não haver jogos duplos. E além disso deve deixar-se a cada um a liberdade das suas recordações, da sua memória, dos seus (outros) afectos e simpatias.

Há um tempo e um lugar para tudo e para todos na vida. Não "ando" com esta e com aquela! Não ando pois a saltitar entre ti e as outras ou "aproveitando" as ocasiões". Estou contigo e com mais ninguém enquanto estiver contigo e não te disser o contrário. Mas tu não entendes isto. Não concluas daí que eu sou o bom e tu a má da fita. O que sucede é que não nos temos ajustado e cada um de nós não tem correspondido às expectativas que trazia em si relativamente ao outro.

No entanto, por muito que aprecie certos aspectos da tua companhia e personalidade, por muito que sinta por vezes a tua falta, não mudo em nada daquilo que considero essencial. Nem te exijo a ti que o faças!

Não gosto de aborrecer ou magoar deliberadamente os outros, mas também não gosto que os outros me aborreçam ou magoem. Assim como não quero mudar os outros, também não aceito que me mudem naquilo que considero essencial. Assim como não quero infernizar a vida dos outros, também não quero que infernizem a minha. E digo: “é bom ter quem nos afague e diga bom dia com alegria e fantasia". Mas … com tantas mágoas e "barreiras" de lado a lado, creio que nenhum de nós seria feliz com o outro. Outra poderia ter sido por exemplo a nossa situação actual se desde o início não tivesses querido "controlar" a minha vida, amizades e sentimentos.

Não te escrevi um poema. Não te escrevi uma carta poética. Escrevi‑te simplesmente. E as minhas mãos estão vazias e o caminho á minha frente não existe; existe apenas o instante á frente do meu nariz e para além dele névoa e sombras. Nada mais do que isso, onde nasce o desencanto pela vida e pelas pessoas. Não quero magoar‑te, mas sinto‑me tão cansado que gostaria que fossemos apenas amigos. Para serenidade de ambos. 

Quando tu precisas de mim, sabes sempre onde estou ou como procurar-me. Não te minto nem ando fugido. Mas se precisar de ti, nem que seja só para falar com uma voz amiga, nem sempre sei onde estás, como resultado das tuas fugas e mentiras.

Não era assim que esta carta estava escrita no meu pensamento. Aliás, no meu pensamento esta carta já teve várias formas. Mais fluidas. Variando conforme o estado de alma e o correr do tempo. Mas quando chegou a altura de fixar a fluidez do pensar, o que fica é esta pálida, imperfeita e distorcida imagem, feita de signos que se alinham em carreirinha uns a seguir aos outros.

Mas isto também não é muito importante. Quiseste entrar na minha vida de rompante, como quem ocupa uma cidade para se impôr aos seus habitantes. Quiseste entrar na minha vida e na minha alma como se eu não existisse: tentaste impor-me amizades, vivências, comportamentos, atitudes. É como a história da tua fotografia na minha mesa-de-cabeceira, ali, como quem marca o terreno e a propriedade.

Não preciso da fotografia para me recordar de ti ou para me comover ou enternecer ao pensar em ti. Não é preciso que os outros saibam que eu me lembro de ti. E não me recordo de ti por causa da fotografia. Lembro-me de ti quando arrumo o armário da sala e vejo os frascos que me deste. Ou quando abro o porta-moedas e encontro o pequeno canivete. Ou quando reparo no colorido boneco do negro tocando trompete. Ou quando vejo a saboneteira, ao utilizar o lavatório. Recordo-me de ti quando barro o pão com o doce que me deste e que está no fim. Ou quando visto a elegante e bonita camisa de flanela aos quadrados. São marcas tuas, a partir das quais, conforme o dia, nascem outras recordações, enquanto para mim tiveres qualquer significado.

Olho para a saboneteira e lembro-me de Coimbra e da casa cheia de sol e do corredor com "azulejos". Vou a Leiria e no jardim lembro-me que estivemos lá: "Estive aqui com a Maria!" E lembro-me do Porto e dos cafés barulhentos e da primeira vez que foste a minha casa. Ou recordo a vez em que fomos ao Carregado ou a Santarém ou que fui ter contigo a Coimbra, tu já de roupão e pijama pois pensavas que eu já não apareceria. Recordo-me das vezes em que me apeteceu ficar contigo até de manhã, mas em que não fiquei e saí de madrugada porque não queria que as pessoas falassem de ti.

São tanto marcas tuas que um dia, após aquele em que saíste de minha casa na sequência de mais um dos teus disparates, fiz um molho com as tuas "ofertas" todas: camisas, toalhas, suspensórios, barrete do Pato Donald, fronhas das almofadas, camisolas de lã, "bonecos", para ir descarregar tudo em tua casa. Porque não queria coisas que me fizessem lembrar de ti. Salvo erro foi pela altura em que te pus a tua fotografia no teu saco. Porque o que é importante és tu e não a tua fotografia ou as tuas "marcas", que sem ti nada valem. Quando deixares de ser importante para mim, então não passarão senão de adornos ou de objectos utilitários no meio de outros adornos e objectos utilitários.

Mas voltemos atrás. Tivesses tu outro feitio, fosses menos disparatada, impulsiva e temperamental ! ...  Já te disse e já te escrevi: gosto de ti e sinto a falta de ti, do teu sorriso e da tua alegria, do teu carinho, da ajuda que me dás, da companhia que me fazes, do teu corpo junto ao meu, da tua cabeça recostada no meu ombro ou no meu braço, do teu braço pousado no meu peito, da minha mão cariciando os teus cabelos e não só. Gosto da ta mão na minha qando caminhamos pela rua ou conversamos no café ou no restaurante. Mas não sou impulsivo como tu e não gosto dos teus ciúmes descabidos, dos teus disparates, dos teus destemperos, numa palavra, de tudo aquilo que referi muitas vezes de viva voz e na carta que te escrevi.

Quiseste entrar na minha vida de rompante, como quem ocupa uma cidade para se impôr aos seus habitantes. O que foi contraproducente. Terás tentado entrar ávida e possessivamente na minha vida, talvez como quem bebe com sofreguidão a água da fonte, sequiosa por carinho e atenção após a travessia do deserto. Como se só tu existisses! Tu e os teus filhos e eu por acréscimo! Sem que aceitasses os meus, em guerrilha desgastante e constante.

A vida tem um ritmo e tu não avanças com a delicadeza duma flor mas sim com o rompante dum bulldozer ou dum furacão, que arrasam tudo por onde passam.

Preparo-me para encerrar estas linhas até que um novo dia alvoreça no horizonte. Até sempre!

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

em luanda - 1956

Em S. Paulo da Assunção de LUANDA (este era o nome completo, tal como havia a Cidade do Santo Nome de Deus de MACAU, Não Há Outra Mais Leal) - foto MNS 1956 - Quando nasci os meus pais moravam na Rua Frederico Welwitsch, no Bairro do Maculusso. e daqui mudámos para outra vivenda, no Bairro de S. Paulo, lá onde a cidade do asfalto terminava na altura para imediatamente começar a empurrar a cidade vermelha (a cor do barro), a dos musseques, ainda mais para a periferia. Pouco tempo residimos aqui, de que tenho poucas memórias, até mudarmos para a Praia do Bispo, quando tinha 11/12 anos, para uma casa de função, essa sim que me marcou e ficava à beira mar, com o mar infindo defronte e para lá dele o Brasil, na outra margem.


O meu pai era um engenhocas. Aliás na caricatura do livro de curso ele aparece sentado a uma mesa com montes de construções de armar, desde aviões a casas. No quintal da Praia do Bispo construiu sucessivamente os 3 "gasolinas" que tivemos; o 1º roubado, o 2º queimado inadveridamente no areal da praia e o 3º ficou lá depois da independencia. Este "jeep" também foi parcialmente contruído por ele, a partir do chassis que comprara: a carroçaria foi toda feita por ele e sob sua orientação.



Na foto, para além do escriba os seus irmão e mãe. Aqui ainda era miúdo, pois usava calções e suspensórios. O uso de calças e cinto significava a passagem a jovem e adulto. Esta regra não foi rígida para o meu irmão, cinco anos mais novo, que naturalmente "herdava" a minha roupa.


Nesta foto, ainda na rua Frederico Welwitsch, vê-se o referido "jeep"


  • Graca Maria Antunes Gosto de ler memórias e destas, em particular que falam de uma vivência que se perdeu.
  • Carlos Rodrigues Isso é que era reciclar, Vitor, agora nem dá para passar os livros escolares de irmão para irmão e roupa também não que tem de ser de marca, mas é sempre possível arranjar uma etiqueta. Os noddos pais dariam com certeza melhores Ministros da Economia do que os que temos tido. Obeigado.
    9 min · Gosto
  • Carlos Rodrigues Correçõ: os nossos pais.
    9 min · Gosto
  • Victor Barroso Nogueira Carlos Rodrigues Naquele tempo os livros eram recicláveis "ad æternum", pois vigorava o livro único e obrigatório no Portugal estático que eles diziam ser "do Minho a Timor". Os livros pouco mudavam, eram quase os mesmos de pais para filhos LOL. 




    Mas irritava-me que eu tivesse de ter cuidado com a roupa nova que depois de "herdada"pello meu irmão já não merecia advertências nem cuidados. LOL

    E naqele tempo alguma da roupa era costurada em casa, não havia lojas de pronto--vestir. 
    1 min · Editado · Gosto
  • Carlos Rodrigues .Sem discutir o conteúdo desses livros Ad eternum, porque o regime fascista sempre se teve como imortal, por outro lado dava jeito...Quanto à roupa eu sendo filho único não herdava nada, nem vantagens nem desvantagens...LOL
    2 min · Não gosto · 1