* Victor Nogueira
Numa Feira do Livro a decorrer em Setúbal comprei várias. obras, uma delas, "Filhos de Enganos - amor, sexualidade e grupos sociais no Alentejo", de Isabel Marçano, [Edições Colibri, Lisboa s/d] centrado num estudo na Aldeia de Santa Susana, uma das povoações alentejanas que me encantou quando nela estive pela primeira vez, tal como sucedera em Alcácer do Sal ou em Porto Covo, "in illo tempore". Já em tempos lera sobre esta temática um estudo intitulado "Amor e Sexo no tempo de Salazar", de Isabel Freitas, [Ed. A Esfera do Livro, Lisboa, 2010], um "retrato" que me fez voltar aos tempos de exílio em évoraburgomedieval, que pouco ou nada tinham a ver com a minha vivência em Luanda e na Academia de Lisboa, em Económicas, sobretudo no movimento associativo estudantil.
Mas esta nota é constituída por dois excertos duma brochura intitulada "O Alentejo Agrícola, um pouco de história", numa breve perspectiva, também sociológica, com texto de Cláudio Torres e fotos de António Cunha. A selecção incide sobre o tempo da ocupação árabe, uma civilização na altura mais evoluída e adiantada tecnologicamente que a dos bárbaros cristãos, e - nos dias de hoje - sobre o "choque" de mentalidades entre a "sabedoria" tradicional - mas não só - dos "mais velhos", um saber de experiência feito, e a veiculada pelo sistema escolar, como agente duma certa socialização/aculturação.
Nas minhas andanças por Arraiolos em 1972/73 esta última questão me surgira, embora noutro contexto: "
Às tantas um homem com ar espertalhote (46 anos, ao que me disse) intrometeu‑se na conversa, porque quisera emigrar mas não pudera por causa da idade. E vai daí gerou‑se uma conversa sobre o que valia mais, se o lido (estudos) ou o corrido (prática) e, portanto, se um jovem ou um homem da idade dele ("Qual escolhia o senhor?",
perguntava‑me); sobre o estado da agricultura, cuja solução, para os presentes (suponho que seareiros e proprietários ou rendeiros de quintais de 0.5 a 5 ha.) era a distribuição das grandes terras por quem quisesse nelas trabalhar, completamente inconscientes de que o mundo é outro para além daquelas terras, insensível a métodos e processos de exploração agrícola ultrapassados, sem respeito pelo "corrido"
doutras eras.» in https://www.facebook.com/notes/victor-nogueira/por-arraiolos-01-197273/10151468504704436
A terminar este breve introito: foi nas aldeias e nos montes do Alentejo, mas não na cidade ou na vila, que aprendi a dizer a palavra "amigo", pois aí sempre fui recebido de portas abertas, antes e depois de Abril, como se fora um deles. E curiosamente, um dos meus cunhados alentejanos, o Janica, tratava-me por "mano".
foto antónio cunha
I
(…) Os campos do Alentejo serrano passam a ser os grandes invernadeiros de uma parte importante do Ocidente Peninsular. Em épocas anteriores à "Reconquista" e, portanto, antes das mestas feudais, vinham para esta zona rebanhos oriundos das serras da Estrela e Guadarrama para fugir aos rigores do Inverno.
De um modo geral, depois da queda do Império Romano, as grandes cidades de tradição imperial entram em declínio. Mantêm-se activos os centros portuários, como é o caso de Alcácer, Mértola ou Faro. O centro administrativo de Beja inicia um longo processo de retracção. A velha capital de conventus reduz-se a uma pequena cidade, apertada atrás das suas muralhas. Évora também se refugia no seu cabeço fortificado.
A partir do século V, caciques militares apoderam-se das melhores terras e com a insegurança dos caminhos, a cidade, reduzida a uma praça de armas perde o seu estatuto de centro cívico e político. Nestas regiões bem afastadas do limes germânico, não foram, certamente, as invasões de «bárbaros», de vândalos ou visigodos a lançar o caos e a insegurança. Entre as ruínas do Império, são sobretudo bandos armados de escravos foragidos e exércitos mais ou menos privados que saqueiam e matam, impondo a lei do mais forte
Apenas em zonas mais afastadas ou apertadas nas dobras da serra subsistem aquelas comunidades rurais, reunindo por vezes centenas de habitantes, coesas, bem defendidas em redutos de cumeada, quase sempre cercados de pedra solta, onde se refugiaram com os seus rebanhos, que, finalmente, eram a sua única riqueza. Esta rede de solidariedades permite-nos compreender a sua organização comunitária e a chave da sua capacidade de resistência.
A islamização não pode ser desenquadrada deste contexto de insegurança e derrocada de uma sociedade ainda muito dependente dos escombros de um Império que, de certa forma, apenas sobrevivia na rede eclesiástica e episcopal. Antes de ser explicada pela invasão de exércitos árabes e berberes que atravessaram o Estreito de Gibraltar, antes de considerada como a conversão forçada a uma nova religião imposta pelas armas, temos de entender a islamização como um processo de reorganização dos circuitos urbanos e comerciais num ambiente atemorizado, onde, ao lado da Igreja oficial, proliferavam seitas e heresias cristãs que impunham a sua autoridade com bandos armados. Temos de olhar a islamização, antes de mais, como uma pacificação, como um maior controlo e segurança dos caminhos marítimos e terrestres, como uma abertura a novos mercados e horizontes geográficos do Mediterrâneo e também, sobretudo, como uma revitalização das pequenas e médias cidades e consequente reforço das comunidades locais. Por essa altura, a partir do século IX, foram reabertas as vias antigas que estavam interrompidas pela insegurança dos caminhos do interior e pela pirataria que afectava as rotas marítimas. O comércio mediterrâneo de pequeno curso é revitalizado e são abertas as portas a novos parceiros vindos das orlas do Índico e mais além. Por outro lado, o sistema comercial sofre também uma alteração de conteúdo. Deixa de fazer sentido reatar a produção em monocultura das grandes herdades de tradição romana. O comércio diversifica-se e tende a reforçar circuitos regionais e mesmo locais. De facto, o fenómeno da islamização interrompe o processo de feudalização que, afinal, apenas nos territórios mais a Norte do Tejo segue naturalmente o seu curso.
Os comerciantes chegam dos mais desvairados caminhos e começam a instalar-se. Não são soldados. As conquistas militares, neste contexto da islamização, são secundárias. De repente, os portos e principais cidades florescem como grandes centros de civilização. Barcos vindos de todo o lado, com brocados e vidros da Síria e do Egipto, especiarias e perfumes da Pérsia, são trocados por géneros locais. Já não estamos na época romana em que a Península Ibérica oferecia apenas minérios ou mono culturas agrícolas. É notória a introdução de novas técnicas, a revitalização da manufactura urbana, como as novas cerâmicas, a joalharia e mesmo armas de grande qualidade que fazem concorrência às de Damasco.
E esse é o aspecto inovador deste período, quando se faz sentir no al-Ândalus uma explosão tecnológica de novos produtos, quando são experimentados sistemas de regadio inovadores, introduzidas novas espécies de plantas e outras formas de cultivo. Nessa altura entram na Península mais de metade dos produtos hoje habituais na nossa agricultura. Principalmente nas zonas periurbanas, as mais abertas ao comércio citadino e a novos gostos e apetências.
As cidades começam outra vez a florescer. Porém de uma maneira diferente, porque já não desempenham as mesmas funções económicas, políticas e, portanto, sociais. Desapareceu a cidade cenográfica da representação do poder com os seus anfiteatros e hipódromos. A partir dessa altura, cada uma destas cidades, com os seus limites territoriais, compreendia um núcleo urbano principal, onde se apertavam os ofícios artesanais e o pequeno comércio, uma cintura hortofrutícola com regadio, terras de sequeiro para o pão, mato para a lenha e pastagens para o gado. As cumeadas dos cerros onde passavam os limites do termo urbano, e isso é curioso constatar, coincidem, grosso modo, comos actuais termos concelhios. Persiste o espaço da memória, o tal espaço vital da cidade com as suas gentes, com os seus artífices, comerciantes e também camponeses.
Este território, que é o alfoz da cidade, é aquele que, de uma forma geral define historicamente a célula civilizacional do al-Ândalus. Além desta forte comunidade de autóctones, mais ou menos arabizados a partir do século XI quando a língua árabe se vai tornando dominante, coexistem naturalmente grupos de estrangeiros, alguns orientais, comerciantes e também soldados contratados e pagos pelos poderes municipais.
(…)
III
Porém, não podemos, por outro lado, esquecer que a proletarização camponesa, além de relacionada justamente com uma consciencialização de classe e portanto com uma maior capacidade de luta solidária, não deve também ser dissociada de um processo de um certo empobrecimento não apenas material. A proletarização, neste caso, é também um processo nivelador, de uniformização, em que o trabalhador agrícola perde a sua condição de camponês, perde a sua identidade, perde a sua cultura. Aliás, a escola oficial, integrada no momento festivo, no seu afã bem intencionado de propugnar a alfabetização e o progresso, começou a alimentar na mente da criança o desprezo pelo camponês analfabeto considerado como o negativo da modernidade, a face obscura de um passado que se procura apagar e esquecer.
Ora a criança, antes de ser formatada na escola e antes de condicionada pelos outros meios de comunicação social, respeitava os seus pais e avós camponeses, ouvia com respeito e enlevo as suas histórias, admirava os seus saberes da terra, das árvores e dos pássaros, aceitava como sólido e definitivo o tradicional relacionamento familiar com os mais velhos. Agora, na escola, virada exclusivamente para um estreito individualismo, para um falso progresso e brilho urbano, para a frenética sociedade de consumo, dizem-lhe que o avô não sabe nada, que é ignorante, que é analfabeto. Esta criança, este adolescente, encandeado por esta visão do mundo, perdeu ou está a perder os saberes tradicionais de uma sociedade que era dos pais e avós, ainda rural, sem adquirir ou poder atingir os novos valores apenas balbuciados, ou, o que é pior, sobretudo deturpados da sociedade urbana. Ensinaram-no a juntar letras e vocábulos que lhe permitem apenas soletrar sem entender. Perdeu uma cultura, sem ganhar outra. Este jovem perdeu os antigos saberes dos antepassados, perdeu os conhecimentos da terra, não sabe, não conhece as leis que regem as coisas simples da germinação e da enxertia, os odores e sabores de todos os dias.
Gradualmente fomo-nos apercebendo que é cada vez mais difícil o contacto e o diálogo com as novas gerações. Para seu reatamento é necessário reconstruir a memória. É com ela que podemos abrir algumas portas, que podemos modelar uma comunidade e mesmo um território, E o detentor da memória é indubitavelmente o camponês. O camponês, mesmo sem terra, é alguém que sabe da terra, que conhece os seus segredos. É um homem culto, detentor do significado primeiro da palavra cultura - como amanho da terra. Ele conhece os gestos ancestrais, as leis não escritas do sol e da chuva, ao contrário do proletário industrial, do operário, cuja força não reside no seu saber, puramente mecânico, e sim na sua capacidade solidária de lutar colectivamente pelos seus direitos. O camponês conhece profundamente as plantas, sabe podar e enxertar, conhece-o tipo de solo para cada cultivo e o tempo favorável às sementeiras. O camponês conhece bem o seu território, palmo a palmo, sabe de cada pedra, distingue, por vezes pelo nome, cada ovelha, cada vaca. É um especialista no trato com os animais. O seu valor e capacidade de resistência estão na diversidade dos seus múltiplos conhecimentos, na síntese dos seus saberes que mergulham nos alvores da humanidade.
Ele sabe também ser solidário na sua comunidade. Ele é irmão do seu irmão, ele é amigo do seu amigo e, como ninguém, não só está disposto defender ferozmente as suas hortas ou o seu rebanho como é também capaz de gestos do mais profundo desprendimento.
Aliás, é essa a especificidade do camponês alentejano. Inseparável da sua comunidade, pertence a um corpo único bem patente no gesto e na forma do seu cante.
(...)
foto antónio cunha