Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

terça-feira, 31 de julho de 2007

Deambulando por Lisboa (4)

O Castelo, Alfama, Graça e Mouraria
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* Victor Nogueira
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Iniciamos hoje a nossa visita a Lisboa pelo Castelo de S. Jorge, à sombra do qual se foi desenvolvendo a cidade. Note se que na fotografia o castelo está rodeado de casario, enquanto que por exemplo em Évora as muralhas rodeiam a cidade. (#) Alfama é um bairro muito afamado entre os turistas. É um bairro de ruelas apertadas e tortuosas, que vem do tempo dos visigodos, de gente que trabalha ou vive à custa dos ainda mais miseráveis. A realidade é mais dura que a do fado lisboeta. No canto superior esquerdo pode ver se o panteão de S. Vicente, local de repouso de algumas figuras gradas da história pátria. (O panteão está na Igreja de Santa Engrácia) a das "obras de Santa Engrácia", que foram intermináveis. Por aquelas bandas fica a célebre Feira da Ladra, às 3.ªs e 6ªs, onde ainda não fui. Reparando melhor, parece me que a indicação da legenda do postal está errada: o casario em primeiro plano parece me da Mouraria e não de Alfama, que será o que está para lá do castelo. Para os lados do Panteão é outro bairro típico: o da Graça, velho, é certo, mas onde mora gente bem ou com pretensões. (1) O Rio ao fundo é mesmo o Tejo (não coube todo na foto). As docas são as do Terreiro do Trigo (à esquerda) e da Marinha (à direita). Mais para a direita ficam a estação Sul e Sueste (barco para o Barreiro, comboio para o Alentejo e Algarve) e o Terreiro do Paço. O castelo tem locais muito bonitos e aprazíveis. (MCG - 1972.08.30) (2)
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Cá estamos novamente para um passeio pela Alfama. O que me chamou a atenção neste postal é a vida que ele contém! Alfama será um bocado isto: as ruas estreitas, as sacadas florida, as gaiolas penduradas, a roupa estendida à janela, a mercearia com bata nova a 2$00 o kg [1972]. Lá estão também os miúdos que brincam, o homem da pipa (será o aguadeiro ?), a mulher com a criança ao colo, mais pessoas na sombra... E até não falta a torre sineira duma igreja que não identifico! (MCG - 1972.09.13)
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Neste passeio por Lisboa, vindos do Castelo de S. Jorge para o Rossio, nada como uma paragem para ver Alfama, mais aquela senhora lá em baixo, de janela escancarada, indiferente ao devassar da sua intimidade. (MCG - 1973.09.21)
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Ontem sempre fomos à Feira da Ladra. Consegui "convencer" a minha mãe a ir de carro pelas ruas de Alfama, tão estreitinhas, tão cheias de caixotes e pessoas paradas ou sentadas nas soleiras ou conversando num atravancamento e numa plácida indiferença pelos carros e suas buzinas, uma Alfama de ruas tortuosas com escadinhas e becos e roupa estendida das janelas e sacadas, tão cheia de pitoresco... para turista ver, pois quem lá mora... que remédio senão "auguentar", que o dinheiro não chega para os bifes, quanto mais para viver em Alvalade ou no Restelo, ou mesmo nos apartamentos do J.Pimenta, esses onde o inquilino do 2º ouve o inquilino no 7º puxar o autoclismo às duas da manhã, e o vizinho do lado murmurando. "minha coisinha fofa", entre suspiros e ais lascivos e respirações opressas que se vão acalmando num ressonar em dueto assobiado! Quando fomos para o Castelo de S. Jorge, passamos pelo Limoeiro (a cadeia) mas Alfama ficava para o lado contrário. Mas acabámos por dar com a Igreja de S. Vicente de Fora, que eu pensava fosse do séc.XVI / XVII mas descobri hoje ter sido construído pelo... D.Afonso Henriques. Pff! um enganozito, duns quatro ou cinco séculos. Foi o interior modificado no séc.XVI.. Um engano desculpável. (3) Começando naquela Igreja e estendendo-se quase até ao Rio, passando ao lado da Igreja de Santa Engrácia, Panteão Nacional, estende-se a Feira da Ladra, onde se encontra um pouco de tudo. (...) (1973.09.23)
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Tal como a Igreja do Mosteiro de Alcobaça, também o Panteão de Santa Engrácia despertou em mim uma sensação de admiração. Aquela, pelo ascetismo das suas esguias colunas brancas, como se fora um enorme e alto corredor; este pela magnificência interior dos seus mármores num espaço circular ao centro duma planta cruciforme, brilhantemente iluminado por uma enorme clarabóia no zimbório. Contudo neste monumento, concluído em 1966, são pobres as 4 salas onde se guardam os túmulos de Teófilo Braga, Humberto Delgado, Almeida Garrett e outros, enormes arcas tumulares sem a magnificência dos de outrora, como os de D. Inês e D.Pedro I, em Alcobaça. Por elevador ou através de estreitas escadarias como as dos castelos ascende-se a um terraço na base da cúpula, do qual se avista a paisagem em redor, em todas as direcções.
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A Sé foi outro edifício que só visitei muito tempo depois, já em 1998, embora por ele passasse frequentemente, de eléctrico ou automóvel rumo ao Castelo. Numa curva da rua, ergue-se imponente com as suas duas torres sineiras ameadas, ladeando o pórtico e a rosácea. Tal como nas construções românicas, o seu interior é escuro e frio. O claustro situa-se na traseira do altar mor e não lateralmente e nele estão várias capelas tumulares, vazias, encontrando-se escavado arqueológicamente, para pôr a descoberto vestígios doutrora, tal como os da antiga mesquita muçulmana. Em redor do altar mor reconstruído na sequência do terramoto de 1755 encontra-se um deambulatório, como em Alcobaça, com outro conjunto de capelas tumulares. Notável o facto das arcas tumulares conterem estátuas jacentes, estando as mulheres lendo, possivelmente o breviário, com cães deitados a seus pés, enquanto os homens empunham as suas espadas ou também têm os canídeos em companhia.
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Perto situam-se outros vestígios arqueológicos, os do antigo teatro romano, na rua da Saudade, cuja verdadeira dimensão e forma só antevejo graças a um filme de vídeo que é projectado aos visitantes. Não fora isso e não passaria dum montão informe de pedras virado para o rio Tejo, lá em baixo e hoje tapado pelos edifícios entretanto construídos.(notas de Viagem, 1998.Maio)
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1 - Na Graça situam-se vilas operárias, como a Vila Sousa (Largo da Graça), a Vila Berta (Rua do Sol à Graça) ou o Bairro Estrela d'Ouro (Rua da Senhora do Monte).
2 - Estes são bairros que sobreviveram no seu traçado ao terramoto de 1755. Testemunhos de viajantes nos séculos XVII e XVIII e outros referem Lisboa como uma cidade de ruelas estreitas, de íngremes ladeiras, de muita sujidade e miséria, em cujas ruas mal cabiam duas pessoas lado a lado, quanto mais liteiras ou coches. Para isso foi necessário derrubar portas da muralha, troços desta e mesmo casas. Mas a grande revolução foi introduzida pelo Marquês de Pombal com a reconstrução da baixa Lisboeta, em zona plana, a que se seguiu dois séculos mais tarde a abertura das Avenidas da Liberdade e da República e perpendiculares a esta, conhecidas como as avenidas novas. (1998.Maio)
3 - Afinal o engano tinha razão de ser. O templo primitivo fora construído por D. Afonso Henriques no chão onde haviam acampado as suas tropas na altura da conquista do Castelo aos Mouros. Mas este templo foi arrazado e no seu local Filipe II de Castela mandou edificar uma nova e sumptuosa igreja e convento anexo, nos finais do século XVI. (1998.Maio)
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(#) - Durante muitos anos não fazia a distinção entre castelo e muralhas que circundam a povoação. Assim, as muralhas de Évora nada têm a ver com o Castelo, completamente transformado, como o de Faro, no 1º caso sediando o Quartel da Região Militar e no segundo desfigurado pela instalação de uma fábrica. Em muitos casos as muralhas ficaram desertas e as populações rumaram para a base da colina, como em Arraiolos, Monsaraz, Palmela, Montemor-o-Novo, Castro Marim, Sesimbra, Vila da Feira, noutras mantiveram-se dentro das muralhas, nalguns casos mantendo o Castelo, como em Óbidos, Idanha a Velha, Marvão ou Mértola ou, transvasaram, como em Lamego, Bragança ou Setúbal, onde me parece nunca ter havido castelo medieval. Mantendo o casario, há povoações intra-muralhas praticamente desabitadas, como Óbidos ou Monsaraz. Noutras, resta apenas a Igreja (normalmente chamada de Santa Maria) ou ruínas, como em Montemor o Novo, Castro Marim ou Montemor o Velho. Nalgumas povoações o castelo ou as ruínas dele situam-se ao mesmo nível da povoação, como em Soure, Alter do Chão, Faro, Moura, Beja ou Évora.
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Noutros casos o castelo ou mesmo as muralhas desapareceram, as pedras aproveitadas para construcção de novas habitações, como em Valelhas ou Vila do Touro.
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Por vezes resta apenas o castelo, tendo desaparecido a povoação adjacente, como em Paderne (Algarve)
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Almourol, no meio duma ilhota no Rio Tejo, ou S. Franciso do Bugio (na entrada da Barra do Tejo), são exemplo dum castelo ou forte com funções meramente defensivas, reduzidos à respectiva guarnição (2007.Julho).

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Mar da Palha - Estuário do Rio Tejo


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Regata no Estuário do Tejo
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Estuário do Tejo visto de Alcochete (ao fundo a Ponte Vasco da Gama)
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Estuário do Tejo visto de Alcochete
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Ponte Vasco da Gama (vista de Lisboa)
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Ponte 25 de Abril (vista do Samouco)
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Gaivotas no Rio Tejo
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Ponte 25 de Abril (vista nocturna)
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Lisboa, vista do Rio Tejo
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Cacilheiro - óleo de Real Bordalo
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Lisboa - Cais das colunas - 1962
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Cais das Colunas e Terreiro do Paço
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Cais das Colunas
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Estuário do Tejo no antigamente
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Bergantim Real - última aproximação ao Cais das Colunas
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Bote Cacilheiro
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Lisboa no século XVI
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Monumento aos Descobrimentos (pormenor)
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Torre de Belém
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Estuário do Tejo visto da Torre de Nelém
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Forte de S. Lourenço do Bugio (à entrada da barra)
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Forte de S. Lourenço do Bugio (protegido contra a destruição pelas marés vivas)
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Memória - Embarque para a guerra colonial - Rocha do Conde de Óbidos
Fotografia - Fernando Chapouto

Uma toponomia que permanece

O Mar da Palha, mais que um regolfo por onde entra o Tejo, devagarinho, por entre ilhas (mouchões), no vai e vem das marés, é realmente um Mar, por isso tem toponímia adequada.
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Entre todos emerge o Cabo Ruivo, que ficou assinalado com força na industrialização tardia, monumentalmente marcado pela torre da refinaria e pelos tubos da petroquímica. Cabo Ruivo continuará por muito tempo associado a SACOR/PETROGAL...

Pela terra, ao longo da Ribeira, outros topónimos sonantes e cuja explicação original vai ficando cada vez mais longínqua: o Braço de Prata, um dos heróis do mar que, como outros, poderia ter passado os seus últimos dias nas calmas das doces encostas de Chelas ou Marvila, voltadas para o mar, ainda que um pequeno mar, exactamente como o fez o Fernão Mendes Pinto, que da sua quinta do Pragal (Almada) deveria sonhar, nos sonidos das brisas e das ondas da Caparica, com os terríveis mares do sul e do nascente. Mas D. António de Sousa Meneses que perdeu o braço em 1635, a defender as costas do Brasil contra os ataques dos holandeses, voltou e depois da prótese que o haveria de "eternizar" dando nome à quinta que herdou de seu pai, embarcou de novo, primeiro para a Índia, depois para o Brasil, onde acabaria os seus dias já no último quartel do século XVII.

Olivais eram presença forte, como as vinhas, na envolvente rural imediata de Lisboa - curiosamente as oliveiras impuseram-se mais na toponímia que as vides: Olival Basto, Olival do Santíssimo, Rua da Oliveira, Largo da Oliveirinha...

Por último a Igreja, fortemente implantada desde o início da nacionalidade, com destaque para o Convento de Chelas; mas o mais interessante é o apreço em que os bispos de Lisboa têm estas bandas orientais, Tejo acima, acessíveis por barco... Por isso melhoraram sucessivamente a "residência" de Marvila, até que D. Tomás de Almeida mandou edificar, no século XVIII, o actual Palácio da Mitra; já no século XVI um Poço do Bispo ganhou tal nome no fornecimento de água às populações que até veio a dar nome à maior concentração de armazenistas de vinho de Lisboa - e o Poço do Bispo é mais conhecido pelo vinho que pela água... Também a Mitra terá um desvio significativo, quando um dos ministros (Interior) de Salazar, o Coronel Lopes Mateus, mandou, nos anos 30, construir nos terrenos livres um albergue para alojar ou simplesmente esconder (quando Lisboa tinha visitantes ilustres) os vagabundos e outros pobres da cidade. Para muita gente o topónimo Mitra não é assimilado ao elegante palacete episcopal, hoje propriedade do Município, mas sim aquela memória triste de albergue-presídio.
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domingo, 29 de julho de 2007

Lisboa - Recantos de Alfama



Lisboa - O sexo (a política) e a cidade

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Arco das Portas do Mar
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Entre fachadas e casas do passado, as portas velhas e o bulício actual do centro, o traçado desgastado de Lisboa dá-lhe contornos diferentes, que falam de alianças e traição
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* Ana Pago

À primeira vista, a questão que serve de mote ao passeio pela zona histórica de Lisboa - como é que o sexo pode influenciar o percurso de um país com mais de 800 anos? - parece quente e pouco recomendável a seniores ou menores de 18 anos, mas a verdade é que um primeiro olhar não basta. São precisos muitos olhares, e pelo menos duas horas de contacto com "A Importância do Sexo na História de Portugal - Como o amor influencia a nossa política", para o público concluir que sim, influencia em tudo.
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O sexo esteve na origem de alguns dos acontecimentos nacionais mais marcantes, justifica plenamente o carácter de visita guiada que a empresa de animação turística Bode Espiatório lhe deu - - sempre com base no conceito de reinventar as tradições para pensar no futuro que a levou, entre outras coisas, a conceber jantares-mistério (onde os comensais, a braços com um crime, se divertem a decifrar pistas), passeios de emoções fortes, perseguições e rally papers.
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"Calcorrear a nossa Lisboa antiga é só um pretexto para perceber a evolução do País, desde D. Afonso Henriques ao 25 de Abril, a partir dos escândalos sexuais que caracterizaram cada época histórica", explica ao DN o historiador Miguel Aguiar, preparando a voz e o fôlego para conduzir mais uma visita a todos os recantos que se estendem para lá do Miradouro de Santa Luzia, onde o grupo se reuniu e aguarda a partida com cochichos expectantes e bloco de notas em punho.
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Acima de tudo, importa frisar que os escândalos sexuais que dão nome a este roteiro pela cidade são muito poucos quando comparados com a riqueza de outros pormenores aparentemente menos aliciantes. "Sei que isto desaponta muita gente", concede o guia, o passo saltitante a descer já a escadaria para abraçar a força ancestral do lugar. Mas mais que de sexo, Lisboa vive de alianças e histórias de amor. É assim desde o início dos tempos.
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"As pedras que aqui vêem pertencem à cerca moura, assim chamada por delimitar a cidade árabe. Antes, também os romanos haviam ocupado esta mesma colina e alguns acabaram mesmo por estabelecer boas relações com os mouros, nem tudo foram inimizades." E não foram. O amor deixou sempre marcas vincadas de norte a sul, ajudando a escrever a história em várias línguas. A de Lisboa e a do País.
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Percebe-se isso à medida que os dedos dos curiosos percorrem a pedra grossa da parede árabe na descida para Alfama (o nome do bairro significa "águas termais"), criando o momento perfeito para viajar pela Reconquista Cristã e falar das laranjeiras selvagens, "também elas trazidas pelos árabes", que iluminam os passeios da cidade. Sente-se isso na conversa entusiasmada sobre nomes de família e respectivas origens, suscitada por brasões descobertos entre fachadas históricas e casas antigas.
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A meio caminho entre o chamado Chafariz de Fora (mandado edificar pelo rei D. Dinis no século XIII) e o Campo das Cebolas, alguém tem uma dúvida mais para colocar sobre a invasão da Península Ibérica pelos árabes do Iémen no século VIII. Miguel Aguiar não hesita, responde a tudo com o mesmo toque de humor britânico que põe na visita guiada desde o início. E acaba a falar de Silves e da lenda das amendoeiras em flor.
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"Tudo aconteceu quando o Algarve era reinado por Ibne Almundim, poderoso entre os poderosos reis mouros." Mas não imune à paixão. "Um dia, num grupo de prisioneiros de batalha, ele viu-a pela primeira vez Gilda, a princesa loura de olhos azuis, a Bela do Norte que desposou e libertou." E, todavia, ela definhava um pouco mais todos os dias, com saudades da neve que deixara para trás. "Ibne Almundim percebeu que acabaria por perder Gilda e plantou no reino centenas de amendoeiras, que, na Primavera, rebentavam em flores brancas que substituíam a neve das terras nórdicas", conta o historiador. "E viveram felizes para sempre."
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De passagem pela Casa dos Bicos, o Arco das Portas do Mar, a Sé, o Largo da Madalena, a Conceição Velha, a Praça do Comércio e a Rua Augusta, a história muda de protagonistas e transborda de casamentos e traições, homicídios e golpes de Estado. Lisboa ganha uma dimensão diferente a da imaginação e do conhecimento. E o País torna-se, afinal, mais compreensível.
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in Diário de Notícias - Quarta, 4 de Janeiro de 2006
Fotografia - Leonardo Negrão

sábado, 28 de julho de 2007

Lisboa - Bordejando Alfama

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Casa dos Bicos e Sé
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Arco das Portas do Mar (foto Leonardo Negrão)
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Arco Escuro
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Fotografia de Armando Serôdio, 1968, Arquivo Municipal de Lisboa - AFML A63012

Beco do Arco Escuro é hoje um arco de volta abatida com dois metros e meio de largo, e abre-se a partir da rua dos Bacalhoeiros pelo lado norte. Passando um pequeno troço da rua das Canastras e a Travessa de Santo António chega-se ao largo da Sé. Para alguns autores este lugar seria o antigo postigo da rua das Canastras, aberto na muralha depois da reconquista, e que serviria mais para serventia do que para defesa. Outros autores dizem que neste lugar terá existido a Porta do Mar, pois por ali entrava o mar aquando da maré-cheia. Um facto é indesmentível, depois da reconquista e com o desenvolvimento da cidade as portas tornaram-se inúteis, mudaram-se em arcos. Passou-se da porta medieva para o arco, de fins guerreiros para fins pacíficos e urbanos.
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Sabemos pela carta do Cruzado Osberto de Bawdsey que o último assalto à cidade se fez a partir desta zona, e a cidade foi conquistada ao fim de 17 angustiosas semanas.
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in http://revelarlx.cm-lisboa.pt/
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Casa dos Bicos (antes da «reconstituição»)
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Casa dos Bicos
foto Peter Wilson (c) Dorling Kindersley
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Casa dos Bicos
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A chamada Casa dos Bicos é um dos nossos ex-libris. Mandada construir em 1523 por Brás de Albuquerque, presidente do Senado em Lisboa e protegido do rei D. Manuel, era destinada a habitação. Brás de Albuquerque era filho de Afonso de Albuquerque, (1º Vice-Rei da Índia conquistou Goa e Malaca ); a frontaria é uma adaptação de um estilo muito popular na Europa mediterrânica do século XVI. Serviu de armazém às riquezas que vinham do Oriente e que depois rumavam a Bruges, Antuérpia e outros mercados europeus.
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A sua decoração, os "bicos", demonstra uma clara influência italianizante, provavelmente do Palácio dos Diamantes em Ferrara, ou do Palácio Bevilacqua em Bolonha. Em 1981, foi restaurada segundo o desenho primitivo para albergar um dos núcleos da XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura. Acolheu a Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses até à sua extinção. Recentemente tem sido palco de exposições temporárias.
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Ao lado, a Casa das Varandas (Casa Amarela para alguns) – Séc. XVI As varandas no meio são diferentes em todos os pisos e diferentes das outras do mesmo piso. Não só pelo desenho da varanda (rectangular e não redonda), como pelo formato das portas. Foi restaurada no Séc. XVIII e ampliada com mais dois pisos no Séc. XIX (estes não respeitam o traço das janelas e varandas dos pisos inferiores).
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Chafariz d’el Rei
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Vamos para Alfama pela Rua S. João da Praça - que começou um pouco atrás junto à Sé de Lisboa - e viremos à direita para a Rua Cais de Santarém onde se encontra o Chafariz d’el Rei, assim chamado em memória de D. Diniz e que foi então o mais grandioso da cidade, com bicas que abasteciam separadamente mulheres brancas e escravas e homens de côr.
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Mesmo aqui no subsolo, borbulham ainda as «águas santas» debaixo de um alçapão. Seguindo pelo Largo do Terreiro do Trigo chega-se ao Largo do Chafariz de Dentro, assim chamado por se encontrar no interior da muralha fernandina e também conhecido por Chafariz dos Cavalos por as suas bicas terem cabeças de cavalo. Aí podemos descansar e entrar na Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa que lembrará a história desta canção nacional com as suas complexas origens afro-brasileiras e que evoca nos seus textos carregados de sentimento tanto a alma popular como os grandes valores aristocráticos.
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Deambulando por Lisboa (3)

Baixa Pombalina




Engenharia pombalina


O título é provocador, eu sei: quando nos referimos à baixa de Lisboa costumamos dizer arquitectura pombalina... No entanto a verdade é que todo o seu projecto, das ruas às casas, foi obra de engenheiros. Isto não acontece por acaso. Por esta época a engenharia militar tinha uma tradição consistente em Portugal que lhe vinha já desde os tempos da dinastia Filipina e da Restauração ao passo que a arquitectura nacional andava pelas ruas da amargura, sendo comum chamar arquitectos estrangeiros para as obras mais significativas.

A história da reconstrução de Lisboa é uma história da pragmatismo e de inteligência começando logo pelas estratégias. Em cima da mesa havia três hipóteses básicas: reconstruir com algumas melhorias; arrasar e fazer tudo de novo sem limitações; fazer uma nova capital junto a Belém. D. Sebastião José escolheu a segunda hipótese e nomeou o engenheiro-mor do reino, Manuel da Maia, para a pôr em prática. Este escolheu para seus colaboradores o capitão Eugénio dos Santos e o tenente-coronel Carlos Mardel, ambos engenheiros militares.
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Ao contrário do que se pode pensar o projecto não era inovador. Tratou-se de uma mistura bem doseada de vários elementos que tinha como objectivo a economia, a rapidez e a resistência aos sismos. A estrutura adoptada para as novas construções baseou-se na dos edifícios que menos danos sofreram aquando do terramoto: aqueles com uma estrutura em madeira embebida nas paredes, também conhecida como gaiola. Inicialmente previstas para terem apenas dois pisos, as novas construções foram subindo à medida que as recordações do terramoto se tornavam distantes.
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Não posso deixar de pensar que se há 250 anos atrás D. Sebastião José tivesse entregue o projecto da baixa lisboeta a um arquitecto teríamos hoje uma bela composição rocócó possivelmente, uma espécie de Palácio de Queluz em tamanho gigante, e não aquele bocado de cidade de referência que sempre foi e é a baixa pombalina...
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Aqui fica um link interessante para quem quer saber mais sobre estas questões técnicas.




Mouraria, Alfama e Castelo

Mouraria

Mouraria

Foto de Eduardo Portugal, 1932, AFML - B094412

Mouraria, assim designada depois de D. Afonso Henriques mandar os mouros, expulsos da sua cidadela, para aquele local. Ali viveram mouros livres ou forros, que conservavam os seus costumes: praticavam a sua religião, falavam árabe e eram governados por um alcaide. Assim foi até 1497, data em que D. Manuel I expulsa os judeus e os mouros de Portugal. No entanto, o vocábulo permanece até aos nossos dias. A Mouraria evoca tempos de façanhas obscuras da faca e do bofetão (Castilho, 1967, BO, III, 303) frequentado por pimpões, fadistas e vadios de Alfama e do Bairro Alto. Hoje é sobretudo o pitoresco e não faz mal a ninguém (Norberto Araújo, 1992, vol III, 60).
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A Mouraria abrange o sopé e as faldas do Castelo, pelo lado norte, dilatando-se até às portas de São Vicente, hoje a rua do Arco do Marquês de Alegrete.
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Rossio antes do terramoto de 1755
(vista parcial - ao fundo a Igreja de S. Domingos)

O início da construção do Hospital Real de Todos os Santos deu-se na manhã de 15 de Maio de 1492, tendo sido lançada a primeira pedra na presença do rei D. João II no ano em que este tinha feito 40 anos, tendo morrido aos 43 anos no paço do alcaide-mor (Álvaro de Ataíde) em Alvor. A direcção da obra ficou a cargo do mestre arquitecto Diogo Boitaca.

Igreja da Conceição Velha - pormenor do portal manuelino


Igreja da Conceição Velha

Foto Joshua Benoliel, início do século XX, Arquivo Municipal de Lisboa - AFML, A26004

Localização - Rua da Alfândega Freguesia: Madalena

Autoria - Arquitectos Francisco António Ferreira Cangalhas e Honorato José Correia

Data - Séculos XVI-XVIII

Em 1496 a judiaria grande é extinta e a sua sinagoga é incorporada para o culto cristão transformando-a em Igreja da Conceição dos Freires, coincidindo com o estabelecimento de uma nova paróquia, a de Nossa Senhora da Conceição. Com o terramoto de 1755 a Igreja da Conceição dos Freires é demolida e os seus bens são integrados num outro edifício também de invocação a Nossa Senhora da Conceição, passando então a chamar-se de Conceição Velha.

A Igreja de uma só nave possui um portal manuelino, raro exemplar da representação de Nossa Senhora da Misericórdia, cujo manto aberto e seguro por dois anjos, protege o rei D. Manuel I e a sua irmã a Rainha D. Leonor, fundadora das Misericórdias em Portugal. O altar-mor corresponde à capela do Santíssimo Sacramento da antiga Igreja da Misericórdia. Junto da capela-mor pode-se encontrar o quadro dedicado à Nossa Senhora do Restelo, oferecido pelo Infante D. Henrique aos freires.


Vista aérea do Rossio na actualidade

Após o terramoto de 1755 a Igreja de S. Domingos foi reconstruída, mas não o Hospital de Todos os Santos. No local do Teatro Nacional, ao fundo, situava-se o Palácio dos Estaus, sede da Inquisição

Avenida da Liberdade - Quiosque Tivoli

Pintura digital de António Amado (cópia do selo de Maluda)


Praça da Figueira antes da demolição do Mercado
Foto - Eduardo Portugal, Ant 1949, Arquivo Municipal de Lisboa, AFML - B094416

Nasceu em 1755, no terreno das ruínas do Hospital de Todos os Santos, impondo-se como mercado central e destinado à venda de frutas e legumes. Passou entretanto por vários nomes: Horta do Hospital, Praça das Ervas, Praça Nova e Praça da Figueira. De um local de bancadas diárias passou a praça fixa, com barracas arrumadas e um poço próprio.
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Ao longo dos tempos, foi sofrendo algumas alterações consoante as necessidades da população. Assim, em 1835, é arborizada e iluminada, em 1849 foi-lhe colocada uma cerca gradeada, coberta e com 8 portas e em 1882 foi aprovado o projecto da nova praça, que consistia num edifício rectangular, com estrutura metálica e ocupando uma área de quase 8 mil metros quadrados.

Da venda de fruta e legumes, passou-se à transacção de outros produtos alimentícios necessários à população, fazendo da baixa lisboeta um local com um constante fervilhar de vida.

Desde logo, a praça tornou-se um dos emblemas de Lisboa, quer pela sua construção, quer pela sua localização no centro da cidade, quer ainda pela realização de verdadeiros arraiais por altura dos santos populares, transformando-a num verdadeiro teatro.

Em 1947, a vereação da altura decidiu o fim da praça, prevendo o alargamento da rede viária de Lisboa, que incluía a demolição do Socorro e zona baixa da Mouraria como forma de escoamento de trânsito, aproximando a cidade de Lisboa aos padrões europeus. Em 1949 festeja-se o último Sto António, procedendo-se de seguida - a 30 de Junho - à demolição do edifício.
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1968 é o ano da assinatura do contrato para a construção da estátua equestre de D. João I.
Freguesias: Santa Justa; São Nicolau

Do Cinema Éden, resta apenas parte da fachada
(a um cantinho à direita, junto ao Palácio Foz, ficava o pequeno cinema Restauradores)
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Cinema Condes (encerrado)
(Nesta zona situavam-se muitos cinemas e teatros, sobretudo na Rua das Portas de Santo Antão, como mais abaixo enumero)

Convento do Carmo, antes do Terramoto de 1 de Novembro de 1755

Mandado edificar por D. Nuno Álvares Pereira no século XIV, começou por ser um convento carmelita. Na cerca, foram construidas celas minúsculas, destinadas a acolher os frades que vinham de Moura.A cela do Santo Condestável ficou conhecida como "Casa do Século". Por consequência do Terramoto, vários conventos foram destruídos; O fervor religioso regista também um forte abalo, culminando na expulsão e extinção das Ordens Religiosas, ordenada por Joaquim António de Aguiar, em 1834. De traço gótico, foi parcialmente destruído pelo Terramoto de 1755; Nunca tendo sido totalmente reconstruído, resta hoje o Claustro - de planta rectangular - e parte das ogivas da coberta.


A Baixa pombalina, o Passeio Público e as Avenidas Novas

* Victor Nogueira

Ficámos no Hotel Americano, na Rua 1º de Dezembro. Ao entardecer vim dar uma volta, para ver as montras nos Restauradores e Avenida da Liberdade. Vi os cinemas Éden, que parece luxuoso, e Restauradores (que dá sessões contínuas). Subi a avenida e cheguei ao Parque Mayer. Dei por lá uma volta, tendo feito o gosto ao dedo na barraca de tiro ao alvo. Parte do [filme] "O Parque das Ilusões" passa se aqui. Quando cheguei ao S. Jorge [um pouco mais acima] voltei para o hotel. Passei pelo Tivoli e pelo Condes. As montras das lojas são variadas. Utilizei a passagem subterrânea. Depois do jantar fomos comer uns camarões e beber umas cervejas. A casa onde comemos tem as paredes forradas de conchas. (1963.09.09 - Diário III)

São 12 h 00.m. Estou a escrever sentado numa das mesas dum dos cafés do Rossio, que tem resistido às investidas dos bancos (por quanto tempo, ainda?) mais precisamente o "Nicola", que foi o poiso dum dos nossos maiores colegas: Bocage. Escrevo e simultaneamente vou comendo um "croissant", sorvendo aos poucos um escaldante "garoto" claro (ou "pingo", como se diz lá para o Norte). Nas mesas homens que já não são jovens - pelo menos cronologicamente como eu - encafuados em pesados sobretudos, alguns de chapéu a cabeça, cavaqueiam (sobre quê?), lêem o jornal ou limitam se a seguir com os olhos, absortos em pensamentos, o fumo dos cigarros.
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Também estão algumas mulheres (talvez senhoras, mas isso não interessa, somos só homens e mulheres). Aquela ali à minha esquerda escreve, não cartas mas, numa agenda ou bloco, notas. Ali a porta gira, gira, gira. Na fonte que se entrevê pela montra, a água jorra, jorra, jorra. Os automóveis passam, passam, passam. E o murmúrio das vozes, o tilintar das louças, a gaveta da caixa, constituem um pano de fundo. Évora morta, chata, entediante, onde estás tu!? (...)
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[Depois da monotonia de Évora, todo este bulício é reconfortante]. São 14:50. Fui corrido do café pois um "garoto" e um bolo não dão direito a mesa "per omnia saecula, saecolorum"! Especialmente à hora do almoço. (NSF - 1968.12.23)

Da Alfama medieval para a Baixa pombalina, eis a rota do nosso passeio. Também gosto desta "vista". Repara que enquanto Alfama é residencial, a Baixa é essencialmente comercial. Uma única semelhança: os candeeiros das iluminação pública [1972]. Anúncios luminosos, automóveis, e ruas mais largas são o contraste (Quando andava na 4ª classe [em Luanda] e ouvia falar nas ruas do Marquês, imaginava-as em largura à medida das de Luanda... que têm o dobro ou o triplo destas!). Ao fundo fica o elevador de Sta. Justa, que separa o Largo do Carmo da Igreja do mesmo nome, cujas ruínas se avistam do lado direito - os dois arcos em ogiva. Esta é uma das igrejas da expressão "Cair o Carmo e a Trindade" (após o terramoto de 1755). (MCG - 1972.09.15)

Estou agora a lanchar numa pastelaria aqui no Chiado, que tem penduradas na parede - um armorial, uma couraça, um capacete e duas espadas do século XVI. Desgraçados dos soldados que usavam tal ferraria em climas tórridas. (1973.01.04)

Ao entardecer de ontem as ruas da Baixa tinham um cheiro a chuva - um cheiro bom - enquanto as montras ao longo das ruas eram um apelo pelos saldos, principalmente vestuário. (...) Está hoje um calor abafado, sem nada da leveza das semanas anteriores. Prevê se, segundo os jornais, o racionamento de água em Lisboa. Água que já falta há muito nos concelhos limítrofes de Oeiras, Sintra e Cascais, onde pessoas há que não se podem lavar senão com águas de garrafão, tipo Luso e similares. Isto se não quiserem cheirar a sovaquinho e plantarem uma hortazita na sujidade do corpo. Entretanto a cólera alastra pela Itália e a Companhia das Águas de Lisboa vai informando que lançará mais desinfectante nas águas e, à cautela, a Direcção Geral de Saúde faz as recomendaçõezinhas da praxe, sem qualquer interesse dada... a falta de água. (MCG - 1973.09.05)

Desta vez escrevo do café Gelo, aqui no Rossio, avistando ali uma nesga da Rua 1º de Dezembro e da Estação [do Rossio]. Defronte a mim o [Emídio] Guerreiro acabou de lanchar e lê agora o jornal. Mais adiante, o empregado da tabacaria, calças aos quadrados., camisola preta e longos cabelos louros, vai lanchando e arrumando a loja. Esperamos que o Carlos [Nunes da Ponte] saia do emprego. O Guerreiro chegou ontem e temos percorrido Lisboa em busca dum emprego que não aparece, apesar do coração de Portugal estar doente e ser uma chatice se deixar de trabalhar (Pelo menos é o que diz o anúncio da RTP). Assim, temos deixado impressos devidamente preenchidos... aguardando. As minhas tias, especialmente Esperança, andam inquietas, pois dizem que eu sou bolchevista (ai, credo!) e assustam se quando digo que vou começar a assaltar bancos. (...) (MCG - 1974.10.22)

Antes deambulara pela Feira do Livro, ao longo da Avenida da Liberdade, onde comprei uns livritos, muito poucos. (...) Havia muitas barracas de livros mas poucas novidades ou livros de interesse para mim. Os partidos também tinham os seus pavilhões, ao longo do relvado: o maior pertencia ao MRPP. Uma rapariga e alguns rapazes falavam de Angola, do MPLA e dos maoístas e fiquei emocionado por encontrar gente da minha terra a falar de assuntos que me respeitam. (...) (1975.06.29)

(...) À tarde o Rui queria ir ao cinema ver o Pimentinha, baseado num miúdo endiabrado personagem da banda desenhada; mas a Susana preferia ver as lojas da Baixa pombalina, para arejar o dinheiro. Prevaleceu a proposta da Susana, que comprou adereços de artesanato em pele e missangas, tendo oferecido ao maninho uma fina pulseira em cabedal.

Com a Rua Augusta fechada ao trânsito automóvel, os passeantes passeiam-se à vontade no longo passeio público, onde personagens variados expõem as suas habilidades. Aqui um presumível grupo de índios da América Latina, todos de igual vestidos, interpretam canções do seu folclore, perante uma pequena multidão à sua volta, fotografando ou embasbacando-se. Menos assistência tinha um deficiente físico pintando um quadro com a boca. Mais além outra pequena multidão rodeava um velhote com periquitos numa caixa e um plano inclinado, sem que se percebesse que habilidades saíriam dali (talvez estivessem intimidados com a assistência ou ainda em fase de aprendizagem). E como não podia deixar de ser, um homem estátua, de palhaço vestido, embora de vez em quando fizesse momices com os olhos para divertir a numerosa assistência. Não deixo de admirar a capacidade destes indivíduos para estarem completamente imóveis, tanto mais quanto eu sou um mosquito eléctrico! Ao fundo, junto ao Arco da Rua Augusta, vendia-se artesanato, por pessoal mais limpo e aspecto mais comum do que aquele de ar sujo e maltrapilho que outrora abancava naquele sítio, ao jeito pretensamente hippie.

Hoje não choveu, apesar do tempo trovoadoresco, pelo que acabámos na Praça da Figueira (1) cheia de gente, na Esplanada dos Irmãos Unidos vizinha da Suiça, mas com pouca variedade de comes e bebes. Por lá apareceu um indivíduo, poeta popular, vendendo meia dúzia de poemas em livro de sua autoria, a quem comprámos um exemplar que dedicou à Susana, depois dele e a minha mãe se terem recitado mutuamente poemas das respectivas autorias. De qualquer modo os dele, em conteúdo, não chegam nem de perto nem de longe aos calcanhares do António Aleixo, algarvio, ou do Calafate, setubalense, pois quanto ao estilo são diferentes. (MMA - 1993.08.19)

Do Coliseu, ali à rua das Portas de Santo Antão, nada me recordava. Pensava no entanto que teria um aspecto grandioso ou ao menos imponente, pelo que há uns anos fiquei desiludido quando lá voltei, para assistir a um plenário sindical. Nesta zona situavam-se muitas casas de espectáculos, como os cinemas Politeama, Arco-Íris, Odeon, Condes e, no outro lado da Avenida ou nas cercanias, o Éden, S. Jorge, Tivoli, para além doutros mais modestos, como o Olímpia, o Restauradores e o Arco do Bandeira, este com uma inconfundível fachada arte nova, mandado construir por um capitalista que lhe deu o nome. A maioria deles já encerrou, após agonia de alguns como salas de filmes pornográficos, e outros foram reconvertidos, ou em salas mais pequenas, ou em hotéis para lá da fachada, como o Éden. Dos teatros de revista do Parque Mayer apenas persiste o ABC, estando os restantes encerrados, o espaço transformado em parque de estacionamento pago, subsistindo alguns restaurantes e dois modestos alfarrabistas.
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Dois edifícios, no Rossio, foram devorados pelas chamas e reconstruídos. Um foi o Teatro Nacional D. Maria II, em 1965, e outro a Igreja de S. Domingos, em 1959, embora nesta tenham deixado as marcas do fogo e derrocadas marcadas nas colunas, altares e paredes. Ao fogo estiveram outrora estes edifícios ou anteriores ligados. O primeiro, porque dele partiam as procissões e autos de fé de quem seria queimado por heresia, a mando e sentença dos dominicanos e da Santa Inquisição, cujo palácio, entretanto reconstruído pelo Marquês de Pombal após o terramoto de 1755 e no século seguinte destruído também por um incêndio, se situava no local onde Almeida Garrett mandou erguer o Teatro Nacional que já teve o seu nome.
Também a Igreja de S. Domingos, destruída pelo mesmo terramoto tal como sucedeu com o vizinho Hospital de Todos os Santos, esteve em 1506 ligada à intolerância, por nela se ter iniciado a matança de 2 000 judeus e cristãos-novos. (Notas de Viagem, 1998.Maio)
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Após o terramoto de 1755 o Terreiro do Paço ficou mais agradável, com a nova Praça do Comércio ladeada por edifícios de arcadas, que do exterior não parecem tão grandes, com os seus claustros e corredores, estes com tal largura que muitas ruas medievais a não têm.

Nada que se compare ao antigo terreiro onde o rei tinha o seu desgracioso palácio, com vista para o rio e para o barulho, bulício e azáfama dos estaleiros navais na Ribeira das Naus ou dos comerciantes do outro lado, nos baixos dos edifícios e no meio do lamaçal. Entretanto roubada aos transeuntes para se transformar em parque de estacionamento automóvel, atravessado por muitas e desvairadas gentes que vão para o emprego ou regressam a casa, para isso tendo de sulcar o rio, a Praça foi agora devolvida aos peões.

Perto, a caminho do Campo das Cebolas, pela rua da Alfândega, é notável o pórtico manuelino da Igreja de N. Sra. da Conceição Velha, (2) do qual mal nos apercebemos quando por ela passamos. Neste local existiu uma sinagoga judaica, mandada destruir por D. Manuel I, o Venturoso. Da sua ventura, contudo, não beneficiaram os judeus, convertidos à força para não serem expulsos de Portugal por exigência dos piedosos ... reis católicos de Castela.

Para norte dos Restauradores situa-se a Avenida da Liberdade, cuja abertura destruiu o Passeio Público, arborizada, mas onde os prédios do princípio do século vão sendo substituídos por outros, com diferente traça. Termina a avenida no Parque Eduardo VII, ladeado de arvoredo, destinado a substituir o referido Passeio Público, e onde se situam a Estufa Fria, um lago e o Pavilhão dos Desportos, onde por vezes ocorrem comícios. Na sua parte central passou a realizar-se a Feira do Livro, depois duma longa permanência na Avenida da Liberdade e uma breve passagem pelo Terreiro do Paço. (Notas de Viagem, 1998.Maio)
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1 - A esta praça vinha dar um esteiro do rio Tejo, no tempo da ocupação romana. Vestígios de cetáreas encontram-se na Rua dos Correeiros e na Casa dos Bicos.

2 - Este portal é proveniente da Igreja da Misericórdia, destruída pelo terramoto de 1755.