1994
Desta vez é que fui mesmo ao tapete, usando a gíria do pugilismo. Pois é, desde 5ª feira passada (23 setembro) que mal me aguento nas canetas, pelo que na 6ª voltei ao médico, que me queria passar um atestado para ficar em casa, decisão que adiei para 2ª feira (27 setembro). Está um fim-de-semana bonito, soalheiro, grande parte do qual passado a dormitar, eu que normalmente não consigo dormir de dia e que me deito já quando a noite vai alta. Porque me sentia bastante em baixo ainda telefonei à minha vizinha Estrela para me comprar pão, fruta e os jornais, mas como ela já saíra tive de meter-me no carro para ir ao Jumbo abastecer-me. Mas hoje, embora zonzo, lá saí novamente á hora de almoço para comprar o jornal.
Isto dos médicos é uma ova, porque amigos amigos, negócios á parte. Claro que a médica deveria ter-me auscultado quando a consultei no regresso de férias, porque lhe dissera que tinha estado com problemas na garganta durante férias, que tentara resolver com auto-medicamentação. Como o não fez, uma semana depois estava lá (re)caído,descobrindo então a lástima em que eu tinha a garganta e os brônquios(…)
Disse-te um dia destes que relera com emoção um poeta que é o Eugénio de Andrade. Dou comigo a relê-lo com uma certa tristeza. Porque afinal muitos dos poemas do Eugénio de Andrade expressam não a plenitude da alegria do amor alcançado mas a nostalgia do que se perdeu ou não alcançou.
A propósito, noutra ocasião, por lapso, escrevi "Prefiro o amor á amizade ... " quando o que deveria ter saído seria "Prefiro a amizade ao amor". Mas hoje não me apetece dissertar sobre este tema.
Houve na minha vida dois breves tempos de grande alegria, libertação e crença numa vida diferente: os meses a seguir ao 25 de Abril, (quando a alegria e a solidariedade andavam no ar e em cada esquina), e as primeiras semanas de 1986, (quando reatei relações com velhos amigos e "encontrei" a Maria do Mar). Mas não se concretizaram as promessas que eles continham e hoje está de novo este tempo cinzento e fechado que me cerca. Um tempo retratado num velho poema meu de 1985 [da fase terminal do meu casamento].
Notícias do Bloqueio II
Estão suspensas as palavras
Proibidos os gestos
de ternura, amizade e amor.
O silêncio invade as ruas
entra nas casas
senta-se á mesa da gente.
Que sentido tem dizer
amor
amiga
camarada
companheiro?
Que sentido tem
abrir as mãos e os olhos
e perguntar qual o significado do
que vemos, ouvimos, entendemos e sentimos?
Gaivotas loucas, alvoraçadas, enchem os ares
de movimento e ruído
enquanto a vida escorre pelos dedos
indiferente
medíocre
submissa.
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O domingo está passado. Para além da janela envidraçada, o negrume da noite pontilhada de luzeiros e reflectindo as estantes cheias de livros. Liguei o televisor aqui doescritório, que transmite uma telenovela, para dar notícia do começo de mais um episódio da 6ª série de O Polvo, sobre a Mafia Italiana.
Passei o fim-de-semana metido em casa. Apenas o Caló por cá apareceu á tarde, para ver e interrrogar-me sobre as fotografias e ver no vídeo filmes de desenhos animados do Walt Disney. Quando me preparava para regar as plantas ofereceu-se para fazê-lo, mas não jantou cá, pois entretanto a madrasta veio buscá-lo.
Setúbal, 1994.02.06
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Está um domingo nem chuvoso, nem soalheiro. Está uma tarde gélida: o frio entra pelos interstícios das janelas como lâmina cortante e tenho o corpo gelado, apesar dos agasalhos. Os meus tios foram sair ver uma exposição no Centro Cultural de Belém, eu resolvi ficar em casa. Se tivesse o meu carro metia-me com as rodas á estrada. Assim fico por aqui [em Paço de Arcos] até 2ª feira; nos dias seguintes [em Setúbal] irei ao fisiatra e aos restantes especialistas por causa das minhas maleitas. Esperemos que a Fátima, [a secretária da minha chefe] me tenha marcado as consultas todas. Entretanto retornarei àchateza do emprego e duma vida que me vai escorrendo sem entusiasmo.
Sinto-me desanimado e cansado das minhas ilusões, dos sentimentos por mim supostos em outrem. Dói-me voltar sempre ao mesmo, sem esperança nem futuro. Mas na vida não há caminho senão aquele que nós, caminhantes, abrimos ao caminhar. E qual é o caminho que a minha amizade pelos outros abre? Qual é o caminho que os outros me abrem?
Setúbal, 1994.02.20
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Esteve hoje um domingo bonito, soalheiro e primaveril. Mas não me apeteceu andar por aí a deambular sózinho, nem ir a casa do Zé e da Madalena, no Seixal.
De modo que fiquei aqui em casa, às voltas com o computador, aperfeiçoando-me na utilização de programas de cálculo matemático e de construção de gráficos. Fora isso fiz por aí uns consertos e reparações, mas como não comprei as buchas para os parafusos ainda não foi desta que instalei a tomada de corrente na parede do corredor para ligar o aquecedor a óleo, que muita falta me tem feito nestes dias frios, de bater o dente. Não encontrei ainda os vedantes metálicos para as janelas.
A Maria do Mar já deve ter recebido as duas fotografias que lhe mandei, embora não me tenha dito qual a sua opinião acerca das mesmas e se escolheu alguma delas para o seu porta-retratos. Hoje enviei-lhe as que lhe tirei na sua bonita sala, embora tenham ficado escuras. Comprei umas molduras grandes para decorar as paredes com as ampliações das minhas melhores fotografias, mas depois quando as fui seleccionar não me agradou nenhuma delas. De resto cada vez gosto menos da minha casa, embora seja nela que passe muito tempo, quando não ando na rua ou por aí.
Antigamente, aos fins-de-semana, ia até à Serra da Arrábida ou até ao morro de S. Filipe ou para a Estrada da Comenda, o carro debaixo da sombra duma árvore para ler o jornal e para ouvir música. Mas agora fico-me pelo descampado no cimo das escarpas de S. Nicolau, onde as árvores ainda não cresceram e para onde agora vão muitos carros, demasiados para o meu gosto. Aliás cada vez mais a cidade está sendo separada do rio, por causa do aumento do Porto de Setúbal, e cada vez mais nos arredores as casas substituem as árvores ou o arame farpado impede o acesso aos campos.
E nas minhas longas e solitárias noites leio, vejo filmes ou estou agarrado ao computador, quando não ao telefone. Deito-me sempre muito tarde, entre as 2 e as 5, e depois o tempo para dormir é pouco, pois levanto-me entre as 8 e as 9. Vantagens de morar a escassos metros do local de trabalho e de ter horário flexível. Há dias em que ando bêbedo de sono, mas á noite é que faço algumas das coisas que me dão prazer (ler, escrever, conversar, ver cinema, aprender coisas novas), que normalmente não faço durante o dia, dividido que estou, muitas vezes sem prazer, entre a actividade sindical e otrabalho na Câmara.
Aliás cada vez mais me custa ir para a Câmara, onde me dou bem com toda a gente. Mas de qualquer modo já nos conhecemos a todos uns aos outros: as conversas, as reacções e os tiques de cada um. Depois, no meio disto tudo, há os filho(a)s da mãe, que sorriem mas pela calada espetam o dente e o punhal afiados.
Antigamente havia mais convivência, porque os gabinetes eram salas enormes; agora e desde há uns anos as salas foram sendo divididas e subdivididas em gabinetes cada vez mais minúsculos. As pessoas estão mais isoladas e formam-se grupos e subgrupos, que se encontram em cafés diferentes: os fiscais no café lá em cima, no largo, os desenhadores neste ou no café das escadinhas, os técnicos no café das escadinhas, abandonado que foi o café das manas, onde continuo a ir com a arqª. Arminda ou com a arqª. Nina e onde vai o pessoal da secretaria. E isto para não falar das chefias, que já deixaram de se misturar com o maralhal.
Nunca gostei de ser professor, mas era uma profissão com algumas vantagens: havia sempre caras novas (alunos e professores) e havia tempos livres para andar na rua, nas horas em que o resto da malta estava atrás dum balcão, sentado a uma secretária ou preso na oficina.
Desde há pouco que comecei a sentir o frio a entrar-me nos ossos; olho pela janela e reparo que é já noite; defronte a mim o relógio diz-me que são quase 20 horas.
Bem, vou fazer para ali uma mistela para comer. Depois acabarei de ver um filme policial que gravei esta madrugada. (Um outro, do Jerry Lewis, que não aprecio muito e me causa um certo constrangimento, ficou sem o final, devido ao incumprimento de horários pela televisão).
Nas minhas idas a Lisboa, acabadas as reuniões, vou até ao cinema. Gosto de ir às sessões do fim de tarde. Duma das últimas vezes gostei muito da Idade da Inocência: um filme muito bonitinho, de Martin Scorcese, mas duma extrema violência, passado na alta sociedade nova-iorquina da passagem do século. Sob o manto diáfano das boas maneiras e dos sorrisos, a extrema violência da hipocrisia e das convenções sociais, da escolha dasegurança e do bem-estar em detrimento da loucura do amor e da paixão.
Outro filme que vi foi M.Butterfly. A Madame Butterfly é uma ópera que canta os amores dum ocidental por uma japonesa, que se suicida quando aquele a abandona, comoventemente para o público ocidental. Com base nisso, o filme narra a paixão (verídica) dum diplomata francês pela intérprete de M.Butterfly no Teatro de Pequim. E o que parecia uma grande paixão, iniciada na China e prosseguida em Paris, anos mais tarde, não passaria duma sórdida história da paixão e degradação dum homem apaixonado por outro homem, ambos presos e condenados por espionagem.
Claro que uma leitura linear pode levar-nos a perguntar como pode um diplomata desconhecer que na China os papéis femininos eram interpretados por homens (como aliás na Europa, nos tempos de Shakespeare ou de Gil Vicente) ou como pode um homem manter uma relação amorosa com uma mulher (afinal homem) que simula uma gravidez (que implica a existência de relações sexuais) sem que alguma vez durante anos o suspeite? (Aliás caso semelhante teria acontecido em Portugal com a história dagenerala). Mas é o próprio francês que nos dá a resposta, quando afirma que se apaixonou não por um homem, mas sim por uma mulher criada por um homem (e quem melhor que um homem pode saber o que um homem pretende duma mulher, perguntar-se-á? Ou, na mesma ordem de ideias quem melhor que uma mulher para saber o que uma mulher espera de um homem?). E no fim é o francês que se suicida, num acto teatral, travestido de Madame Buterfly, enquanto o espião chinês é deportado para a China).
Afinal todo o amor (ou a paixão?) não será senão uma encenação, uma ilusão dos sentidos, uma elaboração mental, uma construção (social? ) que em certa medida a sabedoria popular expressa em ditos do género O amor é cego ou Quem o feio ama, bonito lhe parece ?! O que me levaria ao programa do Júlio Machado Vaz, Sexualidades,que já não via há muito tempo, ontem dedicado ao namoro e ao casamento ouajuntamento, ao (des)conhecimento das pessoas, aos papeis masculinos e femininos, com filhos, filhas e algumas mães e nenhum pai. Por sinal todas as mães presentes (nenhuma divorciada ou solteira) com ausentes mas compreensivos maridos. É impressionante como a maioria dos homens e das mulheres (esposas e mães incluídas) se educammutuamente, não para a liberdade e o respeito mútuo, não para a entre-ajuda e a solidariedade, mas para a negação disto tudo. Aqueles seriam pais e filhos diferentes da maioria, apesar de tudo. É difícil ser diferente, querer construir uma relação à margem das convenções sociais, que não libertam mas aprisionam.
Setúbal e Paço de Arcos - 1994 Setembro/Outubro
Foto Victor Nogueira - setúbal e estuário do rio sado vistos da serra da arrábida
Foto Victor Nogueira - Setúbal - estuário do rio sado
Foto Victor Nogueira - pôr do sol no estuário do rio sado
Foto Victor Nogueira - pôr do sol em Paço de Arcos
Foto Victor Nogueira - setúbal - vista nocturna do alto da torre
Foto Victor Nogueira - Setúbal - lua cheia vista do alto da torre no cimo duma encosta
setúbal - por do sol em 2013.11.08 - estuário do rio sado e serra da arrábida (com a fraca luminosidade e sem apoio de estabilizaçao para a máquina, a foto ficou "empastelada" e assim fica
Foto Victor Nogueira - setúbal - estuário do rio sdo e península de tróia vistos do castelo de s. filipe
Foto Victor Nogueira - Setúbal, o estuário do sado e a serra da arrábida vestidos não de azul e verde mas de cinza outonal
Foto Victor Nogueira - setúbal e o estuário do rio sado vistos da serra da arrábida
Foto Victor Nogueira - estuário do rio sado vistos ddo forte do outão