* Victor Nogueira
Ser amigo é colorido presente
Ao darmos nossa mão, sem maldade,
Mantendo a vera luminosidade
Do silêncio ou do verbo assente.
Na tarde calma, serena, luzente,
Ou de noite, dia sem claridade,
É uma dádiva, felicidade,
Esta da vigília ser não dormente.
Amigos têm vária feição:
Dão-nos sua tristeza ou alegria,
Compartilhando bons e maus momentos.
Velho, novo, mulher, homem, bem são;
Na estrada e no dia-a-dia
Nem sempre atentos, prontos, nos tormentos.
.
.
1989.09.03 (3)
[1989.12.22]
Setúbal
Ser
amigo ou amante
Terra
construída
feita
de
portas que se não
fecham
janelas que se
abrem
rasgadas ao sol
á
chuva
ou nas noites do
lobisomem
plenilúnio da sereia
a sombra refrescante
brisa no
campo sem fronteiras
Presente
a presença
atenta
necessária
livre
resguardada
sem muros nem barreiras
Abril de 1995
Rien que la verité
Eu sou eu
tu és tu
ele é ele
ela é ela
tudo o resto é ilusão e/ou
ingénua boa vontade
Victor Manuel
Que é a verdade?
1971.JAN.26
Évora
Neste jogo de palavras
e de gestos comedidos
Aqui
neste canto da cidade
preso à roda do leme
em sonhos
que sonho em ti
busco o passado que não fui
no futuro que não serei
suspenso do teu andar
Arde-me o sangue nas veias
neste fogo vento suão
murmúrio do teu sorriso
verde brisa na planura
fresca do teu olhar
Setúbal 1985.07.23
No beiral da minha porta
Veloz mal vieste a poisar
E debicando na horta
Tu partiste sem cuidar.
1992.03
SETUBAL
CANÇAO DE RODA
Uma semente
Dentro da semente
Uma seara
Para lá da seara
Uma barca
Uma rapariga
Para lá da rapariga
Uma floresta
Em torno da floresta
O sol e o mar
Um homem
Dentro do homem
Uma criança
Para lá da criança
uma aguia
Uma leoa
Dentro da leoa
Uma águia
Para lá da águia
Uma sereia ao luar de Agosto
Uma semente
Para lá da semente
Uma rapariga
Em torno da rapariga
O sol e o mar
Um homem
Dentro do homem
Uma leoa
Para lá da leoa
Uma barca aparelhada
19.11·94
SETUBAL
CALENDÁRIO
Uma cidade
No meio da cidade
Uma rua
No cimo da rua
Uma casa
Dentro da casa
Uma flor
Em torno da flor
Um jardim
Perfeito um amor
girassol
malmequer
muito
pouco
nada
Uma pétala
No meio da pétala
Um sorriso
Em torno do sorriso
Uma lágrima
Dentro da lágrima
Uma saudade
água e
cloreto de sódio
Uma palavra
No meio da palavra
Uma luz
Para lá da luz
Uma sombra
No meio da sombra
Um deserto
Uma cisterna de pedra e
areia
Muitas palavras
No meio das palavras
Uma alvorada alvoreada na planície
Para lá da planície uma árvore
Em torno da árvore
Uma rosa verde papoila.
1989.Novembro.03 - Setúbal
Dizem que os livros são os nossos melhores e maiores amigos.
Mas os livros não se sentam á nossa beira,
nem tem olhos, nem sorriem
nem nos abraçam,
nem connosco passeiam pela rua, pelo campo.
Nada podemos dar aos livros
senão as letras dos nossos pensamento ou
um pouco de nós
para que chegue aos outros.
Os livros têm os olhos que nós temos.
E os seus lábios são os nossos lábios.
Porque se os livros tivessem olhos
e lábios e mãos e dedos
seriam talvez pessoas
mas nunca livros.
Évora
1969.Março.19
SEM A VENTURA
Tu foste a esperança
em que mergulharam meus dias sequiosos
Esperança feita de pequenos nadas
Um sorriso
Uma palavra amiga
Um gesto de alegria!
Mil pássaros nasceram nos teus lábios!
Mas hoje
hoje
escuto nas tuas mãos
o silêncio dos campos destruídos
enquanto um navio sulca
lento
um deserto de flores esmaecidas!
1988.01.04
Setúbal
Sorriste e
na tua voz
os pássaros vieram de longe
pensando que era madrugada!
1992.03.10
Setúbal
Rio canto e choro
e todos os dias respiro o ar que me rodeia
com a limitação dos grandes sonhos
imaginações feitas de nada
Sustenho os gestos e as palavras
ou deixo que elas nasçam
rodeados de mil cautelas
sem o desassombro da aventura e do risco plenos
Resguardo os gestos e
lanço as palavras ao vento
para que um novo dia surja
no horizonte
mas na orla das ondas vem a ressaca
de estar aqui
de olhos secos
silencioso
como a esfinge no deserto
Rasgo o peito e as palavras
e nem uma gota de sangue cai
dentro de mim
Abro o riso e as mãos
as aves passam de longe e
os rios correm
silenciosamente para o mar
As vozes dos marinheiros passam no horizonte
enquanto sonho e luto e te procuro
mergulhado na multidão que está e permanece
para além de mim
.
.
FIM 1989
7. E João Bimbelo caminhava pelos caminhos da vida em
busca de coisa nenhuma. Pensava nela por vezes com uma grande ternura e
acordava no silêncio da madrugada com um desejo sufocante do ouvir o seu
sorriso, ver a sua voz, sentir a carícia do seu corpo de mulher apetecida. Mas
os seus dedos e os seus lábios não a encontravam e a madrugada era um poço sem
fundo e o tempo cada vez mais curto. .
.
Nas suas longas caminhadas João por vezes entrevia uma
janela aberta, uma porta mal fechada, uma luz para além da curva da estrada. E
o coração de João vestia-se com os melhores fatos e o seu andar tornava-se leve
e fresco e as palavras eram um rio a cantar. Mas era tudo uma ilusão, porque a
imaginação dos homens não tem limites e os gestos e as palavras ora são
límpidos como cristal translúcido, ora um cristal multifacetado, ora um espelho
baço de mil imagens e sons, mesmo se adornado com as cores do arco íris.
.
E João procurava Aquela Cujo Nome Se Não Desvenda,
volúvel como o vento, contrastante como o dia é da noite sem luar, e perante o
seu silêncio e as suas fugas em redondel, ficava João sem norte como navio no
mar alto em dia de tempestade, como frágil pardal de asas cortadas sem nada de
águia altaneira, como cana agitada pela mais leve brisa sem a solidez do roble
centenário. Estados de alma que se não perdoam a guerreiros vestidos com suas
armaduras que nunca devem despir, mesmo se cansados da guerra, mesmo quando
perdidos ou cavalgando no meio das quentes areias do deserto (porque os
cavaleiros não andam pelos gelados desertos polares).
.
E João procurava de novo pôr a máscara, erguer as
muralhas, tapar as fendas e os interstícios nela abertos por onde entravam em
golfadas crescentes a fragilidade, o desamparo e a tristeza que afogam o
coração mesmo dos mais fortes se não mudarem de rumo em busca de portos e marés
onde os dias sejam tudo menos uma noite cinzenta, fria, triste e sem esperança.
E DE REPENTE É COMO SE TODAS AS ESTRELAS SE APAGASSEM
De repente é como se todas as estrelas se apagassem
ficando o cansaço e a velha vontade, por vezes renascida, de partir para longe,
de apagar tudo, como se fosse possível recomeçar tudo de novo, rasgando o que
escrevera, lixo para lançar aos quatro ventos, porque não ria, nem chorava, nem
tinha uma pedra no lugar do sentir pelo qual se deixara envolver.
.
Estava assim porque o tinha
considerado seu igual e confiara nele e com ele procurara falar sem reservas.
Parecia contudo evidente que ele jogava à defesa e que as palavras seriam
para ele fogo de artificio e manobra de diversão por detrás das quais se
escondia e protegia. Assim o julgava, apesar de poder considerar-se má leitora
dos factos e dos gestos, como outrora o fora de outras pessoas, nuns casos
porque se ficara pelas palavras, noutros, como no presente, por ter procurado
"ler” para além delas.
.
Talvez a considerassem presumida porque em determinada
altura do seu relacionamento não acreditara em tudo o que ele lhe dizia,
relativamente a ela própria e aos sentimentos que afirmava nutrir por
ela: seria uma presunção diferente da que ele tinha, porque ela perante ele se
descobrira, talvez cedo e desajeitadamente demais, talvez porque tivesse lido
nele aquilo que desejara ler. E assim, conhecendo-lhe os sentimentos dela,
seria levado a pensar que lhe bastaria dizer quem era para que ela largasse o
trabalho ou interrompesse a reunião para atendê-lo ao telefone, fosse do
emprego, fosse da casa onde morava. Era simultaneamente verdade e
mentira afirmar que pouco ou nada lhe interessava saber se ele estivera,
estava ou algum dia poderia vir a estar "enamorado” por ela. Era de
presumir que fosse adulto, crescido, responsável; então porque não haveria de
acreditar no que ele lhe dizia e deixar-se de "poesias" e de
imaginações!?
.
Recordava-o por vezes com uma grande ternura mesclada
de inquietação e desassossego. Lembrava-se das primeiras vezes em que o
vira, quando procurava conhecê-lo, e de como se encantara por ele.
Recordava-se das vezes em que pretendera envolvê-lo numa longa e doce caricia
ou o desejara como um homem pode ser desejado por uma mulher. Como esquecer a
rede em que se deixara enlear, que ele muitas vezes parecera também tecer e
outras rompera? Recordava o seu jeito gaiato, sorridente e brincalhão, sem
esquecer os desencontros e as vezes em que ele disparatara ou faltara sem dizer
água vai, apesar da importância que ela, parvamente, dera à sua presença e
companhia.
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Ele dizia-se amante da liberdade e no entanto não
poucas vezes desrespeitara a dela, deixando-a a falar sozinha, com a refeição
fria ou o fim de semana “estragado". Ele dissera preocupar-se com o efeito
que os seus actos e as suas palavras poderiam provocar nos outros, por recear e
não querer magoá‑los, mas não poucas vezes a magoara, sem que ela soubesse
verdadeiramente distinguir quando falava a sério ou na brincadeira ou se estava
apenas desatento por feitio ou preocupação. Não podia esquecer-se das vezes em
que ele lhe entrara pela casa dentro, enchendo o ar de poalha dourada e
refrescante, libertando a sua fragilidade, como ave inquieta na brisa que ela
era.
.
Recordava-se disso e de muitas coisas e palavras, que
gostaria tivessem (o)corrido ou acontecido de outro modo. E lembrava-se de
algumas cartas, poucas, duas ou três, que lhe escrevera, arrumadas no fundo
duma qualquer gaveta, porque resolvera deixar sedimentar as palavras, que deste
modo, com o decorrer do tempo, haviam perdido o sentido e a oportunidade.
Pensava ser natural que os homens e as mulheres procurassem uns nos outros
amizade, ternura e carinho, considerava natural que os homens e as mulheres se
sentissem mutuamente atraídos por serem de sexos diferentes ou que, se fosse
caso disso, pudessem ir para a cama um com o outro, dum modo saudável, sem
táximetro e tabela de preços consoante o serviço.
.
Mas nem sempre acontecia o que deveria ser natural, não
poucas vezes porque muitas e variadas razões levam a renegar, condicionar,
proibir e "regulamentar" a sexualidade e as suas manifestações duma
forma que nada tinha a ver com a expressão saudável da vida.
.
E fora como uma expressão de vida e um
cântico de alegria que ela o considerara, de forma aberta. No entanto e talvez
demasiado cedo partira, quando em vão por ele esperara, para logo de seguida
considerar o amor um bem que suaviza, quando alguém afaga a nossa vida, o que
lhe dissera inopinadamente.
.
Há na vida um tempo e uma ocasião para tudo
e para cada coisa, segundo expressava um belo poema judaico, e por isso talvez
as palavras e os sentimentos dela tivessem sido expressos demasiado cedo.
.
Entendia ser natural que o desejasse como
natural seria que outros homens a desejassem, mas não ele, que até era um homem
que sabia "provocar" as mulheres, que a "provocara" não
poucas vezes, embora dum modo que na altura lhe parecera "natural",
sem maldade.
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Contudo, o passar dos dias e os
"desentendimentos” pelo que talvez fosse ou tivesse sido por ambos
desejado fazia com que ela pensasse já não ser natural que ele
"provocasse" e amesquinhasse (consciente e deliberadamente ou não)
quem "provocara" (por ela não o entender), apenas porque teria tido
com a mulher com quem vivera experiências, isto é, vivências, humilhantes ou
perversas, gerando situações que ambos não haviam conseguido ultrapassar
(supondo que ele desejaria ultrapassá-las), por preconceito ou falta de
simplicidade ou por utilizarem gestos e códigos diferentes. Situações que não
haviam logrado superar em busca da amizade, do amor, da ternura, do prazer, da
paz ...
.
É um facto que fora por ele
seduzida e que, ao considerá-lo seu igual, procurara sobretudo a sua amizade.
Mas tendo ambos códigos e chaves de leitura diferentes, só veramente poderiam
saber quem eram através da convivência, para descobrir o que estava para lá das
categorias redutoras que (des)ajudavam ao entendimento das pessoas. Porque ele
falava nas mulheres dum modo simplista, cómodo, mas irreal (são todas iguais,
logo são todas tratadas da mesma maneira); outros falariam nos homens (são
todos iguais, andam todos ao mesmo, logo devem ser todos tratados da mesma
maneira).
.
E no entanto, por temperamento, vivência e
"leitura", ela sabia que há homens e mulheres, com
características comuns, é certo, mas que para além disso cada pessoa tem as
suas características próprias, especificas, da sua cultura e classe
social; para lá das "cómodas” categorias e definições redutoras ela
procurava o que existe de próprio, de pessoal, fosse no Zacarias ou na Carlota,
fosse na Maria ou no Manel, independentemente de se não empenhar em "convencer”
as pessoas, o que por vezes em nada facilitava a sua relação com outrem.
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Falava com as gentes, é certo, mas não como apóstolo;
buscava aquelas com as quais se identificava, afastava-se das que nada tinham
em comum com ela naquilo que reputava essencial, aceitava e tolerava as outras.
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Sendo assim, é natural que tenha pensado e
lhe tenha dito "gosto deste homem, gosto dos filhos dele, postaria
de com ele viver e compartilhar o dia-a-dia". É natural que ele lhe
respondesse ter outros objectivos prioritários na vida e que ela estava à
margem deles, apesar dela o considerar seu igual e procurar respeitar a sua
liberdade. Admitia contudo que algumas vezes os seus gestos e atitudes para com
ele pudessem parecer desmenti-la, apesar de serem também condicionados pelos
gestos e atitudes dele. Admitia pois que ele quisesse provar que sozinho
poderia triunfar, sem a solidariedade dos outros, e que ela o desejava
"controlar", a ele que estava farto de prisões, pressões e bofetões;
por isso talvez tivesse sido erradamente levado a pensar para consigo mesmo que
o paleio é sempre igual e que no princípio são tudo rosas e arco-íris, para lá
dos quais surgem os espinhos e as tempestades e os ventos ciclónicos.
.
Tudo bem, continuaria ela a pensar, ninguém a mandara
ser apressada, sem dar tempo ao tempo, embora depois os erros se possam a
vir a pagar raro, face à brevidade da vida e à impaciência dos mortais. É
natural que os sonhos" não sejam os mesmos para todos, é
"natural" que para algumas pessoas fique a nostalgia dos sonhos que
se sonharam mas não viveram ou falharam. Afinal os sonhos nem sempre são
pesadelos e por isso podem também ser a expressão dos anseios com vista à
concretização, talvez por vezes dum modo errado e desajustado, dos desejos de
uma vida diferente, melhor, mais cheia e saborosa.
.
Como a que ela pensara encontrar nele e retribuir-lhe!
Setúbal
1990.03.19/20
(Victor Nogueira, sobre uma epístola de S. Sebastião aos gentios, em 4
de Outubro de 1989, a D.)