A história da reconstrução de Lisboa é uma história da pragmatismo e de inteligência começando logo pelas estratégias. Em cima da mesa havia três hipóteses básicas: reconstruir com algumas melhorias; arrasar e fazer tudo de novo sem limitações; fazer uma nova capital junto a Belém. D. Sebastião José escolheu a segunda hipótese e nomeou o engenheiro-mor do reino, Manuel da Maia, para a pôr em prática. Este escolheu para seus colaboradores o capitão Eugénio dos Santos e o tenente-coronel Carlos Mardel, ambos engenheiros militares.
Mouraria
Foto de Eduardo Portugal, 1932, AFML - B094412
Igreja da Conceição Velha
Foto Joshua Benoliel, início do século XX, Arquivo Municipal de Lisboa - AFML, A26004
A Igreja de uma só nave possui um portal manuelino, raro exemplar da representação de Nossa Senhora da Misericórdia, cujo manto aberto e seguro por dois anjos, protege o rei D. Manuel I e a sua irmã a Rainha D. Leonor, fundadora das Misericórdias em Portugal. O altar-mor corresponde à capela do Santíssimo Sacramento da antiga Igreja da Misericórdia. Junto da capela-mor pode-se encontrar o quadro dedicado à Nossa Senhora do Restelo, oferecido pelo Infante D. Henrique aos freires.
Vista aérea do Rossio na actualidade
Após o terramoto de 1755 a Igreja de S. Domingos foi reconstruída, mas não o Hospital de Todos os Santos. No local do Teatro Nacional, ao fundo, situava-se o Palácio dos Estaus, sede da Inquisição
Da venda de fruta e legumes, passou-se à transacção de outros produtos alimentícios necessários à população, fazendo da baixa lisboeta um local com um constante fervilhar de vida.
Desde logo, a praça tornou-se um dos emblemas de Lisboa, quer pela sua construção, quer pela sua localização no centro da cidade, quer ainda pela realização de verdadeiros arraiais por altura dos santos populares, transformando-a num verdadeiro teatro.
Em 1947, a vereação da altura decidiu o fim da praça, prevendo o alargamento da rede viária de Lisboa, que incluía a demolição do Socorro e zona baixa da Mouraria como forma de escoamento de trânsito, aproximando a cidade de Lisboa aos padrões europeus. Em 1949 festeja-se o último Sto António, procedendo-se de seguida - a 30 de Junho - à demolição do edifício.
Mandado edificar por D. Nuno Álvares Pereira no século XIV, começou por ser um convento carmelita. Na cerca, foram construidas celas minúsculas, destinadas a acolher os frades que vinham de Moura.A cela do Santo Condestável ficou conhecida como "Casa do Século". Por consequência do Terramoto, vários conventos foram destruídos; O fervor religioso regista também um forte abalo, culminando na expulsão e extinção das Ordens Religiosas, ordenada por Joaquim António de Aguiar, em 1834. De traço gótico, foi parcialmente destruído pelo Terramoto de 1755; Nunca tendo sido totalmente reconstruído, resta hoje o Claustro - de planta rectangular - e parte das ogivas da coberta.
A Baixa pombalina, o Passeio Público e as Avenidas Novas
* Victor Nogueira
Ficámos no Hotel Americano, na Rua 1º de Dezembro. Ao entardecer vim dar uma volta, para ver as montras nos Restauradores e Avenida da Liberdade. Vi os cinemas Éden, que parece luxuoso, e Restauradores (que dá sessões contínuas). Subi a avenida e cheguei ao Parque Mayer. Dei por lá uma volta, tendo feito o gosto ao dedo na barraca de tiro ao alvo. Parte do [filme] "O Parque das Ilusões" passa se aqui. Quando cheguei ao S. Jorge [um pouco mais acima] voltei para o hotel. Passei pelo Tivoli e pelo Condes. As montras das lojas são variadas. Utilizei a passagem subterrânea. Depois do jantar fomos comer uns camarões e beber umas cervejas. A casa onde comemos tem as paredes forradas de conchas. (1963.09.09 - Diário III)
São 12 h 00.m. Estou a escrever sentado numa das mesas dum dos cafés do Rossio, que tem resistido às investidas dos bancos (por quanto tempo, ainda?) mais precisamente o "Nicola", que foi o poiso dum dos nossos maiores colegas: Bocage. Escrevo e simultaneamente vou comendo um "croissant", sorvendo aos poucos um escaldante "garoto" claro (ou "pingo", como se diz lá para o Norte). Nas mesas homens que já não são jovens - pelo menos cronologicamente como eu - encafuados em pesados sobretudos, alguns de chapéu a cabeça, cavaqueiam (sobre quê?), lêem o jornal ou limitam se a seguir com os olhos, absortos em pensamentos, o fumo dos cigarros.
Da Alfama medieval para a Baixa pombalina, eis a rota do nosso passeio. Também gosto desta "vista". Repara que enquanto Alfama é residencial, a Baixa é essencialmente comercial. Uma única semelhança: os candeeiros das iluminação pública [1972]. Anúncios luminosos, automóveis, e ruas mais largas são o contraste (Quando andava na 4ª classe [em Luanda] e ouvia falar nas ruas do Marquês, imaginava-as em largura à medida das de Luanda... que têm o dobro ou o triplo destas!). Ao fundo fica o elevador de Sta. Justa, que separa o Largo do Carmo da Igreja do mesmo nome, cujas ruínas se avistam do lado direito - os dois arcos em ogiva. Esta é uma das igrejas da expressão "Cair o Carmo e a Trindade" (após o terramoto de 1755). (MCG - 1972.09.15)
Estou agora a lanchar numa pastelaria aqui no Chiado, que tem penduradas na parede - um armorial, uma couraça, um capacete e duas espadas do século XVI. Desgraçados dos soldados que usavam tal ferraria em climas tórridas. (1973.01.04)
Ao entardecer de ontem as ruas da Baixa tinham um cheiro a chuva - um cheiro bom - enquanto as montras ao longo das ruas eram um apelo pelos saldos, principalmente vestuário. (...) Está hoje um calor abafado, sem nada da leveza das semanas anteriores. Prevê se, segundo os jornais, o racionamento de água em Lisboa. Água que já falta há muito nos concelhos limítrofes de Oeiras, Sintra e Cascais, onde pessoas há que não se podem lavar senão com águas de garrafão, tipo Luso e similares. Isto se não quiserem cheirar a sovaquinho e plantarem uma hortazita na sujidade do corpo. Entretanto a cólera alastra pela Itália e a Companhia das Águas de Lisboa vai informando que lançará mais desinfectante nas águas e, à cautela, a Direcção Geral de Saúde faz as recomendaçõezinhas da praxe, sem qualquer interesse dada... a falta de água. (MCG - 1973.09.05)
Desta vez escrevo do café Gelo, aqui no Rossio, avistando ali uma nesga da Rua 1º de Dezembro e da Estação [do Rossio]. Defronte a mim o [Emídio] Guerreiro acabou de lanchar e lê agora o jornal. Mais adiante, o empregado da tabacaria, calças aos quadrados., camisola preta e longos cabelos louros, vai lanchando e arrumando a loja. Esperamos que o Carlos [Nunes da Ponte] saia do emprego. O Guerreiro chegou ontem e temos percorrido Lisboa em busca dum emprego que não aparece, apesar do coração de Portugal estar doente e ser uma chatice se deixar de trabalhar (Pelo menos é o que diz o anúncio da RTP). Assim, temos deixado impressos devidamente preenchidos... aguardando. As minhas tias, especialmente Esperança, andam inquietas, pois dizem que eu sou bolchevista (ai, credo!) e assustam se quando digo que vou começar a assaltar bancos. (...) (MCG - 1974.10.22)
Antes deambulara pela Feira do Livro, ao longo da Avenida da Liberdade, onde comprei uns livritos, muito poucos. (...) Havia muitas barracas de livros mas poucas novidades ou livros de interesse para mim. Os partidos também tinham os seus pavilhões, ao longo do relvado: o maior pertencia ao MRPP. Uma rapariga e alguns rapazes falavam de Angola, do MPLA e dos maoístas e fiquei emocionado por encontrar gente da minha terra a falar de assuntos que me respeitam. (...) (1975.06.29)
(...) À tarde o Rui queria ir ao cinema ver o Pimentinha, baseado num miúdo endiabrado personagem da banda desenhada; mas a Susana preferia ver as lojas da Baixa pombalina, para arejar o dinheiro. Prevaleceu a proposta da Susana, que comprou adereços de artesanato em pele e missangas, tendo oferecido ao maninho uma fina pulseira em cabedal.
Com a Rua Augusta fechada ao trânsito automóvel, os passeantes passeiam-se à vontade no longo passeio público, onde personagens variados expõem as suas habilidades. Aqui um presumível grupo de índios da América Latina, todos de igual vestidos, interpretam canções do seu folclore, perante uma pequena multidão à sua volta, fotografando ou embasbacando-se. Menos assistência tinha um deficiente físico pintando um quadro com a boca. Mais além outra pequena multidão rodeava um velhote com periquitos numa caixa e um plano inclinado, sem que se percebesse que habilidades saíriam dali (talvez estivessem intimidados com a assistência ou ainda em fase de aprendizagem). E como não podia deixar de ser, um homem estátua, de palhaço vestido, embora de vez em quando fizesse momices com os olhos para divertir a numerosa assistência. Não deixo de admirar a capacidade destes indivíduos para estarem completamente imóveis, tanto mais quanto eu sou um mosquito eléctrico! Ao fundo, junto ao Arco da Rua Augusta, vendia-se artesanato, por pessoal mais limpo e aspecto mais comum do que aquele de ar sujo e maltrapilho que outrora abancava naquele sítio, ao jeito pretensamente hippie.
Hoje não choveu, apesar do tempo trovoadoresco, pelo que acabámos na Praça da Figueira (1) cheia de gente, na Esplanada dos Irmãos Unidos vizinha da Suiça, mas com pouca variedade de comes e bebes. Por lá apareceu um indivíduo, poeta popular, vendendo meia dúzia de poemas em livro de sua autoria, a quem comprámos um exemplar que dedicou à Susana, depois dele e a minha mãe se terem recitado mutuamente poemas das respectivas autorias. De qualquer modo os dele, em conteúdo, não chegam nem de perto nem de longe aos calcanhares do António Aleixo, algarvio, ou do Calafate, setubalense, pois quanto ao estilo são diferentes. (MMA - 1993.08.19)
Do Coliseu, ali à rua das Portas de Santo Antão, nada me recordava. Pensava no entanto que teria um aspecto grandioso ou ao menos imponente, pelo que há uns anos fiquei desiludido quando lá voltei, para assistir a um plenário sindical. Nesta zona situavam-se muitas casas de espectáculos, como os cinemas Politeama, Arco-Íris, Odeon, Condes e, no outro lado da Avenida ou nas cercanias, o Éden, S. Jorge, Tivoli, para além doutros mais modestos, como o Olímpia, o Restauradores e o Arco do Bandeira, este com uma inconfundível fachada arte nova, mandado construir por um capitalista que lhe deu o nome. A maioria deles já encerrou, após agonia de alguns como salas de filmes pornográficos, e outros foram reconvertidos, ou em salas mais pequenas, ou em hotéis para lá da fachada, como o Éden. Dos teatros de revista do Parque Mayer apenas persiste o ABC, estando os restantes encerrados, o espaço transformado em parque de estacionamento pago, subsistindo alguns restaurantes e dois modestos alfarrabistas.
Nada que se compare ao antigo terreiro onde o rei tinha o seu desgracioso palácio, com vista para o rio e para o barulho, bulício e azáfama dos estaleiros navais na Ribeira das Naus ou dos comerciantes do outro lado, nos baixos dos edifícios e no meio do lamaçal. Entretanto roubada aos transeuntes para se transformar em parque de estacionamento automóvel, atravessado por muitas e desvairadas gentes que vão para o emprego ou regressam a casa, para isso tendo de sulcar o rio, a Praça foi agora devolvida aos peões.
Perto, a caminho do Campo das Cebolas, pela rua da Alfândega, é notável o pórtico manuelino da Igreja de N. Sra. da Conceição Velha, (2) do qual mal nos apercebemos quando por ela passamos. Neste local existiu uma sinagoga judaica, mandada destruir por D. Manuel I, o Venturoso. Da sua ventura, contudo, não beneficiaram os judeus, convertidos à força para não serem expulsos de Portugal por exigência dos piedosos ... reis católicos de Castela.
Para norte dos Restauradores situa-se a Avenida da Liberdade, cuja abertura destruiu o Passeio Público, arborizada, mas onde os prédios do princípio do século vão sendo substituídos por outros, com diferente traça. Termina a avenida no Parque Eduardo VII, ladeado de arvoredo, destinado a substituir o referido Passeio Público, e onde se situam a Estufa Fria, um lago e o Pavilhão dos Desportos, onde por vezes ocorrem comícios. Na sua parte central passou a realizar-se a Feira do Livro, depois duma longa permanência na Avenida da Liberdade e uma breve passagem pelo Terreiro do Paço. (Notas de Viagem, 1998.Maio)
1 - A esta praça vinha dar um esteiro do rio Tejo, no tempo da ocupação romana. Vestígios de cetáreas encontram-se na Rua dos Correeiros e na Casa dos Bicos.
2 - Este portal é proveniente da Igreja da Misericórdia, destruída pelo terramoto de 1755.
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