* Victor Nogueira
Évora
75.01.08
Celeste (Querida)
Portugal, rebanho de ovelhas
Antão, como vai isso? Eu p'ráqui estou, aguardando o almoço. Preciso de levar uma vida mais disciplinada. 2ª feira à noite houve uma reunião de professores na EICE, muito confusa e improdutiva. A nova encarregada da Direcção não sabe coordenar reuniões. Enfim ... Resolvi faltar 3ª todo o dia, para preparar as lições. Perdi apenas tempo a cirandar , o que me chateia. Entretanto, logo a partir das 18 horas tenho uma reunião na cooperativa e à noite uma do corpo docente para debate do decreto sobre gestão "democrática" das Escolas. Para a tarde, 2 turmas "requisitaram-me" para coordenar reuniões para [elaborar] os estatutos da Associação dos Estudantes da EICE. No ESESE o 3º ano de Sociologia "requisitou-me" para orientador dos trabalhos de Teorias Políticas e Doutrinas Sociais. Amanhã há mais reuniões na EICE e 6ª uma no Sindicato dos Professores. Não estou entusiasmado e encolho os ombros! Recebi notícias de Luanda. Os meus pais enviam saudades. Ciao!
Um abraço amigo do VM
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Évora
75.02.03
(Celeste)
Douro, Vindimas
"Toda a nossa acção é um grito de guerra contra o imperialismo. e um apelo vibrante à unidade dos povos contra o inimigo do género humano: os Estados Unidos da América. Onde quer que a morte nos surpreenda, que ela seja bem vinda, desde que o o nosso grito de guerra seja ouvido, que outra mão se estenda para empunhar nossas armas, e outros homens se ergam para entoar cantos fúnebres nO crepitar das metralhadoras e novos brados de guerra e de vitória." (CHE GUEVARA)
São 10 horas de 2ªª feira. Ouço o noticiário da E.N., que nada de especial diz. Sábado fui ao teatro, ver uma peça - "O 28 de Setembro" - muito interessante. Penso que gostarias de ver. No cinema exibe-se durante 3 dias "O Último Tango em Paris". Na Praça de Touros o PS mai-lo o Mário Soares deram "show" que eu não fui ver.
Já não devo alugar com o João Luís a casa da Tapada, pois não arranjamos uma 3ª pessoa. Surgiu outra, um apartamento por 2 mil, no Bairro Frei Aleixo, mas fica longe da Escola (são 2 km) e desisti. Onde passas a semana ?
A Ana Maria Soares e família enviam-te saudações.
Um abraço do VM
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Évora
75.02.07
Recebo hoje o teu postal e não tenho surpresa ao lê-lo. Encolho os ombros, mas a ira cresce dentro de mim. Não vou à Arouca, não tenho interesse algum em ir ao monte. Parecia-me natural que a tua mãezinha fosse matar saudades da família e que tu - agora com 23 anos - tratasses da tua vida. Mas ... tens a cabeça cheia de ideias feitas e eu nada posso contra isso.
Não sei onde passarei as "férias" de Carnaval. Se calhar em Évora, preparando as lições e tratando da mudança, se calhar em Lisboa para ver a malta amiga ou conhecida, passando pelas livrarias ou indo ao cinema. Até que recomecem as aulas !
Chove a cântaros e tenho as calças encharcadas. E estou-me nas tintas para que a vida da Bia seja "uma beleza: escola, dormir e amor." É tudo !
PS - Começo a duvidar sériamente da tua capacidade de entendimento. Porque nunca disse que não casava contigo. Porque nunca disse que não faríamos o registo civil do nosso "casamento". Porque nunca pensei que andava a brincar contigo. O que sempre disse, isso sim, é que não aceito que só te encontres comigo, fora das vistas protectoras da tua mãezinha e do teu clã, ... depois do "casamento". Compreendo-te mas não aceito. E três anos é tempo demasiado para andar a repeti-lo, aos fins de semana e nas férias. Estou farto de em vão esperar por ti. O mesmo se passará contigo. É porque esperamos alguém, que não o outro de nós. E perante isto, ... favas. Não é metida na Arouca que solucionas o nosso problema e arranjas emprego ... fora do monte.
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Évora
75.02.08
Chove, nesta tarde de inverno. Rápido, o matraquear da máquina deixa atrás de si um rasto de letras. O céu está cinzento, a soleira da porta alagada. Ouvem-se as bátegas da chuva no lajedo da calçada, enquanto o Olímpio e outro camarada assobiam, por entre o tac-tac ensurdecedor que atroa a sala da Associação dos Estudantes. Espero, mas é em vão. Sei que na camioneta das 16 não virás tu, que o meu desejo e a minha precisão não são suficientemente capazes de consegui-lo. É dia de avaliação de conhecimentos; de manhã a Guida Prates e eu despachámos o nosso grupo do 1º ano de Sociologia. A tarde são cinco longos dias que se abrem perante mim. Convidaram-me a ir até á Amareleja mas não aceitei.
Tivemos ontem reunião sindical na Escola; a maioria dos professores são individualistas e há grandes cisões entre eles. Enfim ... estão contra o MEC, contra a Zona da Grande Lisboa do Sindicato dos Professores, contra os professores primários, contra "eles" (o Sindicato) ...
As exaustivas reuniões para notas - avaliações qualitativas - terminaram. Após a reunião sindical fomos para a comezaina em casa do Mota.
Eis que o maralhal irrompeu pela sala da AE, comemorando a passagem de ano.
Mas que ideia é a tua em passares o Carnaval aí desterrada no monte? Qual é o gozo de pensares em nos encontrarmos aí, atascados em lama e chuva e frio, encafuados em casa, cada um para seu lado, os gestos de ternura e de amor estúpidamente interditos ?! Nunca mais entendes, Celeste? O ano passado foi a mesma história. Para o ano o que será, por este andar da carruagem ? Há sempre um muro que se ergue no caminho e não sei bem quem o constrói impedindo o seu derrube. Encolho os ombros, apanho o meu cansaço do chão e sigo pela estrada com ele ás costas. E no entanto seria bom que estivéssemos ... ora, quero lá saber !!!
Sempre vamos alugar a casa da Tapada do Ramalho: o João Luís, a Filomena e cá o rapaz. A casa tem cinco assoalhadas (uma será sala comum), 2 casas de banho, cozinha e garagem. São 4 500$00 mensais. Tenho de arranjar uma cama e respectiva roupa, bem como uma camilha (Já tenho uma estante, gira-discos, rádio, gravador e aquecedor, para além de montes de livros !). Ah! e preciso também dum guarda-fatos de "campanha". Tenho de cravar os amigos, conhecidos e familiares.
Entretanto o ambiente aquece aqui na sala com o "revolucionarismo" do Carrageta, que quer destruir - verbalmente - o poder burguês ! Rajadas de palavras cruzam o ar, por causa do colectivismo e da anarquia !
Só tomaremos conta da casa em 25 de Fevereiro. Democráticamente - sem ser ouvido - fui designado tesoureiro. Temos de comprar um esquentador, porque o frio da água é de arrepiar !
Bem, vou tomar ar para outra freguesia: ler o jornal, lanchar e espairecer. O Carrageta continua ao ataque, contra a escola burguesa, contra os professores, pela escola anarquista, com intervenções verdadeiramente revolucionárias, que não devam nada á burguesia e á sociedade de consumo. "Destruamos a civilização, contra os autoritários que não querem destruir as instituições mas reformá-las. A prática quotidiana dirá o que surgirá dos escombros das instituições burguesas destruídas pelos anti-autoritários." Terminada a "Revolução Carragetiana", há um intervalo para um bagacinho. Mas o bar está fechado e o Carrageta sobe ao balcão e num brilhante improviso convoca os presentes para se juntarem á classe operária pela destruição do capitalismo com a Manuela a fornecer as balas para a G 3, porque "a Revolução não está no verbalismo pequeno-burguês mas na ponta duma espingarda". O ambiente aquece á medida que se aproxima a hora da revolução, perdão, ... da avaliação.
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Évora
75.02.11
Safa, que a barulheira aqui no café repentinamente tornou-se incomodativa, especialmente com a gritaria das crianças e o velho aqui atrás de mim tamborilando com a moeda no tempo da mesa.
Lá fora chove a cântaros e um cartaz anuncia "Pides na grelha", brevemente nesta terra. As pessoas passam enfiadas debaixo dos guarda-chuvas e de vez em quando uma lufada de ar frio invade o café, quando alguém empurra a porta. De hoje a dois meses, segundo o Costa Gomes, haverá eleições. "O voto é a arma do povo". Só que o povo deve andar muito ... desarmado.
Por Évora, penso que pelo MDP/CDE o Abílio Fernandes e o Miguel Bacelar devem estar entre os candidatos (Mas isto ainda é confidencial). Entretanto a UDP já entregou o seu processo de legalização como Partido; depois de andar muito atrapalhada para arranjar as 5 000 assinaturas. A UDP é constituída por dissidentes do PCP, que negam este partido como partido revolucionário da classe operária.
Anteontem fui com o João Luís, o Brito e outros até Estremoz, onde na "Flor do Alentejo" um grupo de marialvas, bêbedos e disfarçados de mulheres, atroavam os ares com "vernaculidades" e vivas ao CDS e ao PS (Partido Socialista), gritando que "mais vale ser fascista uma hora que democrata toda a vida" (onde é que eu já ouvi isto?) Enfim, a reacção ainda (ou já?) vai falando !
É Carnaval, mas não parece, salvo um ou outro mascarado pelas ruas e uma ou outra criancinha. O tempo não está para folguedos, ... salvo em Lisboa, onde cerca de 20.000 a 40.000 trabalhadores organizaram mesmo uma manifestação contra o desemprego e contra o imperialismo e a NATO, criada depois da 2ª Guerra Mundial para defender o mundo "livre" da ameaça comunista! Apesar da proibição.
O tempo vai correndo. Enquanto estudo alheio-me do que me rodeia, mas quando pouso os livros não tenho para onde ir, onde me sinta bem.
Domingo houve uma Conferência dos Trabalhadores Rurais do Sul, organizado pelo PCP. Encontrei por cá alguns dos meus "camaradas" de Lisboa, nomeadamente de Agronomia. Aéreo como tenho andado, nem sequer dei pelo anúncio de tal Conferência; teria sido interessante ter ido até lá. Assim ...
Évora agora "civiliza-se". Teatro, cinema, concertos ... Bem, cinemas é como quem diz. A maior parte dos filmes nada vale, segundo o meu critério. 5ª feira vai um filme que gostaria de ver: "Ferido na Honra", mas ... ainda tenho aulas. Mas 6ª devo ir ver um de Jerry Lewis - "Uma Poltrona para Três", salvo se ainda houver ballet russo a preços (pouco) populares - 60 palhaços.
É já noite, durante o jantar, aqui no poiso habitual que é o (restaurante) "Manuel Iglésias". Choveu todo o dia, por vezes a cântaros, e esteve um frio agradável. Tenho a cabeça numa grande confusão e não consegui ainda fazer nenhum esquema ordenando os meus "profundos" conhecimentos. Évora é uma cidade estúpida, onde não sinto calor humano ao contrário do que sucede com as gentes do Porto. (...)
Não sei onde passaste estes dias. Espero que ao menos tenhas aceite o convite da Bia. Esperei - em vão - por ti todos os dias. Encolho os ombros e sigo em frente. "As palavras estão gastas, meu amor", como dizia o poeta, já não sei bem qual poeta, pois os livros estão encaixotados e não são já meus companheiros como outrora.
Continuo a ler "O Socialismo depois de Marx". Mas repito, preciso de consolidar os conhecimentos já alcançados (onde é que eu já ouvi isto ?)
Mas ... diz-me lá o que vou eu fazer ? O quarto é pequeno e estou farto de ler. Preciso de conviver. Mas com quem ? O café é barulhento e cada vez estou mais incapaz de fazer vida de salão. Não imaginas como preciso de calor humano e camaradagem. Apesar dos meus alunos me falarem como se eu fosse um deles. (...)
Passei hoje pelo correio mas de ti não havia notícias. Encolho os ombros e volto para o (Café) Arcada e continuo a ler na "História dos Factos Económicos e Sociais" os capítulos dedicados ao movimento operário. A miúda que me despertou a atenção desde ontem foi-se embora e entretanto outras vão entrando e saindo.
Preciso de editar textos de apoio para as aulas de "Política", mas ainda não o fiz. (...) Amanhã recomeçam as aulas. São mais 5 semanas ... até ás férias da Páscoa. Em 14 de Junho terminam as aulas. Não sei se terei de fazer exames ou não. É provável que sim.
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Évora
75.02.13
(...) Vou alugar a casa da Tapada com o João Luís e a Filomena, que se separaram. São 1 500$00 a cada um. (...)
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Évora
75.02.14
Cá recebi uma carta tua, para continuar este ora dizes tu, ora digo eu. Sabes muito bem que em Setembro foste para Beja, para tirar a carta de condução e preparares os exames do 7º ano, enquanto eu em Lisboa procurava arranjar emprego. Sabes bem que em Outubro e Novembro fui ao monte (da Arouca) sempre que possível. Sabes bem que no Natal foste para Beja, para fazer exame de condução. Certo ? E no Carnaval ... não vieste !
Agora, vamos á casa. Se conseguires arranjar uma casa em Évora dou-te um doce. Porque é coisa que eu, o João Luís, a Noémia e professores da Escola tentam ... em vão. Arranjava, sim, uma casa no Bairro Frei Aleixo, pela qual me "apaixonei" e pensava que tu gostarias, por 2 000$00. Simplesmente ... fica a 2 km da Escola, sem transportes públicos regulares. Ou fazia 8 a 12 kms por dia a pé ou passava o dia na cidade, indo a casa apenas para dormir. Por isso desisti da ideia, embora com pena. Entretanto soubemos da casa na Tapada do Ramalho. Talvez te tenha escrito falando nisso. Deixo de estar encafuado no quarto, quase como sardinha em lata; posso estender-me á vontade e (passo a) ter condições de trabalho. Para além disso tenho boleias para e da Escola - o que não sucede na Praça do Giraldo - pois muitos professores moram para aqueles lados. E tenho com quem conviver. Não te falei nisto ? Tu não vens cá ! Seria preferível uma casa só para nós ? De acordo. Mas ... alguma vez tenho de adaptar-me às circunstâncias.
Também não entendo o teu "mal estar" pela mobília, "para um rapaz sózinho". Acho que comprar uma cama, um colchão, uma camilha e uma cómoda ou um guarda-fatos - ou arranjar quem mos empreste - é perfeitamente natural. Não quererias que dormisse no chão, que empilhasse os livros e a roupa num canto e me sentasse no soalho a escrever nos joelhos, quando não no peitoril da janela !
Quando houver dinheiro ou uma casa acessível. Concluí que não estou disposto a continuar na pensão. E entre aturar velhotas hospedeiras ou alugar uma casa nas condições em que decidi, não hesitei. Se tu aderes ou não, isso desconheço por enquanto !!! (...)
PS - E com isto tudo não preparei as lições da tarde nem fui ao FAOJ. Enfim ... Na Escola só me editam um dos textos, que só me dão na próxima 4ª feira. Uma chatice.
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Évora
75.02.17
A porta vai e vem, as pessoas passam nas ruas, cartazes continuam anunciando realizações já efectuadas: comícios da FREP (Frente Revolucionária dos Estudantes Portugueses), no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, a 24 de Janeiro, do PS (que foi lá em baixo na Praça de Touros), do MES (uma "barracada", no Garcia de Resende).
São 10h 25m dum sábado do meu 29º ano de existência. Na mesa, os restos do pequeno almoço: o bule vazio de chá, um bocadito de pão ainda com manteiga e fiambre, restos dos pacotes de açúcar. Uma natureza morta !
Reentrei nas aulas com o "pé esquerdo". Em 15 dias nenhum (ou quase nenhum) aluno se lembrou, se deu ao incómodo ou se dignou ler o 1º fascículo dos textos de apoio para permitir uma base de discussão e participação nas aulas. Não tenho jeito para dar aulas magistrais e incomoda-me falar para o boneco. Esperam que eu me chateie a preparar as lições e que vá despejar sabedoria, enquanto cavaqueiam descontraídamente. Justificam-se que têm muitas aulas, que a "política" é secundária e que deve ser facultativa. "Esperam" que eu lhes vá "despertar" o interesse. E assim falo para meia dúzia ou falamos entre nós, perante o desinteresse dos outros. Mostraram-se agora mais "preocupados" quando lhes disse que haveria avaliação de conhecimentos e, possívelmente, exame final. Comecei a marcar faltas nas aulas. (talvez seja uma tática errada).
Saio das aulas farto e frustrado ao fim de semana. Isto com os cursos complementares. Porque com os cursos gerais o pandemónio é o mesmo. Uns interessam-se, outros não. E as aulas tornam-se cansativas.
Já é 2ª feira. Ontem passei o dia a estudar, o que já não fazia daquele modo há muito tempo. Sábado á noite tive de fazer uma avaliação no Instituto. O Conselho Directivo recomendou o meu nome mas ninguém me tinha comunicado, até que a Angelina me entrou pelo quarto adentro a dizer-me isso. Enfim vão-se fazendo "exames" na ESESE .... nas horas vagas ! Mais três para a conta.
A tarde hoje está linda e não me apetece ir dar aulas. Logo á 2ª, com duas turmas que me fazem a cabeça em água, com o seu desassossego e irrequietude. Entretanto, no café, alguns dos meus alunos andam muito entusiasmados com o "trabalho de casa". Ah!Ah!Ah!
No MFA debate-se o futuro económico e político de Portugal, havendo uma proposta radical no sentido de ser reformulado o Programa do MFA, para assumir um carácter decididamente anticapitalista pela instauração do socialismo, contra as ilusões da democracia burguesa.
O PS e o PPD andam "loucos" e o Expresso define-se cada vez mais como órgão de expressão do PPD e da social-democracia.
Apesar dos discursos do Costa Gomes - até que ponto anticomunista ? - a reformulação do programa do MFA permitiria apenas a candidatura ás eleições dos partidos que fossem declaradamente anticapitalistas, pelo programa proposto, o que afastaria a hipótese do retorno ou, mais correctamente, da manutenção do sistema capitalista. (...)
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Évora
75.02.20
Aproveito os minutos do almoço para dar notícias. Ando muito cansado por causa das aulas (...)
Ainda não tive tempo nem disposição para tratar das "mobílias" e o dia 25 aproxima-se. Na próxima 4ª feira vou com alunos da Escola numa excursão à Serra da Estrela.
Recebi notícias de casa, um "testamento" enorme. A minha mãe responsabiliza o MPLA pelos distúrbios e parece não compreender o que se passa. Quer vir cá - ainda não sabe quando - e pretende continuar portuguesa. O meu pai tenciona naturalizar-se angolano e o Zé ainda não se decidiu. Pretende que eu lá vá nas férias da Páscoa, mas não deve ser viável.
Mas ... tenho de começar a comer a sopa, que o tempo passa e a sopa arrefece.
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Évora
75.02.23
(...) Amanhã começa uma nova semana de trabalho. Não sei como correrá, porque não tenho jeito para improvisar e de vez em quando despisto-me. Tenho de aguentar-me estas três semanas e vamos lá a ver se os 15 dias da Páscoa chegam para "actualizar" as lições até ao fim do ano.
Pensei comprar aquela mobília que vimos na Rua Serpa Pinto, se a cama não for pequena. Tenho é de arranjar dez contos emprestados.
Telefonei ontem á noite á Maria Luísa, tendo-lhe "cravado" lençóis, cobertores, fronhas e uma colcha. No próximo fim de semana deslocam-se até Évora, trazendo-me isso e a minha "poltrona". No fundo creio que estaria mais entusiasmado ... se não fosse alugar a casa a meias e não fosse este sentido de me ir embora e não querer por isso criar raízes. Mas ... por essas e por outras estive seis anos em casa da D.Vitória, sempre a pensar que me ia embora no ano seguinte. Já lá vão sete anos !
Soube hoje pelo Figueira que dentro de tempos deve sair o decreto que cria a ESESE, concedendo sem mais a licenciatura a todos os diplomados pelo ISESE (como é o meu caso); o ISESE verá o seu alvará transformado, tornando-se apenas um centro de investigação post-graduação.
É uma e meia da manhã e quero ainda dar uma vista de olhos pela "História Moderna" do Efimov. Apetece-me dormir, mas só mais logo.
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Évora
75.02.25
O movimento grevista do ensino secundário alastrou-se a todo o País. O Liceu de Évora está ocupado desde o fim de semana passado, por tempo indefinido. Na Escola Industrial os cursos complementares declararam greve desde ontem ás 14 horas. Á tarde aperceberam-se que teriam faltas - porque os professores as marcavam - e deliberaram apoderar-se dos livros de ponto, o que fizeram num ápice. Entretanto reuniram-se novamente esta manhã para se decidirem comparecer ás aulas, impedindo no entanto que haja aulas. Comparecem mas não há aulas. "Greve de zelo" ou de "braços caídos", segundo alguns. Á hora do almoço não sei o que resultou.
Entretanto os professores dos cursos complementares estiveram reunidos também esta manhã. São umas reuniões muito interessantes estas, entre os adeptos da linha dura da ordem e da autoridade, dos indecisos, dos demissionários, dos que descarregam no MEC, e dos que tentam perceber e enquadrar o que se passa.
Tudo isto por causa das dispensas com 14 valores. Fazer uma greve, recusar as aulas, apenas por isso, continuando tudo como antes, é um pouco inútil se outros (passos) não forem dados para se passar além.
Duvido que a linha dura do MEC consiga vencer. O Ensino permite muitas manobras, que serão contra-revolucionárias conforme o rumo que tomarem.
Enfim ...
Também na Escola um professor agrediu um aluno. O professor é um tipo metido consigo próprio, que veio há pouco da guerra e ainda se ressente disso. Não sei o que resultou disso tudo.
Sinto-me muito cansado. E logo ainda tenho uma reunião do corpo docente e amanhã de madrugada ala para a Serra da Estrela. Depois é 5ª e 6ª e temos mais uma fim de semana.
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Covilhã
75.02.26
(Celeste)
Serra da Estrela, Estalagem o Pastor
A neve parece esferovite e de vez em quando um tipo enterra-se até aos joelhos. Antes do cume a serra é negra, salpicada de branco; no cimo é um manto branco, que o nevoeiro confundia, tornando fantasmagóricos os vultos. Estava frio, mas suportava-se. Encontro-me num café da Covilhã, que parece um do Porto, enquanto as ruas lá para trás lembravam Sintra. Almoçámos no Fundão, na Escola Secundária, um prédio de habitação adaptado - onde as pessoas tinham um ar seráfico e beatífico, falando com um sotaque de seminaristas, padres ou de freiras de Sta.Zita; - será que a maioria deles são destas bandas? - As miúdas desta região têm um ar rude ou agreste - serrano ? - Demos liberdade aos miúdos e até agora não tem havido problemas. Estou é maçado, pois a camioneta não é cómoda e por causa da reunião na Escola só me deitei às 3 da matina para levantar-me às 5 1/2 . O postal chegou ao fim. Os maus pais perguntam por ti. Um abraço VM
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