Ainda a VI Revisão Constitucional e a actual política do PS,
na sequência da ofensiva do PS/PSD em 2004
* Victor Nogueira
[apesar de derrotada então, agora prosseguida pelo PS de Sócrates, ao arrepio dos preceitos constitucionais ainda vigentes]
Uma vingança da direita
Apostados em aproveitar a sua passagem pelo Governo do País para concretizarem um ajuste final de contas com o 25 de Abril, PSD e PP pretendem levar a cabo, se possível na presente legislatura, a sexta revisão da Constituição.
Mais do que alterações pontuais, ainda que importantes, o radical projecto da direita é a negação completa dos valores e princípios que são a base do regime democrático. Nesta nova ofensiva propõem a eliminação do Preâmbulo da Constituição de 1976 e abrem caminho para pôr em causa o carácter republicano do regime, instaurado em 1910. Desejam também suprimir a autonomia das autarquias locais e fazer tábua rasa dos direitos das populações, dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores, das associações sindicais e das comissões de moradores, consagrados em 1976 e já seriamente amputados na revisão de 1982.
Com um profundo cunho de classe, o projecto do PSD/CDS consolida o direito de iniciativa e propriedade privada do patronato, ao mesmo tempo que extingue a garantia à «segurança no emprego». Agrava as limitações ao exercício do direito à greve e aos direitos das comissões de trabalhadores. Abole o direito de autogestão dos trabalhadores, conquistado em 1976. Subordina ainda mais os portugueses aos interesses do capital transnacional.
Menos e pior Estado
Com base nos mesmos pressupostos ideológicos em que assenta a chamada «reforma» administrativa, a coligação PSD/PP está empenhada em retirar do texto constitucional todas as referências às funções sociais do Estado, deixando-as à mercê das leis do mercado capitalista. A concretizarem-se as suas intenções, a Constituição deixaria de atribuir ao Estado a obrigação de «organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários».
Em sua substituição, a Lei Fundamental adoptaria uma formulação muito mais vaga segundo a qual o sistema de segurança social passaria a reger-se pelos «princípios da solidariedade e da equidade sociais», compreendendo para além do «sistema público, o sistema de acção social e o sistema complementar» [este último, uma porta aberta para a constitucionalização das seguradoras privadas].
Para o Serviço Nacional de Saúde, que foi definido em 1976 como «universal, geral e gratuito», passando a «tendencialmente gratuito», na revisão de 1982, a direita propõe que seja «tendencialmente gratuito [apenas] para os mais carenciados de meios económicos». Depois de ter sido eliminada a obrigação do Estado de estimular a entrada de trabalhadores e filhos de trabalhadores na universidade (1982), a coligação governamental quer ir mais longe, propondo a supressão dos objectivos superiores do ensino actualmente consagrados como: «a) contribuir para a superação de desigualdades económicas, sociais e culturais, b) habilitar os cidadãos a participar democraticamente numa sociedade livre e c) promover a compreensão mútua, a tolerância e o espírito de solidariedade». Da igual forma, o princípio da progressiva a gratuitidade de todos os graus de ensino, estabelecido em 1976, ficaria reduzido apenas aos «mais carenciados de meios económicos», desaparecendo também a obrigação de criar uma «rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população». Estas inaceitáveis propostas configuram um modelo injusto de sociedade em que o Estado ficaria reduzido a uma função social caritativa, para um núcleo de desfavorecidos, sendo os restantes serviços públicos entregues à gula do capital especulativo e financeiro: banca e seguros.
Democracia amputada
As sucessivas revisões constitucionais têm limitado os direitos de intervenção e de participação das populações e das suas organizações representativas no planeamento e na gestão da actividade económica, da saúde, do ensino e da segurança social. Em simultâneo, de forma demagógica, ao longo destes anos PS, PSD e CDS/PP têm apregoado aos quatro ventos a necessidade de uma maior participação dos cidadãos na vida pública e de uma maior proximidade entre eleitos e eleitores. Na realidade, as revisões da lei eleitoral eleitorais, para além de terem limitado a representatividade proporcional, favorecendo a bipolarização artificial entre PS e PSD, reduziram de forma drástica a composição da Assembleia da República, que viu o número de deputados eleitos diminuir de 240 a 250, em 1976, para 180 em 1997. Nas autarquias deixaria de haver representação proporcional nos órgãos executivos.
Afastando ainda mais eleitos de eleitores, o projecto do PSD/PP defende a criação de um Senado que seria constituído por uma mistura de eleitos por sufrágio indirecto e por «notáveis», como antigos presidentes da república e primeiros-ministros. Embora sem a legitimidade democrática do sufrágio popular, este órgão elitista seria investido do poder legislativo, com competência para vetar leis da Assembleia da República.
Sobreviventes da revisão de 1982, as comissões de moradores figuram nas Constituição com o objectivo de «intensificar a participação das populações na vida administrativa local», sendo-lhes reconhecida a possibilidade de «realizar as tarefas que a lei lhes confiar ou os órgãos da respectiva freguesia nelas delegarem». No projecto do PSD/PP esta forma de organização popular desaparece pura e simplesmente.
Defender Abril
Após quase três décadas de ininterruptos ataques e deformações, a Constituição Portuguesa permanece como um forte obstáculo à concretização dos planos mais radicais do capitalismo neoliberal, que visam aprofundar a exploração do Trabalho e a obtenção de maiores lucros.
O novo processo de revisão tentará suprimir e limitar gravemente os direitos, garantias e liberdades consagrados, permitindo o aprofundamento do conjunto de reformas anti-sociais em curso (código laboral, leis dos partidos, sistemas de saúde, educação e segurança social), e enquadrando as estratégias federalistas, neoliberais e militaristas a nível da União Europeia, lesivas das soberanias nacionais e dos direitos dos trabalhadores e dos povos.
Num momento em que se comemoram os 30 anos da Revolução de 1974, a defesa da Constituição de Abril assume uma importância vital para todos aqueles que mantêm viva a esperança e o desejo de construírem uma sociedade de progresso social e económico, onde imperem os valores da solidariedade, da justiça social e da paz entre os povos.
in JORNAL DO STAL nº 74 (Abril 2004)
Revisão da Constituição
Soberania hipotecada
Terminado o sexto processo de revisão, votado a mata-cavalos, poder-se-ia concluir que foram afastadas as piores «ameaças» de subversão da Constituição apresentadas pelo PSD/CDS. Mas o resultado é por demais perverso.
De facto, mantiveram-se sem alteração o preâmbulo e os capítulos relativos à organização unitária e republicana do Estado e aos princípios da organização económica e aos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, com ajustamentos positivos quanto à regionalização autonómica.
Contudo, a verdade é que foi introduzida no art.º 8.º uma norma nova, aprovada pelo PS/PSD/CDS e rejeitada pelos restantes partidos parlamentares, com duas gravíssimas consequências que são, por um lado, a admissão da supremacia do direito comunitário sobre o direito nacional, incluindo a própria Lei Fundamental; por outro, a anuência a que os termos em que se processará essa prevalência sejam definidos pelo próprio direito da União.
Dito de outro modo, a Constituição passou a reconhecer ao direito da União (sem especificar qual direito da União) a faculdade de definir os termos em que as suas normas vigorarão em Portugal.
Nas costas do povo, o Partido Socialista aliou-se à coligação de direita PSD/CDS-PP para consumar uma revisão constitucional que permite a ratificação, sem referendo, de um tratado constitucional, ainda antes de se conhecer ou ter sido aprovado pelos Estados-membros o projecto definitivo.
Colocando a Constituição portuguesa numa posição de subalternidade face a uma eventual constituição europeia, o PS/PSD/CDS hipotecaram a soberania nacional e popular, pondo em causa, na prática, os direitos, liberdades e garantias fundamentais que enformam o regime democrático, conquistado com a Revolução de Abril.
Um projecto federalista e neoliberal (*)
O projecto de tratado constitucional da União Europeia foi elaborado por um fórum restrito, denominado «Convenção sobre o Futuro da Europa», no qual apenas tiveram assento representantes dos governos e das bancadas parlamentares dos maiores partidos (no caso de Portugal, só o PS e PSD puderam seguir os trabalhos).
Activamente defendido pelas confederações patronais europeias, o documento confere personalidade jurídica à União, cria um ministro dos Negócios Estrangeiros europeu e um presidente da União, acabando com as presidências rotativas. Para além de um cunho claramente federalista, que aposta numa Europa dirigida por um directório de países ricos (Alemanha, França, Reino Unido e Itália), o projecto incorpora ainda a controversa Carta dos Direitos Fundamentais, aprovada em Dezembro de 2000, que passa a ter carácter vinculativo.
As ambiguidades e lacunas graves em matéria de direitos sociais fazem desta Carta um texto claramente retrógrado, designadamente quando comparado com a Constituição Portuguesa.
O direito ao trabalho é transformado em «direito a trabalhar», enquanto que o «direito a uma ajuda à habitação» substitui o direito à habitação. Não estão consagrados os direitos à saúde ou à segurança social. Os direitos sindicais quase não são mencionados, embora esteja previsto um artigo inteiro sobre a «liberdade de empresa».
O projecto constitucional insere-se na escalada do neoliberalismo na União Europeia, que visa a destruição do modelo social europeu e das funções sociais do Estado (sistemas de segurança social, saúde pública, ensino e serviços públicos em geral) e a eliminação dos direitos e liberdades dos cidadãos.
Em marcha está uma Europa ao serviço do capital e das transnacionais, comandada por um punhado de países mais desenvolvidos, que pretendem impor a sua vontade imperial os restantes Estados soberanos.
(*) Texto do colectivo do jornal
Publicado no Jornal do STAL nº 74 (Julho 2004) e no PortugalClub
Foto retirada do site do STAL
Sem comentários:
Enviar um comentário