* Victor Nogueira
Quando lá entrei pela 1ª vez nos idos de 1968 para me inscrever em Sociologia creio que do edifício primitivo restariam talvez e escadaria bem como alguns arcos (à esquerda, no átrio) e 3 ou 4 das celas primitivas, transformadas em depósito dos livros da gélida Biblioteca.
(foto actual em http://www.cm-evora.pt/pt/Evoraturismo/Visitar/Paginas/Forum-Eugenio-de-Almeida.aspx)
Caro José Eliseu Pinto
Já que estamos em maré de memórias e reconstituições (como aquela que transformou em hotel de luxo o de má memória edifício da António Maria Cardoso em Lisboa) deixo aqui algumas das minhas impressões sobre Évora e o Palácio da Inquisição nos idos de 1968.
«Ao fim duns vinte minutos foi chegada a Évora. Após alguns infrutíferos telefonemas feitos dum barzeco existente junto à estação, consegui arranjar um quarto na Pensão Eborense. Começara pelas pensões de 2ª classe e estava a ver que terminava no hotel de luxo. Mas Deus Nosso Senhor teve pena da minha bolsa! Entretanto os táxis tinham debandado. Sabendo que a pensão ficava a cerca de 1 km e porque a noite estava amena, pus o saco da TAP a tiracolo e pés a caminho. (...) O Largo do Marquês de Marialva, onde fica o Instituto ( ) Tendo a Sé ( ) à minha direita, este fica defronte, e o Templo de Diana num outro largo, mais à direita. De resto o ISESE dá para os dois largos. O edifício está caiado de branco, como aliás a maioria das casas de Évora. Tem três pisos. Outrora foi o Palácio da Inquisição; através dum largo portão entramos para um espaçoso e fresco átrio. À direita, uma porta que dá para a secretaria, onde me matriculei no curso de sociologia, e uma outra, que dá para o quintal. À esquerda, outras portas, uma das quais dá para a biblioteca. Dela passa-se para uma saleta e desta para um corredor, ao longo do qual ficam as celas onde outrora colocavam os condenados ou suspeitos. São quatro ou cinco salas estreitas, altas, com uma ligeira fresta gradeada ao cimo. Disse-me uma colega minha [creio que a Manuela Sachetti] que proibiram a entrada dos curiosos aqui aquando das obras de restauração, pois as paredes estavam [ainda] cheias de sangue. Agora albergam os livros da biblioteca, cerca de 7 000, segundo o contínuo [senhor Veladas] que me serviu de cicerone. Estive mesmo para perguntar onde fora a sala de torturas de então.
Por uma larga escadaria sobe-se aos outros dois pisos, onde estão instaladas as salas de aulas, uma para cada ano e curso (assim não terei de correr de sala para sala, subindo e descendo escadas tortuosas e percorrendo estreitos e congestionados corredores, como sucedia no ISCEF [no velho Convento ao Quelhas] ( ). Para além destas, a sala de convívio, a sala de estar das alunas (muito pobrezinha) e o Gabinete da Direcção da Associação dos Estudantes. O edifício é fresco no verão e frio no inverno, óbice que é desfeito com os aquecedores. As salas são amplas e arejadas. (NSF - 1968.09.09)
Está a custar-me um pouco abandonar Lisboa e a sua luminosidade e trocá- la por um provinciano burgo, mesmo que seja a cidade museu. (...) Évora é uma cidade pacata, de ruas estreitas e tortuosas, casas caiadas de branco, piso incomodamente calcetado, nada de cosmopolitismo. O edifício do Instituto, que foi Palácio da Inquisição, é amplo e arejado. Gostei dele. (AH - 1968.09.30)
Imaginem uma ilha de pedra escura ou casas irritantemente brancas no meio de uma infindável planície. Imaginem umas muralhas que encerrem umas relíquias sagradas, mais intocáveis que os "intocáveis". Imaginem umas igrejas velhas, escuras, uma delas cheia de tíbias e caveiras e dois esqueletos pendurados na parede [Igreja de S. Francisco]. E a encorajadora frase "Homem, lembra te que és pó e em pó te hás de tornar". Uma janela manuelina, num canto, num dos muitos cantos escusos, e que foi do Garcia de Resende. Um templo romano, vulgarmente denominado de Diana. ( ) Muralhas medievais e seicentistas. ( ) Um aqueduto ou o que dele resta. E casas, muitas casas, dolorosamente caiadas de branco, um branco frequentemente maculado por umas escuras pedras graníticas, restos duma janela, duma porta, duma parede, duma muralha... E ruas estreitas e tortuosas, onde passam pessoas e carros. Évora, ei-la, cidade sem presente nem futuro, com passado, um passado que se pretende preservar a todo o custo. Aqui, se não fossem os automóveis e as antenas de televisão, poder-se- ia dizer que o tempo parou. Algumas décadas ou mesmo séculos atrás.
Que mais tem ela? Meia dúzia de jardins. As melhores piscinas da Península. Um "Salão Central Eborense". Que dá sessões cinematográficas diariamente (à 6ª feira o filme é português) Um teatro (o Garcia de Resende) que em dois meses abriu para apresentar um concerto, uma peça de teatro ("D. Quixote", pelo Teatro Experimental de Cascais) e uma ópera ("Rigoletto", pela Companhia do Trindade). Um espectáculo de cada.
Cinema, café, Praça do Giraldo, casas e pouco mais. O que há para fazer. As perspectivas para as miúdas são mais negras. (JCF - 1968.12.26)
Manhã clara, cheia de sol. Um céu azul, sujo de fiapos brancos - nem por isso menos belo. Telhados cor de tijolo. Com ervas verdes, pequenas florestas correndo ao longo de profundos vales ou galgando montanhas. Paredes brancas, sujas. Sólidas chaminés, umas aninhadas junto às paredes (buscando nelas protecção ou protegendo‑as?), outras erguendo‑se altaneiras, por cima dos telhados e das casas, mas pesadas demais para juntarem a sua alvura suja aos fiapos azul‑claro que juncam o céu. (NSM - 1969.01.01)
Andei a deambular pelas ruas de Évora armado em explorador. Cruzes em esquinas assinalam o local onde foi assassinado, largos anos atrás, um homem qualquer, ruas desertas, miúdos, roupa estendida nas janelas, um gatito que roça nas minhas botas, o miúdo que me pede dinheiro, já não sei para quê. Por fim o regresso ao Giraldo. Rumo ao Mercado, onde se vendem animais embalsamados, artigos de barro, caça, peixe, brinquedos... esses brinquedos de lata ou de madeira que eu reconheci como já tendo sido meus numa longínqua infância que já não reconheço como minha. Seguiu‑se a habitual passagem pelo Jardim Público. Onde está uma oliveira com uma lápide que reza assim: "Oliveira plantada em 14 de Julho de 1919 comemorando a Paz Universal após a Guerra dos Povos Aliados contra a Alemanha" (NSM - 1969.01.26)
Nós por cá vamos andando, numa terra onde as pedras são venerandas, mas nem por todos veneradas. Évora, ilha de pedra e cal perdida no meio da imensa planura alentejana, de ruas estreitas e tortuosas onde o tempo parou algures no passado. da Praça do Giraldo, cujas arcadas e paredes bordejantes há muito teriam caído se não fossem os beneméritos que continuamente se revezam a sustentá-las, falando tudo de nada. das meninas de longos cabelos e brancas batas, umas feias, outras bonitas, que passam aos magotes, de livros debaixo do braço. Dos rapazes de castanhos e compridos capotes. da Escola Agrícola, que fazem gala em andarem rudemente mal vestidos, de caqui azul. Do Salão Central, que dá sessões cinematográficas diárias (6.as feiras: filme português). do Teatro Garcia de Resende, que abre de longe em longe! onde a malta se aborrece por nada ter de fazer, onde tanto há que fazer.(...). Os jesuítas desiludiram-me. maus pedagogos, agarrados a métodos de ensino ultrapassados, falando "ex cathedra", excessivamente cautelosos, para não empregar um termo mais contundente, desaproveitando as condições para a criação duma escola realmente nova. (ASV - 1969.02.20)
Que tenho feito? Andado por aí. Ir ao Instituto ouvir uns tipos a vomitarem sabedoria, uns, ignorância, outros, presunção, alguns. Vender folhas atrás do balcão da Associação de Estudantes. Ir bissemanalmente às piscinas [cobertas] nadar. Ouvir música, de rádio, pois o gira‑discos avariou‑se. Andar por aí. Ler. Aborrecer‑me. Desesperar‑me. Angustiar‑me. Mas,... que interessa isto?! Respiro, como, ando. Estou vivo! O resto, hum! o resto são cantigas. (MLF - 1969.02.23)
Estou saturado de Évora: casa, instituto, café Giraldo, casa, instituto, café Giraldo, casa, instituto, café Giraldo... Sempre as mesmas caras, sempre as mesmas conversas, sempre a mesma água gotejando sobre mim (...) (NSM - 1969 - Páscoa)
Desta janela [da sala de aulas do Instituto em que me encontro] avistam-se telhados sujos, uma chaminé esbranquiçada e, lá ao fundo, muito ao longe, a verde campina alentejana, onde se destacam algumas manchas mais escuras, de oliveiras ou sobreiros. Pela outra janela, à minha esquerda, vêm-se as paredes brancas do edifício do Museu Regional, com as suas sacadas de ferro forjado. Há umas semanas atrás era a moldura dum dos quadros mais belos que tenho visto: os ramos das árvores do largo [Marquês de Marialva], agora descarnados, estavam cobertos de folhagem dourada. Quantas vezes, ao entrar para esta sala, os meus olhos se deliciaram neles. (NSM - 1969.04.09)
Manhã de um segundo dia de férias, véspera do começo de exames. Os dias de sol alternam com os de chuva fria. Hoje o céu está azul, quase limpo; andorinhas volteiam pelos ares, o branco das casas fere impiedosamente o olhar, os jardins (Ah! a única coisa aproveitável nesta vilória!) multicoloram‑se de flores e as árvores enverdecem. Mas no telhado e junto à minha janela, o musgo secou, deixando apenas manchas escuras. A erva que corria por entre as telhas está castanha e coberta de mini‑flores brancas. Já não parecem árvores correndo por entre vales e galgando montanhas. (NSM - 1969.06.03)»
Fotos Victor Nogueira - 1974
As vistas aéreas resultam dum voo com o Seruca Salgado, que pilotava o teco-teco (CS AKP)´entre Évora - Arraiolos - Évora, em Dezembro de 1974
É sempre uma experiência gratificante revisitar, nos teus escritos, este passado, que ambos conhecemos tão bem. Obrigado, Victor, pelo rigor do registo e da classificação desta memória. Abraço.
Comentários a um post de José Eliseu Pinto sobre a descaracterizarão do edifício do antigo Palácio da Inquisição de Évora, perpetrada pela Fundação Eugénio de Almeida
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Este foi um processo atípico, com a administração da Fundação Eugénio de Almeida a obter, directamente do governo de Passos/Portas, a carta-branca de que necessitava para transfigurar o edifício, contra o parecer e a vontade manifestas da Direcção Regional da Cultura (apesar da sua direcção politicamente alinhada, à data) e contornando, de forma escandalosa, a sua competência na matéria.
Até a volumetria foi alterada, pelo alteamento da cumeeira do edifício, adquirindo este uma preponderância que não possuía antes, no local mais nobre e emblemático da cidade.
Como diz o aforismo popular, quem pode é que puxa. (José Eliseu Pinto)
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