É depois do jantar. Pela janela
aberta entram a brisa da noite, vozes de pessoas e dum e outro carro que passa
na rua. (...) A D. Vitória pintou‑me o
quarto de verde, como lhe pedira. A princípio gostei, mas estou a sentir‑me
mal com tanto verde. Como as paredes são muito duras, terei de fixar as
gravuras com cola, pois os "punaises" não entram. (NSF - 1970.10.06)
Preparo a frequência de Sociologia II
enquanto ouço a "Valsa" de Ravel. É uma tarde de domingo, dum inverno
já não rigoroso, aprazível. Sentado numa cadeira, os pés noutra, rodeado de
livros, papéis e apontamentos. Daqui a pouco vou até ao café lanchar e ler o
jornal. A dona da casa ainda não veio arrumar o quarto. (NSF - 1971.01.24)
São
quase 20 horas. Como sempre, o meu quarto está transformado
em sala de reunião. Eu escrevo,
dois jogam à batalha naval, outro estuda e a D. Teresinha ouve música. (NSF -
1971.03.21)
Pronto. Lá arrefeceu tudo ao pegar na caneta para dizer do meu espírito,
do que nele se passa. Esvai‑se‑me por entre os dedos e nas mãos apenas o resto
do que não é. No gira‑discos, Strawinsky. É ao lusco‑fusco, o candeeiro aceso
defronte a mim, enquanto o Rocha tira apontamentos do "Rapport Sur la
Situation Sociale dans le Monde en 1963", edição da ONU ().
Apesar do aquecedor, tenho os pés gelados. Estou enfiado no roupão. O silêncio
é perturbado apenas pelo leve respirar, os ruídos das canetas deslizando
rápidas pelas folhas, o roçar das mangas nas mesas. (...) O Rocha pôs outro
disco: Bach, uma cantata. (NSM - 1971.12.01)
Livros lápis folhas
anotadas lápis canetas um cheque dois meses atrasado no pagamento da
"Seara Nova" no divã mais livros dois casacos o rádio silenciado a
viola do Zé Manuel para as cantorias do Aristides as pantufas aparecendo pela
colcha e mais livros dezenas deles e de revistas para qualquer lado que me
volte! Se não forem livros são paredes onde esbarra o meu espírito: parede do
meu quarto e da casa em frente pela janela avista‑se uma nesgazinha do céu de
cinzento nublado. Pela janela entram as
vozes do Orlando e da D. Vitória mais o barulho dos fritos - novamente batatas?
- e o ruído distanciado dos automóveis e motorizadas com o seu acelerar e
buzinar. (MCG - 1972.10.10)
Verdadeiramente o
quarto até parece outro, mesmo atendendo à evolução na continuidade.
Que não gostou muito da brincadeira foi a D. Vitória, que ficou enxofrada por
eu ter posto no corredor a abominável moldura do espelho da cómoda. Ao
regressar a casa hoje aquilo estava de novo no meu quarto, arrumado embora num
canto. Quando desci a ilustre senhora começou a mandar vir, que aquilo ficava
no meu quarto e mais blá‑blá que me ia enchendo as medidas Enfim, disse‑me
que me alugou o quarto para dormir e se eu queria uma sala de convívio que
alugasse um apartamento. (!) Ah! Ah! Ah!... e este até tem sido um ano
sossegado: pouca gente vem para cá para o paleio e para ouvir música ou estudar
como nos primeiros anos, nem as meninas ()
ainda cá puseram os pés, como algumas de outrora, muito menos tendo eu feito
qualquer tentativa nesse sentido. Enfim, a gente tem de desculpar os nervos dos
outros! (Aquilo deve também ser por causa das fotografias e posters
"imorais e contra os bons costumes" "Porcarias e
palhaçadas", como doutras vezes desabafou). Mas o problema é que o monstro
acima referido não ficará no meu quarto. Vamos deixar arrefecer o copo de água
e quando a vozinha estiver menos agreste e o olhar menos sofredor atacarei
novamente, desta vez com um sorriso Pepsodent, que doutro modo não vai a
ilustre senhora. (MCG - 1973.03.13)
Está frio e eu cansado. Passo os dias na biblioteca ou no café,
como vagabundo. Gosto do silêncio do meu quarto - só se ouve o tic-tac do
relógio e o roçar da caneta no papel. O
café, com o seu ruído e a fumarada,
cansa‑me. Mas lá é que estão as pessoas, lá é que se conversa, lá é que
falamos a sério ou rimos a bandeiras despregadas, lá se gasta o dinheiro, em
lanches e ceias, de pão de forma ou galões claros ou bolos. Uma pequena fortuna
ao fim do mês.
Ao chegar a casa - será por isso que o Camilo passa dias no café? - o
desejo de entrar em nós e a desolação porque não se pode contar aos livros aquilo
que nos vai na alma ou comunicar as maravilhas das descobertas que se vão
fazendo diariamente. O carinho e
a ternura estão fechados dentro de mim, por trás desta máscara que não é se não
uma parte de mim. Não saberás o que é para mim este desenraizamento. Compreendo
muita coisa - sei até coisas demais que não tenho onde aplicar. O quarto
reflecte‑se no negrume brilhante do vidro da janela onde se espelham os
candeeiros. (..) O tempo foge‑me por entre os dedos e não sei o que me ficará
dele. (MCG - 1973.12.14)
O quarto está gelado.
Passei o fim de semana lendo umas coisas de antropologia. Tenho os
"conhecimentos" um tanto ou quanto baralhados. A D. Vitória veio aqui há pouco trazer-me um doce e pêras de arroz
doce. Está uma simpatia de senhora! (MCG - 1974.01.03)
Ando
muito cansado, necessitando de dormir umas boas sonecas, mas a cama de Évora
não me seduz. O meu pai, que "descansou" uns minutos nela, disse que
não valia a pena sacrificar‑me: disse para comprar uma cama e um colchão
decentes. Que pena não ter vindo mais cedo! (MCG - 1974.01.06)
Acabei de jantar; o [Emídio] Guerreiro e eu comprámos comida no "snack" Camões e viemos de
abalada até casa com um carregamento de salada russa (bah!), filetes de pescada
(estavam bons mas tinham espinhas) e borrego assado com ervilhas (saboroso, mas
a carne era tanta como os ossos). Meio queijito (que o Guerreiro tinha) e maçãs
(que tenho ali) e fizemos a festa por 38$50 cada um. Ah! esquecia‑me, como
fundo musical a "Pequena Sinfonia Nocturna", de Mozart. A cadeira (desmontável) que a minha mãe me
deu permite um sentar confortável. Gosto muito de estar sentado nela: estuda‑se
bem. (1974 ABRIL 24)
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