Fomos ontem tratar da mudança do meu tio para outro lar, ali no caminho para o Alto do Lagoal, numa vivenda a meia-encosta, escondida no arvoredo. Ao chegar lá por um caminho estreito e vicinal, ao sentir aquela quietude, aquele silêncio onde não chegava o bulício das pessoas e da cidade dos homens, uma enorme serenidade tomou posse de mim. Deliciei-me com a bela vista para o estuário do Tejo e para a margem sul, naquela tarde soalheira com o rio azul refulgindo por entre as clareiras do arvoredo. E pensei em como gostaria de mostrar aquele recanto do "paraíso" á Maria do Mar, a ela que um dia destes me mostrou por aquelas bandas e por entre as casas a beleza do mesmo estuário !
Os ricos donos da vivenda deixaram-na e ela é agora uma casa de "repouso" para pessoas idosas e doentes, muitas das quais já não estão em condições de apreciar aquela beleza e quietude nem o frondoso jardim, agora descuidado, com as piscinas vazias e o campo de ténis abandonado! (...)
Um fim de semana destes gravei para a Maria do Mar uma cassete de música brasileira e portuguesa e, do Algarve, trouxe-lhe uma pequena lembrança que não deu ocasião de entregar-lhe pessoalmente. (...) Numa (das canções) a Maria Berthânea diz "Eu sei que tenho um jeito meio estúpido de ser e de dizer coisas que podem magoar (...) e ofender, mas cada um tem o seu jeito próprio de amar e de se defender." (...)
Procuro a Maria do Mar porque gosto dela e aprecio a sua amizade e companhia. Isso basta-me, porque supus que tais sentimentos fossem recíprocos. Não lhe peço nem ela tem que dar-me contas da sua vida e dos seus actos (...). Em nenhum sítio está escrito os dias em que os amigos se encontram nem as vezes em que se falam, telefonam ou escrevem. (...) Admito perfeitamente que, de parte a parte, em momentos sucessivos, tenha havido equívocos entre nós, por deficiências de leitura acerca do que o outro queria ou podia expressar, equívocos que se mantêm por falta de esclarecimento ou excesso de reserva ou de falta de simplicidade de ambos.
São contradições sucessivas que minam a confiança na franqueza e/ou veracidade dos argumentos de quem arvora a franqueza e a lealdade como estandartes frequentemente invocados do seu comportamento!
No que digo ou escrevo não há senão a constatação despojada do que me parece ser a realidade. Cada um de nós tem a sua vida e não pretendo intrometer-me ou empatar a dela ou obrigar a Maria do Mar a agir como me parece correcto e razoável. Constato o nosso desentendimento, a minha insistência e o seu "enfado" e argumentação. É, por enquanto, tudo!
Paço de Arcos, 1986.08.31
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Estou cansado, como quem jogou à pancada, sufocado pelas lágrimas que não irrompem na face para não trair a emoção. (...)
Acerca da Maria do Mar dói-me a frieza e a secura distantes que desmentem os gestos e as palavras que penso por vezes amigos, cheios de gentileza e afecto que eu, pássaro de asa partidas, bebo com sofreguidão. (...)
Setúbal, 1986.12.01
2 comentários:
Tenho passado pelos teus blogues caladinha (às vezes não tenho inspiração para escrever nada mais além de que gosto e isso parece-me pouco). Desta vez não resisti a comentar, não por estar inspirada, mas porque fiquei curiosa. Estes são textos antigos, certo? Então o que aconteceu à Maria do Mar e à vossa amizade? Acabo de escrever e acho-me demasiado curiosa. Desculpa. Preocupa-me a ideia dos amigos que se perdem, seja porque razão for. E agora é melhor ir dormir porque amanhã tenho de acordar cedo (acho que nunca escrevi um comentário tão comprido - vês como é melhor às vezes ficar calada? :))beijinho
Também sei das dores de que falas...tanta coisa acontece sem que o entendamos; tanta raiva e dor me dá o que fica por dizer, assim suspenso, como gotas que não chegam a cair...quanto a mim, doi mais o silêncio do que devia ser e não foi dito, do que o que é dito, mesmo que duro mas corta com precisão; nesses casos dói tudo duma vez só e pronto; depois cicatriza...
Bj
Maria Mamede
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