Ontem, que já é anteontem, falaste sobre a felicidade
em contraponto a uma pretensa atitude de
infelicidade minha. Não me considero infeliz. Vou vivendo, melhor
que muita gente, embora não tão desafogadamente como outros ou do
modo que eu preferiria. Diferente da infelicidade é o desencanto
pela falta de solidariedade e de humanidade crescentes nesta
sociedade em que estamos. E desencanto tenho, por vezes muito, por
vezes em demasia. O que não significa que não tenha tido momentos
de alegria e serenidade. Alguns deles contigo, apesar de tudo. E
talvez parvamente e sem razão eu persiga
em ti a crença ou a esperança de que teria sido (seria) possível
ter sido (ser) feliz contigo, como amigo ou como amador
e ser amado. Mas isto, querida amiga, só teria
resposta se outra fosse a nossa relação. A isso (...) só a
convivência límpida e no dia-a-dia teria dado resposta.
Apesar de tudo, acredito que é possível as pessoas serem
felizes. Por muito breve que seja a felicidade. Porque entendo que os
homens e as mulheres não foram feitos para estarem sozinhos ou
viverem
solitariamente. Por isso, na breve passagem nossa por este mundo, é
preferível, digamos, um ano de felicidade, mesmo que repartida no
tempo, a uma vida inteira com medo de perdê-la ou não alcançá-la.
Mesmo que tu hoje digas que eras feliz no tempo em que os teus rins
funcionavam. Porque muitas vezes te encontrei triste e desanimada,
apesar do teu calmo sorriso e de brincares
comigo. E nada te impede de vires a ser feliz,
comigo ou com outrem, mas sobretudo contigo. Preciso é olhares em
frente e não te deixares arrastar pela pena de ti. Porque todos
temos limitações maiores ou menores, neste ou naquele campo.
Preciso é sabermos aprender a viver com as nossas limitações para
ultrapassarmos os muros que nos cercam ou querem levantar ou
levantamos à nossa volta. (MMA - 1993.09.16/19)
Houve na minha vida dois breves tempos de grande alegria, libertação
e crença numa vida diferente: os meses a seguir ao 25 de Abril,
(quando a alegria e a solidariedade andavam no ar e em cada esquina),
e as primeiras semanas de 1986, (quando reatei relações com velhos
amigos e te encontrei e contigo a esperança numa outra vida com
amizade e carinho). Mas não se concretizaram as promessas que eles
continham e hoje está de novo este tempo cinzento e fechado que me
cerca. Um tempo retratado num velho poema meu de 1985.
Notícias
do Bloqueio II
Estão
suspensas as palavras
Proibidos os gestos
de ternura, amizade e amor.
O silêncio invade as ruas
entra nas casas
senta-se à mesa da gente.
Que sentido tem dizer
amor
amiga
camarada
companheiro?
Que sentido tem
abrir as mãos e os olhos
e perguntar qual o
significado do
que vemos, ouvimos,
entendemos e sentimos?
Gaivotas loucas, alvoraçadas,
enchem os ares
de movimento e ruído
enquanto a vida escorre pelos
dedos
indiferente
medíocre
submissa. (MMA
- 1993.09.23/26)
Hoje, que te escrevo, é o primeiro dia deste ano de 1994. Hoje, que
me lês, é o primeiro dia do resto de nossas vidas. Cada dia que
passa é sempre o primeiro dia do resto de nossas vidas. A única
diferença é haver cada vez menos primeiros dias à nossa frente.
(MMA - 1994.01.01)
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