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A vida flui e cada instante é diferente do anterior; nada na vida se repete. Ambos somos hoje diferentes, porque noutra situação. Amanhã, mudando-se as circunstâncias, mudaremos, bem como aquilo que cada um de nós espera do outro. (...) Encontrámo-nos a uma esquina da vida, por acaso e com naturalidade, porque somos pessoas que se reconheceram nalguma coisa e que, por isso, se tornaram amigas. Mas não nos conhecemos o suficiente para que possamos hoje dizer se seremos algo mais que isso.
(...)Há um, dois anos atrás, teria aproveitado a ida a Lisboa para passear por essa cidade que amo, apesar da alegria de voltar a casa onde tinha companhia. Hoje voltei para Setúbal e nem à manifestação da Função Pública fui, apesar de desafiado para isso.
(...) A reunião em Lisboa decorreu. Encontrei alguns amigos doutras Câmaras. No regresso ainda passei pela de Setúbal, para assinar o despacho (que a minha secretária deixara preparado, para o efeito, no meu gabinete). (...)
É quase uma da manhã e o silêncio invade a casa, quebrado apenas pelo matraquear da máquina, terminado que foi o disco das marchas militares.
Setúbal, 1986.02.06
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Aqui estou de novo no "escritório" defronte à máquina, enquanto o Concerto nº1 para piano, de Tchaikovsky entoa a casa. Jantei um bruto prego no pão, com sumo de laranja e um pero, arrumando a tralhada e víveres que trouxe de Lisboa - não tivera tempo de abastecer-me em Setúbal, no fim de semana - e aqui estou.
O novelo de emoções que me envolveu nesta tarde e me acompanhou até há pouco está menos envolvente e tenho apenas um enorme cansaço. (...)
Como costuma dizer-se, o futuro a Deus pertence, embora nós tenhamos que fazer uma grande "forcinha" para ajudá-l'O.
Já passa da meia-noite, o gira-discos silenciou-se e preciso de ir descansar, para ver se não faço muitas "barracas" no emprego.
Setúbal, 1986.02.11
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Estou já na Câmara, no meu gabinete, no Urbanismo.
Este fim de semana senti-me bem por estar com a Maria do Mar mas, ao mesmo tempo, inquieto, porque esperava dela algo que se situava noutro nível, não ao nível da amizade mas sim do "companheirismo". E esta contradição tornou-se desgastante.
Os filhos são nossos a vários níveis: biológico, afectivo, porque com eles convivemos, e cultural, porque lhes transmitimos determinados valores e maneiras de ver, de ser e de estar no mundo. Daí que, quando um casal se separa ou divorcia, nesta sociedade, o conjuge "deserdado" perca em certa medida os filhos, embora possa "ganhar" outros.
Ontem o Rui e a Susana estiveram cá em casa, e assim como gostei de estar e brincar com a filha da Maria do Mar, também gostei de estar e de brincar com os meus filhos.
Setúbal, 1986.02.13
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Acabei finalmente o manuscrito do relatório de actividades do Departamento de Pessoal, relativo a 1985 (para ser presente e votado em sessão de Câmara); vou entregá-lo e quem quiser que o decifre (pois já não tenho direito a secretária e a apoio administrativo) ! Com isto cinco dos meus atrasados vinte dias de férias do ano passado foram para o galheiro, como é costume dizer-se. Mas, dado o meu "emprateleiramento", estou pessoalmente interessado em ter escrito o relatório o qual, em condições normais, seria sempre da minha responsabilidade. Junte-se a isto uma valente constipação e uma grande rouquidão e é de calcular como têm sido os dias que se passaram, bonitos e cheios de sol.
Do tempo de férias que me resta passarei algum possívelmente em Lisboa e no Porto.
Setúbal. 1986.03.21
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Sou efectivamente um português um pouco descuidado de certos acontecimentos nacionais, como o futebol. Só hoje, acidentalmente, soube na tabacaria onde diáriamente compro o jornal que Portugal venceu ontem a Inglaterra no Campeonato Mundial de Futebol. Agora, na televisão, só futebol ou telenovela, o que me parece uma autêntica violência. Comecei a ver a Vereda Tropical mas, para além do adiantado da hora, não me sinto conquistado pela história. Enfim ...
A A. e o S. estão ali numa animada conversa sobre a visita que na 2ª feira passada efectuaram a Vale da Rosa, no concelho de Alcoutim., lugarejo perdido em caminhos de cabras pelos cabeços da Serra Algarvia. Afinal não fizeram "gazeta" ao serviço. A finalidade da visita foi verem uma central de energia solar que serve cinco casas e catorze pessoas que, numa região paupérrima, passaram a dispor de um telefone, luz eléctrica, duas arcas frigoríficas e ... dois televisores a cores! Entretanto, ali ao lado, como sempre, uma grande barulheira na sala dos desenhadores, verdadeiramente incomodativa.
Também como habitualmente muito pouco tenho para fazer, sendo este o principal motivo porque escrevo tão assíduamente. Aguardo com uma certa curiosidade a carta da Maria do Mar e o que nela me dirá. (...) Gostaria de ser muito mais simples, mas não sou, pelo contrário. Muito mais simples, menos exigente e de ligar mais fácilmente à terra. Mas não consigo e morrerei com este jeito, certo de que a lucidez e a capacidade de análise das situações, por si só, não chegam.
(...) As mães julgam-se sempre com direito aos filhos, julgando que sem elas não cresceriam, quando no fundo aceitam afinal a "escravização" que os filhos também podem ser, deixando aos homens a "liberdade" e privando-os das crianças, mesmo quando dizem e se acorda que os podem ver sempre.(...)
Já voltei do almoço. Estive a ver como havia de responder ali a um inquérito sobre habitação, mas só amanhã voltarei a pegar no assunto, para ter algo para fazer; é caso para dizer que é necessário fazer render o peixe. Tenho práticamente terminados os concursos de promoção e de reenquadramento, bem como o processo disciplinar por falta de assiduidade, de que sou instrutor, faltando-me decidir se devo interrogar de novo o arguido, em face de documentos que requisitei ao Departamento de Pessoal. Mas nada disso tem a ver com as minhas funções aqui (no Gabinete do Plano Director Municipal). Lembrar-me que antigamente (no Departamento de Pessoal, cuja direcção me competia) tinha de "comprimir-me" para resolver o máximo de assuntos no mínimo de tempo, tratando uma quantidade deles simultâneamente!
Bem, mas voltando atrás, neste ocupar de tempo para esticar que é também compasso de espera da carta da Maria do Mar, anunciada sem a sua voz ridente e calorosa, mas sim com silêncio e sombras. (...)
Setúbal, 1986.06.04
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Está o S. muito aborrecido porque agora entra todos os dias cerca das 9 horas. Compreende-se o seu aborrecimento: mora em Carcavelos e tem de levantar-se mais cedo. Porquê? Porque ele e outros arquitectos e engenheiros que moram em Lisboa e arredores juntam-se para vir de carro, ora no de um, ora no de outro. Só que agora há uma nova passageira, a L., nova aqui na Câmara, onde quer chegar às nove e não cerca das dez, como sucedia.(...)
De vez em quando tenho de interromper o meu bate-papo para tratar de outros assuntos. Fui há pouco a casa levar uns sapatos que estavam no sapateiro e aproveitei para trazer o rádio que neste momento está tocando. Mas o aparelho está cansado, tem mais de vinte anos de uso e trabalha com um volume de som ondulante.
Hoje é um grande dia. A T., chefe da Divisão de Planeamento Urbanístico, [ao fim de seis meses da prateleira em que o PS me colocou após vencer as eleições autárquicas e me manteve na prática durante 16 anos e sem qualquer tarefa nos últimos 4, salvo picar o ponto à entrada e saída, exepto quando podia optar pela actividade político-sindical, a tempo inteiro ou parcial, cf as necessidades sindicais, para não morrer de estupidez durante esta longa travessia do deserto] já veio dar-me trabalho: fazer o levantamento das escolas primárias do município, sua localização em carta topográfica e respectivas populações. Depois seguir-se-ão creches, infantários e escolas preparatórias e secundárias, de modo a permitir a sua criação à medida das necessidades decorrentes do aumento ou construção em novas urbanizações. Como se isto não bastasse apareceu aqui há pouco o vereador do Urbanismo perguntando-me se já tinha acabado os processos de concurso (do Departamento de Pessoal, de cujos júris sou Presidente) e o que estava fazendo; pelo que lhe disse (com a minha habitual ironia) que estavam práticamente concluídos e que nunca na minha vida tinha estado tão descansado como agora. De modo que o homem lá se foi embora, dizendo que era necessário pôr a Divisão de Planeamento Urbanístico a funcionar, o que não é problema meu, pois aqui não tenho funções de direcção ou de chefia e já não estou para inventar trabalho.
Bem, vou interromper de novo a nossa conversa, para continuar as minhas leituras; presentemente ando às voltas com a "Peregrinação" do Fernão Mendes Pinto e com os "Sermões" do Pe. António Vieira.
Setúbal, 1986.06.05
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Hoje está uma brisa fresca, agitando as árvores além na rua e a roupa desfraldada nos estendais do prédio em fronteiro. A A. come iogurte, enquanto lê um livro sobre legislação urbanística que encomendei e chegou hoje. Está sempre a comer e não sei se é da gravidez adiantada, se sempre foi assim, embora antigamente, quando ia ao Departamento de Pessoal, fosse magrinha.
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A V. desenha fichas para os inquéritos que ela e outros jovens do OTJ irão fazer -levantamentos dos edifícios com interesse municipal e dos estabelecimentos de ensino escolar e pré-escolar. A V. tem 18 anos e tivemos de pô-la aqui no meu Gabinete, pois com o seu ar ingénuo e a vestimenta à punk já trazia os desenhadores ali na sala ao lado muito alvoreados. Enfim ...
Quarta feira vou à Câmara do Barreiro falar com o meu colega R. B., do Planeamento Urbanístico, para "cultivar-me".
(Entretanto chegou uma carta da Maria do Mar, plena de silêncio e sombra, pelo que estas linhas e outras foram arrumadas para um canto)
Setúbal, 1986, Junho
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Ouço o Pedro Barroso, que em 2ª audição me agrada mais. Já arrumei as embambas, li a carta da Susana e vi o desenho do Rui, [vinham a casa do pai e deles, mesmo qd eu não estava, nos intervalos das aulas ou fora delas], pus a roupa suja na barrela, faltando-me lavar a louça do jantar. Sempre comprei um frango assado, que ficará para amanhã, pois descobri no frigorífico um resto de perna de perú e batatas assadas, a que juntei um ovo cozido, sumo de limão e sopa de legumes que a minha querida sogra me veio cá deixar antes de ir-me embora no fim-de-semana.
Enquanto não começa o filme na televisão sentei-me aqui à mesa para conversar um pouco com a Maria do Mar,, deste modo imperfeito que é não vermos nem ouvirmos o nosso interlocutor. Estou cansado, possívelmente por causa do calor e da constipação Pus no meu "escritório" o bloco que ela me ofereceu mai-lo o seu conselho: "Sorria sempre", embora tenha decidido escrever-lhe à máquina para poupar-lhe o "martírio" da decifração dos meus hieroglifos.
Gostei muito de estar com ela, do seu sorriso lindo, embora levemente trocista, do seu ar airoso, de senti-la junto a mim! (..)
Setúbal, 1986.07.23
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O sol já desapareceu e dele há apenas no horizonte, debruando as colinas, uma faixa vermelho-alaranjado. Ali á direita, a estrada para Porto Salvo, polvilhada de casario que vai substituindo os campos onde ainda se pratica a agricultura, agora secos. Ao longe um cão ladra e lá do fundo da casa vem o barulho da televisão. O mundo parece de brinquedo, assim, visto dum nono andar.
Passei a manhã lendo ou gravando música - desta vez brasileira - para além de ter ajudado a minha tia lavando a louça e na parte das lides domésticas resultantes da minha estadia. À tarde fui com a Susana ver o comércio de Paço de Arcos e passear pelo jardim.
Levantei-me para acender a luz, já necessária neste fim de dia, neste crepúsculo que o meu ânimo "melancoliza". Porque estou triste - porque não dizê-lo? - e não só, como quem está na ressaca duma grande sova e calca os sentimentos e os rios de lágrimas muito bem calcados, para que só apareça uma face impassível e serena.
Tenho esperado pela Maria do Mar muitas vezes - talvez demasiado, talvez equivocado. Tenho esperado as suas notícias, a sua voz, o seu sorriso, a sua companhia, a sua presença e, porque não dizê-lo, a sua ternura. E rio-me (...) de mim. Porque, ao contrário dela, não faço grandes discursos sobre a amizade e a franqueza pessoal, porque são apenas palavras e poeira aqueles que não têm correspondência nos actos. (...)
Olho para a bonita caneta que ela me deu e que os meus colegas elogiam e alguns gostariam de ter. (...)
A mim o que me interessa são os vivos e a solidariedade ou o gesto que se não recusa, a liberdade que conseguimos fazer nascer nesta teia de constrangimentos e de embaraços.
(...) Olho novamente pela janela e o céu é agora azul escuro, com um leve debrum alaranjado no horizonte. Piscando, um avião passa além, enquanto lá em baixo fieiras de luzes assinalam as estradas, as casas e os automóveis.
Imagino-a lendo esta carta e dizendo ou comentando - "que bem escreve o meu amigo ! " ou "que coisas bonitas ele diz !" ou algo semelhante. E dir-me-à pelo telefone - se eu lhe telefonar - que gostou de receber as minhas cartas, que as guardará não sei onde para ler quando for velhinha.(...)
Não tenho medo do futuro e do passado guardo a experiência, boa ou má, não para fechar-me em casa, paralizado, mas como orientação na estrada da vida breve para a imensidão do que há para viver e fazer. Mas nem todos são assim !
Acreditei na Maria do Mar, mas talvez me tenha enganado. Todos são meus iguais, todos têm virtudes e defeitos, todos nos completamos uns aos outros. Mas não mendigo amizades nem gosto de sentir-me escorraçado. Gosto dela e tenho pena de não estar com ela. (...) (Mas) não vivo de amizades e de amores platónicos, entendendo que a "masturbação" é um muito pobre sucedâneo para a vida e para o amor.(...)
A continuar assim um dia deixarei de escrever-lhe, telefonar-lhe ou procurá-la. Hoje escrevo-lhe isto e digo-lhe que tenho pena que tal venha a suceder. Mas há jogos que não sei ou não quero jogar, como por exemplo o do gato e do rato.
Estou cansado e triste. Pelo nosso desencontro e porque com ele vem o peso de outros que tive.
E hoje deixo-a deste modo, sem nenhum gesto, partindo simplesmente.
Paço de Arcos, 1986.08.15
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