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Não sabíamos mas talvez já o pressentíssemos, que aquela tarde seria a última da tua vida. Quando cheguei e entrei pelo teu quarto adentro não sorriste como ambos sorriamos, com os olhos e todo o rosto, sorriso como se fora um riso sonoro, à chegada do teu menino: “o teu menino Jesus, chegou”, como eu te dizia na brincadeira. Continuaste a olhar para a parede, os retratos defronte de ti, na secretária, os livros arrumados ao lado esquerdo, a jarra com as flores artficiais que te levara mas que pareciam verdadeiras. Perguntei-te se estavas zangada comigo, olhámo-nos olhos nos olhos, os teus olhos castanhos na altura inexpressivos, depois de te beijar e dar o abracinho forte e prolongado que me pedias sempre e nenhum de nós conseguiu sorrir naquele momento e disseste lentamente que não, que não estavas zangada. Mas sem o sorriso largo e aberto como aquele que me deste daquela vez, dias antes, em que eu jantava com o dono do lar, depois de ter jantado convosco, quando te interpelei: “Que contas, mãe, que estás tão silenciosa ?” e me respondeste, embora com dificuldade: “Saber ouvir é uma grande virtude.”
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Disseste como doutras vezes que não, que não querias que levasse o meu pai para junto de ti, dizendo que ele não tinha conversa, que estava sempre calado ou adormecia. Não é verdade, a verdade é que tu é que não querias falar com ele, que continua a ser um bom e agradável conversador, apesar das falhas de memória que se agravam: nem comigo conseguias falar nos últimos tempos, presa ao passado que não fora o que sonharas.
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O meu pai esqueceu-se de muita coisa, por causa da doença dele, mas quando falava contigo não lhe respondias nem aceitavas os gestos de ternura e carinho que durante quase toda a vida ele nos recusou, porque foi educado na teoria de que os homens não choram nem demonstram afecto. A tua última tarde foi diferente: disse-te, mas ficaste silenciosa, que ele era teu amigo, à maneira dele sempre o fora, que podiam fazer companhia um ao outro, mas nada retorquiste. Foi também uma tarde diferente pk deixaras abrir a persiana do quarto e os raios de sol primaveril alegravam o quarto e batiam-te no rosto e aqueciam-te, como se os estivesses a desfrutar, ao fim de várias semanas.
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Ultimamente estavas sempre com frio, embora o sol batesse toda a tarde na tua janela virada a poente, tal como a nossa casa em Luanda, à beira-mar: por isso querias ultimamente a persiana corrida e não querias ir até ao jardim do lar. Mas desta vez eu e a Lina – uma das funcionárias de quem gostavas levámos-te agasalhada para o exterior onde, embora falasses por monossílabos e com dificuldade – sorriste quando te dei os abracinhos de que gostavas e disse-te que éramos dois esquimós, tocando com o teu nariz no meu. Mas já não conseguias comer sózinha e fui eu ou a empregada - não me lembro se a Lina, se a Manuela - que te ajudámos a jantar e quiseste logo que te fossem deitar e já dormias quando me vim embora, depois duma vez mais ter jogado ao dominó com o meu pai – ganhei sete partidas, ele seis e empatámos duas.
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No dia seguinte fiz questão de ser eu a dizer-lhe que partiras nessa manhã, de levá-lo ao teu quarto para se despedir. Ficou triste, mãe, muito triste, e só dizia que nunca notara que estivesse assim tão doente, que ninguém lho dissera, ele que me perguntava sempre por ti quando não aparecias no refeitório e se estavas bem. Ficou tão alquebrado, tão frágil, tão incrédulo !
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Insistiu que que o fossemos buscar para o funeral, No dia seguinte. Fizemo-lo, mas desde então ele não voltou a falar de ti, mas dissera-nos que não se esqueceria da Maria Emília, nunca ! Sou como ele, mãe, estóico ou calado, e ele mais do que eu, avesso a falar das tristezas, preferindo “esquecê-las”. Desde sempre fui a única pessoa da família que lhe fez frente, que lhe disse "não", delicada mas frontalmente quando dele discordava, mas apesar de todas as justas razões de “queixa” que tinhas dele – e ele de ti - nunca o ouvi dizer mal de ti, sempre se referiu a ti com enorme carinho, elogiando a beleza da “miúda” que para ele continuavas a ser, apesar de terem praticamente a mesma idade, mandando-te sempre um beijo, para ti, quando ainda vivia sozinho; que me não esquecesse, que depois te perguntaria se eu to dera.
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Ouço o concerto do José Afonso no Coliseu enquanto escrevo estas linhas. [o Zé morreu uma semana depois do Zeca, lembras-te ?] Esta tarde dei a volta aos teus papéis que trouxe do lar. Estava entre eles o teu último bloco de notas (já me havias entregue os dois anteriores), com a anotação de que era para mim, mas nunca o lera pois sou avesso a ler os papéis dos outros. A 1ª entrada é de 7 de Junho de 2002 - 6ª feira - e a última de 19 de Agosto de 2011. Assinas pela 1ª vez as notas, como se fossem as últimas. Escreves, a terminar:
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– “E é porque sabemos que é “a chatice de ser velho” que esta crise que nos deprime não pode servir justificação a todos os cortes sociais.
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Velhos são, afinal, os velhos e não os trapos.
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19 de Agosto de 2011
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[segue-se o meu endereço e a tua assinatura e, em adenda],
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(4 horas da tarde na cozinha da casa do filho, Victor Barroso Nogueira da Silva)”
Reparo agora que não, que os escritos no bloco estão intercalados, com folhas "brancas” entre eles, e não em sequência cronológica.
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O último é de 17 de Janeiro de 2012 – 3ª feira
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“Reli o que tinha escrito.
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Fiquei possuída de imensa tristeza !
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O meu único amparo é o Victor. O carinho que sinto por ele não tem preço. Só desejo que tudo lhe corra sempre bem. Não consigo escrever mais do que sinto.
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Meu querido filho Victor. Um beijo de muito Amor. A mãe Maria Emília.
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São 11 horas da noite. Estou na “minha” cadeira da cozinha, aonde me sinto bem. Lá para a 1 hora da noite irei para o quarto deitar-me. O Victor está no escritório. É o dia-a-dia. Maria Emília”
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Eu sabia da tua solidão, mãe, mas sentindo-me ou estando sozinho, não conseguia ou sabia quebrá-la! Dizias-me por vezes que te deixasse ser como eras e eu respondia-te que para tu seres como eras teria eu de deixar de ser como sou. A tua “liberdade” como a entendias tinha como contrapartida a negação da minha!
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É da tua solidão que falas em 22 de Outubro de 2011 – sábado – “Continuo caída num abismo! Falta-me uma bóia para vir ao de cima ! Com o peso desta tempestade é difícil consegui-lo.” Em 13 de Outubro de 2004 escreveras “Estas recordações deixam-me numa tristeza enorme: a morte do Zé Luís continua a ser a minha maior tristeza. Continuo numa tristeza sem solução. (…) Gostaria de escrever algo mais feliz, mas reconheço que não consigo.”
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E em linhas acrescentadas em 28/6/2006 – “Dizer e repetir que o meu grande afecto é o Victor ! É desnecessário ! Tudo lhe desejo do melhor.”
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São duas e vinte da madrugada subsequente à do 25 de Abril. O silêncio enche o prédio e nesta casa ouço apenas o zumbido nos ouvidos e o suave dedilhar ritmado nas teclas ou o baque seco e compassado da barra de espaços.
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A vida é tão frágil e o tempo tão breve para dizermos quanto amamos e somos amigos daqueles que amamos e que estimamos. Mais do que dizer, não menos importante, é mostrá-lo não apenas com palavras mas com os gestos e os actos e a mão no ombro ou no rosto.
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Tal como escrevi uma vez sobre a Maria do Mar, "Tenho esperado as suas notícias, a sua voz, o seu sorriso, a sua companhia, a sua presença e, porque não dizê-lo, a sua ternura. E rio-me (...) de mim. Porque, ao contrário dela, não faço grandes discursos sobre a amizade e a franqueza pessoal, porque são apenas palavras e poeira aqueles que não têm correspondência nos actos. (...) A mim o que me interessa são os vivos e a solidariedade ou o gesto que se não recusa, a liberdade que conseguimos fazer nascer nesta teia de constrangimentos e de embaraços." Ou, muito antes, à Maria Papoila ou Maria Vai com as Outras: «Mas nada disto interessa. Uma presença, um gesto, um sorriso, valem mais que mil palavras. Não entendes isto ?»
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Tu, em parte, sabias isto mãe. E tu, que me lês ?
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