OLHARES SOBRE LUANDA E PORTUGAL
textos, de Francisca Van Dunem e de victor nogueira
1. - FRANCISCA VAN DUNEM
" (...)
P. - Não havia Direito em Luanda. O choque foi muito grande quando chegou a Lisboa?
R. - O choque foi tremendo. Tinha 17 anos. Luanda era uma cidade aberta. Lisboa era uma cidade fechada e sombria nesse tempo. Fechada nos costumes, havia grupos muito fechados, e era uma cidade cinzenta. Eu vinha de Luanda descontraidamente. As pessoas estavam habituadas a falar com toda a gente, a vestir-se sem nenhuma preocupação, não só pelas questões do clima mas por influência da África do Sul e de Moçambique. As raparigas tinham uma forma de vestir mais solta. Eu trazia umas saias que eram curtíssimas para cá, mas eu não sabia. Não tinha a mínima noção.
P. - Era o tempo em que uma mulher era mal vista se ia a um café...
R. - Não. Nessa altura ia-se muito aos cafés. Havia muitos cafés de estudantes. Mas até a isso eu não estava habituada, àquele ambiente escuro em que as pessoas estavam vergadas sobre os livros, a fumar. Naquele tempo fumava-se muito. Era um ambiente um pouco surreal, era como se entrasse de repente num filme fantástico. Eu estava habituada ao ar livre, às esplanadas, ao sol... Essa entrada inicial foi de facto um pouco traumática.
(...)
P.- Ele decidiu regressar e vive hoje em Angola. E o seu irmão João decidiu também regressar a Luanda para o apoiar. Como é que viu essa decisão?
R. - O João era a minha alma gémea. Eu vi com bons olhos o regresso do João. Embora ele tivesse uma carreira bem sucedida na BBC, chefiava a secção de língua portuguesa, sentia nele sempre um espaço de vazio. E o grande espaço de vazio que tinha era Angola. Angola fazia-lhe falta. Tinha necessidade física. E a sua ida acabou por ser associada à ida do Che.
P. - E, apesar de serem almas gémeas, a Francisca não tem esse espaço vazio em relação a Angola?
R. - Eu tenho. Fica sempre. Há sempre um lugar em nós, um bocado em nós que está perdido algures, não no espaço cósmico. Sabemos onde está. Mas nestas coisas tem de haver alguma racionalidade. No jogo entre o espaço do possível, do fazível e do desejável, é preciso encontrar algum realismo. A minha mãe tem 93 anos e vive comigo. Eu tenho uma carreira feita aqui que não me passa pela cabeça abandonar de um dia para o outro. A partir de uma certa altura, foi uma escolha que fiz. E foi uma escolha consciente.
(...)
P. - Acha que morreu de desgosto?
R. - O meu pai morreu de tristeza. Interiorizava muito as coisas. Escrevia muita poesia. Tinha uma vida interior muito intensa. Acabou por ficar num estado de tristeza e de desconsolo que não teve retorno.
(...)"
http://expresso.sapo.pt/politica/2016-06-11-Francisca-Van-Dunem-O-meu-presente-e-o-mais-imprevisivel-de-todos-os-futuros
2. - VICTOR NOGUEIRA
Victor Nogueira
Natal de calor sufocante, com humidade que colava miríades de gotículas de suor ao corpo, com violentas tempestades, aterradoras trovoadas riscadas de raios, era o de Luanda, com a única maravilha da praia. O Natal, esse ainda era mais faz de conta, um pai Natal enfarpelado qd tudo andava em mangas de camisa, a neve da árvore representada com flocos de algodão ou o esguicho dum spray em bisnaga, o presépio com animais que nunca víramos: carneiros, burros, vacas ....
Era um Portugal de faz de conta onde a única maravilha real era o alvoroço de acordar manhã cedo, a 25 de Dezembro, para desembrulhar as prendas, mais dadas pelo Menino Jesus quase despido que propriamente por um Pai Natal encalorado em desapropriadas vestes. E como vivíamos num Portugal de faz de conta que a nós, angolanos por nascimento e vivência, nada nos dizia, o ano lectivo era igual ao de cá, mas com Verão/calor infernal durante 9 meses e as férias grandes na época "fria". Com o Euromilhões bastava-me um clima temperado como o da costa mediterrânica :-)
Dum estrangeiro em Portugal, apátrida, ao contrário do que diz o BI
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Victor Nogueira
Sabes, a 2ª vez que estive em Portugal. tinha 16 anos e desembarquei em pleno inverno, a caminho dum Porto cinzento, frio e chuvoso, mas com, um calor humano nas ruas que já não existe ou já não sinto. A terceira vez tinha 20 anos e. descia em Lisboa a calçada da estrela até económicas, no Quelhas, transido de frio, noite cerrada ainda às 8 da manhã (em Luanda já era dia às 5/6 da manhã), mal conseguindo falar ou escrever, os lábios e os dedos gelados como prisões, admirado pelas nuvens de fumo saindo pelas narinas dos guarda nocturnos, dos pessoas com quem me cruzava, dos burros ja desaparecidos, puxando carroças, num tempo em que os pobres andavam a pé, de bicicleta ou de motorizada, em cidades onde os automóveis eram ainda uma raridade. Deste País de faz de conta e do meu país falo no poema Raizes (http://aoescorrerdapena.blogspot.pt/2014/01/raizes.html)
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Ao fim dum ano em Portugal, tão pequenino, tão mesquinho, tão vistas curtas, o nosso desejo era regressar a África. Mas para mim significava ter de andar para trás, para mudar de alínea e seguir engenharia. Em história falava-se nas largas artérias pombalinas, espantosas ruelas qd as vi pela 1ª vez, face às largas avenidas e ruas de Luanda LOL
o
Victor Nogueira
E só voltei a sentir calor humano e solidariedade nas aldeias do Alentejo, mas não nas vilas e cidades onde vivi (como évoraburgomedieval), nas gentes da Beira Baixa, por onde deambulei, e do Barreiro, onde trabalhei.
Fiquei em Setúbal pk me fazia lembrar Luanda, mas esta é uma cidade individualista, um deserto, um cada um por si mas tudo coscuvilhando, um deserto cercado de maravilhas naturais que a mão do homem ainda não destruiu, ao contrário do que tem feito à cidade
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Victor Nogueira
Ana, ainda existirá o Barreiro de humanidade onde trabalhei e, apesar de tudo, fui feliz ?
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o
Victor Nogueira
E a mim dói-me a ausência da presença das amizades, feitas de bolas de sabão :-)
in http://mundophonographo.blogspot.pt/2010/11/respigado-daqui-e-dali-deste-ou-daquele.html
* Victor Nogueira.
Se me ficasse apenas pela aparência do que os meus olhos vêm, a neblina e o cinzento que envolvem a cidade prenunciariam um dia frio, de chuva miúdinha. Mas o suor goticular que permanece à flor da pele sem que se evapore indica que o resto do dia, para além de nublado, será quente e húmido; uma boa chuvada seguramente que refrescaria o tempo e afastaria este pesado chumbo que me envolve, que em Luanda, na estação quente, prenunciaria grandes e violentas bátegas de água quando não relampejantes e ensurdecedoras trovoadas. Mas este é um país de brandos costumes, de pequenas tempestades, de meias águas e de meias tintas. E depois nem sequer há os quilómetros de areia de praias para mergulhar como na minha terra perdida. Como se não bastassem os ajuntamentos, as praias da costa da Arrábida estão na sua maioria impróprias para consumo devido ao grau de poluição. De modo que ao fim do dia, após o emprego, resta apenas a água fresca do chuveiro. (MMA - 94.06.15)
Uma terra são as pessoas, as casas, as ruas, as memórias, que se vão (re)construindo lentamente ou com um corte radical entre o antes e o agora. sem um presente mais ou menos contínuo. A memória é assim como que um corpo amputado, como o que senti ao voltar a évoraburgomedieval, por um dia, após 20 anos de ausência.É disso que falo também em "Uma outra Luanda - o antes e o agoramente ou o impossível retorno." http://aoescorrerdapena.blogspot.pt/2011/02/uma-outra-luanda-o-antes-e-o-agoramente.html
Em 1986, numa encruzilhada da minha vida, (o meu divórcio, o saneamento político pelo PS - o 1º de vários ocorrera em 1976, post 25 de Novembro) optei por continuar em Setúbal, onde nunca fui feliz, em vez de regressar a Angola ou ir para o Porto, para o Norte, onde vivia e vive a maioria da minha família. Valeu a pena a opção por Setúbal ? Não, não valeu a pena. Mas não podemos refazer o passado, mas apenas tentar que o futuro seja um pouco diferente e menos cinzento e vazio.
Se o Victor de hoje se sentasse defronte do victor dos 20 anos, não se reconheceria embora para lá da pele estejam como se fora um náufrago sem terra no horizonte, como que amortalhados e tentando resistir ao sufoco daquilo que Alda Lara expressa em
PRESENÇA AFRICANA
E apesar de tudo,
Ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a Irmã-Mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto...
A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
Nascendo dos braços das palmeiras...
A do sol bom, mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
Salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...
Sim!, ainda sou a mesma.
A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11!... Rua 11!...)
pelos meninos
de barriga inchada e olhos fundos...
Sem dores nem alegrias,
de tronco nu
e corpo musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...
E eu revendo ainda, e sempre, nela,
aquela
Longa história inconsequente...
Minha terra...
Minha, eternamente...
Terra das acácias, dos dongos,
dos cólios baloiçando, mansamente...
Terra!
Ainda sou a mesma.
Ainda sou a que num canto novo
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu povo!
Benguela,1953 (de Poemas,1966)
Em tempo - Ao contrário de Francisca Van Dunem penso que naquele tempo, pelo menos em Luanda, as influências culturais identitárias eram do Brasil, (então visto como um país multi-racial) da França e dos EUA (estes na altura vistos como uma "democracia", em contraposição a Portugal). Afinal, em 1958, nas eleições presidenciais, o general Humberto Delgado obtivera expressiva votação nos principais centros urbanos, vencendo largamente em Benguela e por 68 votos não conseguindo a maioria em Luanda. (1)
Por outro lado, em Angola e em Luanda não havia segregação racial de apartheid, como em Moçambique e na África do Sul.. Havia sim, segregação social, como aliás em Portugal, com a diferença de que os deserdados distinguiam-se pela cor da pele e pelo preconceito de não poucos "brancos"..
Nas povoações do Alentejo, por exemplo, em terras de latifúndio, havia normalmente duas sociedades recreativas, a dos "ricos" e a dos "pobres", não se misturando umas e outras.
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