* Victor Nogueira
Está pois João Bimbelo sentado no alto da madrugada, uma vez mais a maldita espertina, o negrume da noite para lá da vidraça, os pirilampos refulgindo em terra até ao horizonte, o silêncio rompido apenas pela desagradável zoeira no ouvidos, como se mil cigarras fossem, o bate seco e apressado das batidas no teclado que vão enchendo de signos o alvo monitor defronte de si, o candeeiro lançando luz e sombras sobre a mesa de trabalho. Nada há de novo, nada para lá da vulgaridade em que se encontra.
Passando a mão pelo rosto sente a barba como se fosse lixa, a boca seca, as dores no estômago. João, que é um razoável analista e retratista de pessoas, falha rotundamente e não poucas vezes na correcta leitura e consequente interpretação dos sinais quando é o seu enamoramento por outrem que está em causa.
Que interessa pois falar em Penélopes ou Miquelinas, se nunca serão um para o outro como José e Pilar, se os caminhos de ambos parecem divergentes, ocasional e acidentalmente coincidentes, se durante estes anos todos – um lustro sem lustre nem lustro - como ainda hoje mesmo sucede, é João que fica no cais e Penélope, a do coletinho de lã, que parte para Tróia, para aqui e para ali, num constante cirandar, sem lugar para ele na preenchida agenda dela.
Entra a vã esperança e a realidade, qual prevalecerá ?
Nesta CANTILENA COM MAU GOSTO
.
Quem quer ver a moça bela
Que na rua vai passando,
Florida, com sentinela,
0 meu sossego roubando?
.
0 meu sossego roubando
Sem leveza d'andorinha,
Em má prisão esvoaçando
Não te vendo, Oh! sinházinha!
.
Não te vendo, oh! sinházinha,
Um deserto vai nascendo;
Bem longe da minha vinha
Por ti mal, vou fenecendo,
.
Por ti mal, vou fenecendo
Nesta casa sem calor;
Não quero ficar sofrendo
Como trigal sem verdor,
.
Como trigal sem verdor
Não me deixes tu ficar;
É bom ter calma d'amor
No mar alto a navegar,
.
No mar alto a navegar
Remando àquele porto,
Com roussinol a cantar
Mui cantante, sem desgosto.
.
Mal cantante, com desgosto,
Vou deixando de cantar;
Ficando mal, mal disposto,
Pela companh'a a fugar! (1992)
Será mesmo verdade que O AMOR É BEM QUE SUAVIZA?
A tua presença na minha casa
Enche o ar de color e alegria,
Arte, doce, terna, bela magia;
Assim meu coração ganha outra asa.
Cozinhamos o pão que não esfria,
Brincando, procuramos boa vaza
P'ra espantar a tristeza, que arrasa
Rio, danço, com tua cantoria.
Com tua feição nos vasos pões flor
A tudo dando vida e bom sabor;
Caricio teu corpo, os teus lábios,
Afago teu rosto, aparto as dores;
A rua, plena de sol e louvor,
É verde planura com riso dos sábios.(Setúbal 89.09.05)
Pois a verdade é que
1. Na tua mão
bate estrangulado
o meu coração.
Preso no teu olhar
bate suave
muito leve
com desejo de voar.
Onde o riso e a palavra
que o façam sossegar?
2. Com os meu dedos
sigo lentamente o teu olhar
Uma leve brisa agita o teu rosto
e não sei bem se é um pássaro
ou uma flor
o sorriso que nasce nos teus lábios.
Será noite
ou uma criança a navegar?
3. Nas minhas mãos
o dia escurece
e não ouço nelas
o calor da tua voz a cantar.
Uma gota cai lentamente no
[ horizonte
E outra
E outra
E mais outra ...
E as minhas palavras são
um novelo em busca do mar!
O teu rosto,
o teu rosto é uma linha a navegar
onde loucas gaivotas
querem mergulhar.
Quem as recolherá
como um cristal a brilhar? (1995)
Ou de tudo isto ficará apenas e mais uma vez um rasto amargo e seco de flores esmaecidas, do rapaz à beira do cais de que fala António Reis nos seus Poemas Quotidianos ?
070. HÁ SEMPRE UM RAPAZ TRISTE
Há sempre um rapaz triste
em frente a um barco
(a água é sempre azul
e sempre fresca)
Em que país encontraria
um emprego e esquecimento
em que país encontraria
amor e compreensão
Em que país
sentiriam
a sua vida e a sua morte
Não respondem as gaivotas
porque voam
Há sempre um rapaz triste
com lágrimas nos olhos
em frente a um barco
António Reis - Poemas Quotidianos, [1957].
Mas que interessa tudo isto, este mero e paupérrimo rosário de palavras desfeitas pelo silêncio do alto da madrugada ? Fecho as palavras, meto-me na mala e prossigo a peregrinação em busca de portos e marés onde não reine esta desolação, este encanto sem canto, desencantado e desencontrado ? Mas que interessa este retorno ao passado se é no presente que se constrói o futuro ?
Meto os papéis ao bolso, amarfanhdos pelos dedos de ambos, de Ulisses e de Penélope. O horizonte, esse daqui a pouco passará do negro ao vermelho e, daqui a umas horas, regressará o negrume para dele surdir novo horizonte vermelho e assim ciclicamente até ao suspiro final.
Palavras!
Palavras! Palavras!
Tudo palavras
as ilhas e os desertos
nós e os rios
as angústias os temores
as alegrias as esperanças as ilusões
as circularidades esferóidemente lineares
porque eu não sou eu sendo eu
e o mar não é uma estrela
nem sei porque escrevi isto
o florir do desencontro
não é um poema
são os dedos batendo nas teclas
é o barulho no silêncio da madrugada
como disseram
digo
e dirão
o cansaço e a mão farpada
no silêncio da noite
ou no ruído
diurno
inautêntico
sem sentido das palavras
mero exercício
tac tac tac tac
e o carreto girando
um espaço
sentado à mesa incómoda
costas direitas
o frio nas pernas
a cabeça dorida
mas que interessa tudo isto?
Sim, mas que interessa tudo isto
FIM ... por enquanto,
por hoje ... FIM!
Évora, 1971.11.23
setúbal, no alto da madrugada em 2017.09.30
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