A Glória do Amarelejense de ontem não acaba na escrita ilegível de um túmulo ou nos recortes difíceis de um brasão, mas transmite-se anos em fora, pela vida que nos deram, pelo campo que nos cultivaram e pelo amor ao trabalho e à família, que neste povo infundiram. O seu valor de soldados, quase todo se vai diluir no holocausto sagrado que a Pátria dedica ao soldado desconhecido. O seu valor incomensurável de portugueses, está na bravura e denodo com que amassaram, com retalhos da própria vida, o pão dos seus filhos...
Quem viajar entre as vilas de Moura e Mourão, encontrá-la-á, a cinco quilómetros depois das Termas dos Ourives, e após a Herdade dos Valhascos, de surpresa, como que intrincheirada por detrás de um outeiro. Ela deixa-se escorregar aqui e além, para a beira de um regato que lhe dá o nome à parte central, espalhando-se por outros outeiros como se quisesse enxugar-se das águas do barranco.
Tendo a paciência de dar um relance de olhos por esta aldeia, poderemos observar logo na Rua da Estrada as casas baixinhas e modestas. Pouca gente se encontra às portas, se for dia de trabalho e bastante gente endomingada pelas ruas, se for dia de festa. A capelinha de Santo António, já envolvida pelas habilitações, e quase desfeita pelos anos, aponta-nos para a frente outra igreja começada há cerca de cento e cinquenta anos e que não chegou a ser concluída. Em frente desta há um largo que chama Praça da Republica. Voltando pela Rua de Santo António, tanto aqui como nas outras ruas, as casas muito limpas e caiadas, são de largos corredores ao centro e com tectos de caniço ou abóbadas. Algumas mulheres mais antigas, de cabeça e rosto embuçadas num xale que lhe cai pelos ombros e a que dão o nome de touca, espreitam curiosas, pelo postigo, quando alguém passa. Se deixarmos para trás a Rua das Eiras, surge em frente a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, ostentando na frontaria uma cruz de ferro e uma oliveira que espontâneamente lhe nasceu nas paredes. Subindo ao terraço, pode deixar-se espraiar a vista pela paisagem que ao longe se estende até perder-se no horizonte.
Para os lados do poente divisam-se a Serra de Portel e a Vila de Moura, onde o céu parece tocar no tom cinzento dos olivais. A Serra do Sobral d'Adiça que se estende também na linha do horizonte, mas mais para o sul, fica a apontar-nos terras de Espanha e os altaneiros picos de Arouche. Para nascente, ergue-se a vila de Barrancos nas serranias fronteiriças, como a atalaia vigilante e para lá das ruínas do Castelo de Noudar. Safara e Santo Aleixo ficam na outra margem do Ardila, ufanas do seu passado histórico. Por ondulações irregulares recortadas de caminhos e barrancos, descem as herdades dos Garrochais, Pedro de Moura e Sesmarias que vão refrescar-se nas águas do Ardila. Um ponto branco que se alveja para lá das tapadas é o Monte de Fornilhos. Os campos da Ordem vêm morrer junto da aldeia. Para o lado das Almas recortam-se courelas e seguem-se as Antas e os Valhascos com suas terras produtivas e arvoredos exuberantes de promessa. Por toda esta área se labuta e se goteja suor na conquista da terra para a vida do homem, e toda ela nos dá um panorama de beleza envolvido em nostalgia e meditação.
Ao observar o casario que se estende à nossa volta notaremos que, pela Rua da Escola e pela Rua da Parreira, a construção dos prédios dá um aspecto bastante citadino às largas artérias dignas de serem cobiçadas por qualquer vila. Este aglomerado, constituindo o centro da Aldeia, vai-se dispersando em tentáculos que se espalham em várias direcções.
Descendo pela Rua das Ferrarias em direcção ao Alto do Bombel, passa-se pelo Largo dos Cascalhais, onde se lêem, nas chaminés de algumas casas, datas que nos indicam a idade respectiva: 1860, 1864, etc.
Para recolher uma vista geral, e de uma beleza digna do pincel de qualquer artista, poder-se-ia subir, aos barros da Ordem, onde se vê a aldeia encostada a um lado do fundo de uma concha suave, cujos bordos são formados por elevações do Baldio, Carapetal, Outeiro das Oliveirinhas e Largo do Terreiro, tendo como escoadouro o Barranco que se espraia pelo Vale dos Juncos.
A torre da Igreja Paroquial e a do Relógio parecem sentinelas em estado de alerta. A Fábrica de Moagens e Geradora Eléctrica eleva-se na sua mole de tom vermelho escuro, já esfumarado pelo tempo. Para o lado norte, sobressai das azinheiras o Monte de Estepa a fazer fundo a este quadro que temos à frente. Voltando ao centro da povoação e subindo à Rua Nova de Barrancos, de pavimento tortuoso, formado de xistos, já gastos pelo rodar dos carros e pela erosão das chuvas, passa-se junto de uma taberna onde se aglomeram homens do campo, acocorados à porta, sobre os calcanhares, enquanto outros de pelico pelas costas, chapéu caído para a nuca, de mãos nos bolsos, meio esbarrigados, ostentam ares de despreocupado desleixo. Na Rua da Parreira buzina por um automóvel que vai ou que vem, abastecendo o comercio local, e por todo o lado se agita a vida e o trabalho deste grande povoado.
Nesta breve passagem, não é possível registar tudo o que a Amareleja representa para os que a conhecem e amam. Teria que ser mais prolongada a estadia e familiar o contacto com a alma do povo, para lhe conhecer os vários matizes que formam o conjunto próprio de pessoas e lugares. Amareleja ao tom dominante da cal branquinha, mantém caracteristicas próprias de cada época do ano, que são fornecidas pela natureza e pela persistencia do homem que moureja.
No verão, ao lado da faina grandiosa da recolha dos cereais, ou dardejada pelas inclemências do sol alentejano, ou aturdida pelo matraquear dos carros de lavoura, voltando das fazendas e courelas, quando laivos sangrentos de poente se esbatem no céu imenso.
Faz lembrar, na Primavera, desenho de traços incertos, feitos por novel artista em magnifico tapete verdejante. No Outono, o pálido amarelo das vinhas e figueiras trespassa a sua beleza ao grão doirado que aos moios se espalha pelos alqueives.
No Inverno há o contraste entre a desolação da natureza tiritante e a fartura que nos olivais e montados se colheu.
De ruas amplas e compridas, cuidadas e limpas nos pontos centrais, tortuosas e barrentas na periferia, possui quintais que são autenticas courelas a abrir seus portados e arramadas para as travessas, por onde sai todas as manhãs a guizalhada das parelhas, levando arados para a lavoura ou moças para a azáfama do campo. Sobre as casas se espalham em filas mais ou menos regulares e que podem atingir dois quilómetros, colunatas de chaminés, desde o tipo mourisco até ao curioso e sem estilo, alinham despreocupadas. Desde o Terreiro ao Bombel, do Montinho à Rua de Moura e do Regato aos Barranquinhos, não há chaminé, alta ou baixa, de rico ou de pobre, que não tenha, à tardinha, anunciado em suas fumarolas um jantar de grãos ou exalado o perfume de umas «presas» de carne de porco rechinadas no espeto.
Em sua beleza própria, que vale muito, ela inspirou o poeta que a cantou assim:
(2) «...Tão branca, tão clara e caiadinha
Oásis nesta terra de epopeia
onde não falta a horta, o trigo e a vinha
e gente afoita ao sol que não receia...»
E, assim, no rolar dos anos, esta valorosa camponesa, dolente, em seus românticos cantares, por noites luarentas de serenata, prosaica e realista no seu diário ganha-pão, indiferente e sofredora nas suas duras provações da vida, vai realizando a história de uma aldeia, a que todos chamam a maior de Portugal.
(2) Joaquim Costa, em Almanaque Alentejano de 1954, pág. 195.
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