Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Natais

* Victor Nogueira

1972 - Um Natal em Beja

Pois eu cheguei a Évora ontem à noite, cerca das 23:30, vindo de Beja, onde estive domingo e segunda, em casa dos tios do Camilo e na companhia de mais dez adultos e umas catorze crianças, do recém‑nascido ao Pedro e à Teresa, os mais velhos com os seus treze anos. Aquilo não era uma casa, era um quartel familiar ... que me "adoptou" por dois dias. Por todas as salas não se viam senão miúdos.

Domingo à tarde, horas antes da consoada, andava o Camilo ás voltas com a árvore de Natal e presépio, com a mania das perfeições e de as coisas serem como ele queria. Tenho a impressão que se não fosse o aparecimento da tia Emília, ou aquilo nem para o ano estaria pronto ou o tio Jacinto terminaria aquilo a grande velocidade, sem preocupações perfeccionistas. Sim, que afinal parecia‑me que o Camilo não queria nem deixava fazer, pedindo mas não aceitando as minhas sugestões. Enfim ... Fosse eu romancista e estes dois dias teriam muito peso na minha renomeada.

O mais interessante foi a tia freirinha, a irmã Maria, que se percebi bem saiu pela primeira vez em 24 anos de convento, e que tentava catequizar as crianças com umas prédicas tais que nem ouvidas! Ah!Ah! Os miúdos é que se divertiam depois nos seus grupos, relatando e comentando as suas havidas conversas particulares, e que eu ouvi porque eles são desinibidos por educação - todos me tratavam por tu e por Victor, que é como eu gosto - e também porque não devo ter cara de polícia. Gosto de miúdos e acho que tenho um certo jeito para estar com eles.

Desta vez o João passou o tempo com o "Vitinhas", subindo‑lhe para o colo, fazendo‑lhe imensas perguntas ou mostrando os brinquedos e o modo como funcionavam, brinquedos que, na sua maioria, ao fim do 2º dia já andavam muito combalidos. Entretive‑me com um automóvel electrificado, com comando à distância, o que permitia manobrá-lo em todas as direcções. (MCG - 1972 NATAL)

Victor Nogueira
Natal de calor sufocante, com humidade que colava miríades de gotículas de suor ao corpo, com violentas tempestades, aterradoras trovoadas riscadas de raios, era o de Luanda, com a única maravilha da praia. O Natal, esse ainda era mais faz de conta, um pai Natal enfarpelado quando tudo andava em mangas de camisa, a neve da árvore representada com flocos de algodão ou o esguicho dum spray em bisnaga, o presépio com animais que nunca víramos: carneiros, burros, vacas ....

Era um Portugal de faz de conta onde a única maravilha real era o alvoroço de acordar manhã cedo, a 25 de Dezembro, para desembrulhar as prendas, mais dadas pelo Menino Jesus quase despido que propriamente por um Pai Natal encalorado em desapropriadas vestes. E como vivíamos num Portugal de faz de conta que a nós, angolanos por nascimento e vivência, nada nos dizia, o ano lectivo era igual ao de cá, mas com Verão/calor infernal durante 9 meses e as férias grandes na época "fria"., o "cacimbo" Com o Euromilhões bastava-me um clima temperado como o da costa mediterrânica :-) Dum estrangeiro em Portugal, apátrida, ao contrário do que diz o BI
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Victor Nogueira
Sabes, a 2ª vez que estive em Portugal. tinha 16 anos e desembarquei em pleno inverno, a caminho dum Porto cinzento, frio e chuvoso, mas com, um calor humano nas ruas que já não existe ou já não sinto. A terceira vez tinha 20 anos e. descia em Lisboa a Calçada da Estrela até Económicas, no Quelhas, transido de frio, noite cerrada ainda às 8 da manhã (em Luanda já era dia às 5/6 da manhã), mal conseguindo falar ou escrever, os lábios e os dedos gelados como prisões, admirado pelas nuvens de fumo saindo pelas narinas dos guarda nocturnos, dos pessoas com quem me cruzava, dos burros ja desaparecidos, puxando carroças, num tempo em que os pobres andavam a pé, de bicicleta ou de motorizada, em cidades onde os automóveis eram ainda uma raridade. Deste País de faz de conta e do meu país falo no poema Raízes
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Ao fim dum ano em Portugal, tão pequenino, tão mesquinho, tão vistas curtas, o nosso desejo era regressar a África. Mas para mim significava ter de andar para trás, para mudar de alínea e seguir engenharia. Em história falava-se nas largas artérias pombalinas, espantosas ruelas qd as vi pela 1ª vez, face às largas avenidas e ruas de Luanda LOL

Victor Nogueira
E só voltei a sentir calor humano e solidariedade nas aldeias do Alentejo, mas não nas vilas e cidades, onde vivi, nas gentes da Beira Baixa, por onde deambulei, e do Barreiro, onde trabalhei. Fiquei em Setúbal porque me fazia lembrar Luanda, mas esta é uma cidade individualista, um deserto, um cada um por si mas tudo coscuvilhando, um deserto cercado de maravilhas naturais que a mão do homem ainda não destruiu, ao contrário do que tem feito à cidade
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Victor Nogueira
Ana, ainda existirá o Barreiro de humanidade onde trabalhei e, apesar de tudo, fui feliz ?

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