1968
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A janela do meu quarto [na Rua de S. João Nepomuceno] tem uma espécie de varandim, para pôr vasos. Um deles tem uma sardinheira, com uma linda flor encarnada; numa janela defronte, duas gaiolas com pássaros cujo melodioso chilrear chega aos meus ouvidos (NSF - 1968.06.01) (1)
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1 - Esta rua situava-se em Santa Isabel, a meio da íngreme encosta que ligava o Largo do Rato a Campo de Ourique. Também aqui, em quarto alugados, se alojavam muitos estudantes. (1998.Maio)
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No Jardim da Estrela corre uma aragem fresca, por vezes desagradável. Está um sol de chuva. Estou sentado numa das mesas da esplanada do jardim, defronte ao lago de águas esverdinhadas onde se reflectem as verdes ramagens das árvores. Dois cisnes pretos, de bico vermelho, vogam nas águas, seguidos por uma ninhada de cisnezitos de penas cinzentas e eriçadas.
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Alguém atirou para a água restos de comida. Peixes vermelhos e pretos, estes mais pequenos, acorrem de todos os lados e disputam-nos.
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Ouve-se o trânsito na Praça da Estrela, as crianças além no parque infantil e, para lá das árvores, o vozear das pessoas aqui na esplanada, pedaços soltos de conversas, o cair da água no lago. Nas áleas passam as pessoas, em grupos ou não. Defronte de mim, na outra margem, vários bancos, alguns ocupados. Naquele, à esquerda, um casal idoso. Ele, contempla quem passa e pensa talvez na vida que já lá vai. Ela, de vestido azul e botas brancas, com casaco de malha preto, faz tricot. Outro velhote que ocupava o extremo do banco levantou-se e foi-se. Estavam, mas já não estão, no banco seguinte, dois homens, um dormindo, outro espreguiçando-se. Uma pomba pousou agora no gradeamento, ao meu alcance, mas já levantou voo. (NSF - 1968.09.01)
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São 12 h 00.m. Estou a escrever sentado numa das mesas dum dos cafés do Rossio, que tem resistido às investidas dos bancos (por quanto tempo, ainda?) mais precisamente o "Nicola", que foi o poiso dum dos nossos maiores colegas: Bocage. Escrevo e simultaneamente vou comendo um "croissant", sorvendo aos poucos um escaldante "garoto" claro (ou "pingo", como se diz lá para o Norte). Nas mesas homens que já não são jovens - pelo menos cronologicamente como eu - encafuados em pesados sobretudos, alguns de chapéu a cabeça, cavaqueiam (sobre quê?), lêem o jornal ou limitam-se a seguir com os olhos, absortos em pensamentos, o fumo dos cigarros. Também estão algumas mulheres (talvez senhoras, mas isso não interessa, somos só homens e mulheres).
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Aquela ali à minha esquerda escreve, não cartas mas, numa agenda ou bloco, notas. Ali a porta gira, gira, gira. Na fonte que se entrevê pela montra, a água jorra, jorra, jorra. Os automóveis passam, passam, passam. E o murmúrio das vozes, o tilintar das louças, a gaveta da caixa, constituem um pano de fundo. Évora morta, chata, entediante, onde estás tu!? (...) [Depois da monotonia de Évora, todo este bulício é reconfortante]. São 14:50. Fui corrido do café pois um "garoto" e um bolo não dão direito a mesa "per omnia saecula, saecolorum"! Especialmente à hora do almoço. (NSF - 1968.12.23)
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Em Económicas as aulas de Geografia Económica Portuguesa estavam sobrelotadas, como aliás sucedia em todas as teóricas, ao menos nos primeiros anos, pelo que muitos alunos e alunas assistiam às mesmas de pé. Numa das aulas do Simões Lopes, apinhada, com alunos sentados e outros em pé, chegou uma aluna que mandava estalo e que se foi chegando para a frente. Vendo isto, cavalheiresco, o Simões pega na sua cadeira e oferece-lha para que se sentasse. Azar dele, que esta retorquiu-lhe agradecendo e acrescentando que havia colegas (rapazes) que tinham chegado primeiro e estavam em pé, devendo por isso oferecer a cadeira a um deles!
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1969
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Ontem o Marcello (desde há dois meses) (1) teve mais uma das suas conversas em família, ao serão. (...) Nunca imaginara um Chefe do Governo tendo conversinhas "divulgadoras". Para a prole. A minha opinião? Palavras leva‑as o vento, quer sopre de Oeste, quer do milenário Oriente. Venham as obras, os factos. Venham eles. Porque só depois é que... nem só de pão vive o homem. E ontem houve muitas e vagas palavras. Por muito sensatas e oportunas que tivessem sido!
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(1) - Anteriormente a ser Presidente do Conselho de Ministros, escrevia‑se simplesmente Marcelo e não Marcello !
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Mas também houve progressos. Da primeira vez perdia‑se no meio dum enorme espaldar dum intimidante cadeirão, nada "familiarizante". Desta feita não; num ambiente de sala de estar, confortavelmente instalado numa poltrona, de perna cruzada, com um sorriso vagamente cansado, em tom benevolente, falou. (NSM - 1969.02.11)
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Dentro de momentos a Praça do Giraldo será cenário duma manifestação [do 10 de Junho] que pretendem grandiosa e durante a qual se enaltecerá essa gloriosa e alegremente sacrificada juventude portuguesa que em terras de África defende a herança dos seus avoengos, numa guerra santa sobre cujos fundamentos se não admitem dúvidas. Entretanto a Universidade de Coimbra está em greve desde há largas semanas, greve de que os jornais não falam, a não ser publicando os diversos e por vezes incoerentes e inverosímeis comunicados das autoridades académicas.
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A música continua a ser monoral. (...) Está uma manhã cheia de sol, contrastando com o pluvioso e cinzento dia de ontem. Pela janela aberta chegam‑me aos ouvidos o chilrear dos pássaros e os discursos transmitidos pelos autofalantes, na cerimónia que se realiza a dois passos daqui, entrecortados por salvas de palmas. (NSF - 1969.06.10)
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1972
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Iniciamos hoje a nossa visita a Lisboa pelo Castelo de S. Jorge, à sombra do qual se foi desenvolvendo a cidade. Note-se que na fotografia o castelo está rodeado de casario, enquanto que por exemplo em Évora as muralhas rodeiam a cidade. Alfama é um bairro muito afamado entre os turistas. É um bairro de ruelas apertadas e tortuosas, que vem do tempo dos visigodos, de gente que trabalha ou vive à custa dos ainda mais miseráveis. A realidade é mais dura que a do fado lisboeta. No canto superior esquerdo pode ver-se o panteão de S. Vicente, local de repouso de algumas figuras gradas da história pátria. (O panteão está na Igreja de Santa Engrácia) a das "obras de Santa Engrácia, que foram intermináveis.
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Por aquelas bandas fica a célebre Feira da Ladra, às 3.ªs e 6ªs, onde ainda não fui. Reparando melhor, pareceme que a indicação da legenda do postal está errada: o casario em primeiro plano parece-me da Mouraria e não de Alfama, que será o que está para lá do castelo. Para os lados do Panteão é outro bairro típico: o da Graça, velho, é certo, mas onde mora gente bem ou com pretensões. (1)
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O Rio ao fundo é mesmo o Tejo (não coube todo na foto). As docas são as do Terreiro do Trigo (à esquerda) e da Marinha (à direita). Mais para a direita ficam a estação Sul e Sueste (barco para o Barreiro, comboio para o Alentejo e Algarve) e o Terreiro do Paço. O castelo tem locais muito bonitos e aprazíveis. (MCG - 1972.08.30) (2)
1 - Na Graça situam-se vilas operárias, como a Vila Sousa (Largo da Graça), a Vila Berta (Rua do Sol à Graça) ou o Bairro Estrela d'Ouro (Rua da Senhora do Monte).
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2 - Estes são bairros que sobreviveram no seu traçado ao terramoto de 1755. Testemunhos de viajantes nos séculos XVII e XVIII e outros referem Lisboa como uma cidade de ruelas estreitas, de íngremes ladeiras, de muita sujidade e miséria, em cujas ruas mal cabiam duas pessoas lado a lado, quanto mais liteiras ou coches. Para isso foi necessário derrubar portas da muralha, troços desta e mesmo casas. Mas a grande revolução foi introduzida pelo Marquês de Pombal com a reconstrução da baixa Lisboeta, em zona plana, a que se seguiu dois séculos mais tarde a abertura das Avenidas da Liberdade e da República e perpendiculares a esta, conhecidas como as avenidas novas. (1998.Maio) .
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Cá estamos novamente para um passeio pela Alfama. O que me chamou a atenção neste postal é a vida que ele contém! Alfama será um bocado isto: as ruas estreitas, as sacadas floridas, as gaiolas penduradas, a roupa estendida à janela, a mercearia com batata nova a 2$00 o kg [1972]. Lá estão também os miúdos que brincam, o homem da pipa (será o aguadeiro ?), a mulher com a criança ao colo, mais pessoas na sombra... E até não falta a torre sineira duma igreja que não identifico! (MCG - 1972.09.13)
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Da Alfama medieval para a Baixa pombalina, eis a rota do nosso passeio. Também gosto desta "vista". Repara que enquanto Alfama é residencial, a Baixa é essencialmente comercial. Uma única semelhança: os candeeiros das iluminação pública [1972]. Anúncios luminosos, automóveis, e ruas mais largas são o contraste (Quando andava na 4ª classe [em Luanda] e ouvia falar nas ruas do Marquês, imaginava-as em largura à medida das de Luanda... que têm o dobro ou o triplo destas!. Ao fundo fica o elevador de Sta. Justa, que separa o Largo do Carmo da Igreja do mesmo nome, cujas ruínas se avistam do lado direito - os dois arcos em ogiva. Esta é uma das igrejas da expressão "Cair o Carmo e a Trindade" (após o terramoto de 1755). (MCG - 1972.09.15)
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1973
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Olho para o Tejo à minha frente, cintilante como prata. Um ferry-boat acostado espera por ninguém, enquanto barcos sulcam o rio e gaivotas esvoaçam sobre ele. O autocarro vai-se enchendo, ouço os passos das pessoas que sobem para o 2º piso, o lugar ao lado do meu é ocupado por uma senhora idosa, de preto. O cobrador diz que já não há mais lugares e dentro em pouco o Tejo ficará para trás.(MCG - 1973.01.02)
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Chegou agora o Guerreiro, mas vai lendo os vespertinos para se pôr em dia. Assisti ontem, como não podia deixar de ser, ao discurso do Marcelo Caetano sobre o Ultramar Português, na sequência dos incidentes verificados em Lisboa na Capela do Rato, após a atitude tomada por um grupo de católicos - chamados progressistas - sobre a paz - e as consequências da guerra colonial. (...) Pois o discurso do 1º Ministro foi atentamente escutado pela audiência ali do Café Alentejo onde vejo o pouco que me interessa na TV. Escutado atentamente mas não reverentemente.
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Um discurso notável pela sua construção, pelo encadeamento (embora falacioso) das ideias e factos, pela sua poesia ("Que bom poder ser moralista...", faz-me lembrar um dos poemas dum dos heterónimos do Fernando Pessoa), pela deturpação dos factos e pela demagogia. Nem o tom nem o tema me surpreenderam. Parece um facto que o Governo Português procura uma solução política para o problema colonial. (MCG - 1973.01.16)
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30 foram as camionetas (fora os automóveis particulares) que de Évora se deslocaram a Lisboa para apoiar o Marcelo [Caetano]. Beja, Santarém, Leiria, Portalegre, enfim, milhares de tipos confluíram para a manifestação do entardecer [em Lisboa]. Pena não autorizarem as contra‑manifestações. (...) O Diogo diz que da Amareleja não terão ido pessoas à manifestação (salvo talvez os da Casa do Povo). Não porque sejam do reviralho, mas porque não se metem nestas coisas (viver não custa..). (MCG - 1973.07.19)
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Neste passeio por Lisboa, vindos do Castelo de S. Jorge para o Rossio, nada como uma paragem para ver Alfama, mais aquela senhora lá em baixo, de janela escancarada, indiferente ao devassar da sua intimidade. (MCG - 1973.09.21)
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Ao entardecer de ontem as ruas da Baixa tinham um cheiro a chuva - um cheiro bom - enquanto as montras ao longo das ruas eram um apelo pelos saldos, principalmente vestuário. (...) Está hoje um calor abafado, sem nada da leveza das semanas anteriores. Prevê-se, segundo os jornais, o racionamento de água em Lisboa. Água que já falta há muito nos concelhos limítrofes de Oeiras, Sintra e Cascais, onde pessoas há que não se podem lavar senão com águas de garrafão, tipo Luso e similares. Isto se não quiserem cheirar a sovaquinho e plantarem uma hortazita na sujidade do corpo. Entretanto a cólera alastra pela Itália e a Companhia das Águas de Lisboa vai informando que lançará mais desinfectante nas águas e, à cautela, a Direcção-Geral de Saúde faz as recomendaçõezinhas da praxe, sem qualquer interesse dada... a falta de água. (MCG - 1973.09.05)
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Ontem sempre fomos à Feira da Ladra. Consegui "convencer" a minha mãe a ir de carro pelas ruas de Alfama, tão estreitinhas, tão cheias de caixotes e pessoas paradas ou sentadas nas soleiras ou conversando num atravancamento e numa plácida indiferença pelos carros e suas buzinas, uma Alfama de ruas tortuosas com escadinhas e becos e roupa estendida das janelas e sacadas, tão cheia de pitoresco... para turista ver, pois quem lá mora... que remédio senão "auguentar", que o dinheiro não chega para os bifes, quanto mais para viver em Alvalade ou no Restelo, ou mesmo nos apartamentos do J.Pimenta, esses onde o inquilino do 2º ouve o inquilino no 7º puxar o autoclismo às duas da manhã, e o vizinho do lado murmurando. "minha coisinha fofa", entre suspiros e ais lascivos e respirações opressas que se vão acalmando num ressonar em dueto assobiado! .
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Quando fomos para o Castelo de S. Jorge, passamos pelo Limoeiro (a cadeia) mas Alfama ficava para o lado contrário. Mas acabámos por dar com a Igreja de S. Vicente de Fora, que eu pensava fosse do séc.XVI / XVII mas descobri hoje ter sido construído pelo... D.Afonso Henriques. Pff! um enganozito, duns quatro ou cinco séculos. Foi o interior modificado no séc.XVI.. Um engano desculpável. (1) Começando naquela Igreja e estendendo-se quase até ao Rio, passando ao lado da Igreja de Santa Engrácia, Panteão Nacional, estende-se a Feira da Ladra, onde se encontra um pouco de tudo. (...) (1973.09.23)
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1 - Afinal o engano tinha razão de ser. O templo primitivo fora construído por D. Afonso Henriques no chão onde haviam acampado as suas tropas na altura da conquista do Castelo aos Mouros. Mas este templo foi arrazado e no seu local Filipe II de Castela mandou edificar uma nova e sumptuosa igreja e convento anexo, nos finais do século XVI. (1998.Maio)
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O encontro com o Luís Filipe era no Jardim da Gulbenkian - ali ao pé da Praça de Espanha. É um jardim bonito, arrelvado, com recantos encantadores. Por lá deambulámos, vendo as manobras dos peixinhos encarnados no lago (há como que um ribeirinho deslizando por entre o jardim, em pequenas cascatas). Aquele terreno era do Conde de Vilalva, que o doou (?) à [Fundação] Gulbenkian, bem como um dos seus palácios, mais adiante, mas este ao Estado, que nele instalou o Quartel-General. O Conde, [que criou a Fundação Eugénio de Almeida,, em Évora, que subsidia o Instituto dos Jesuítas] deve ser podre de rico; consta-me no Distrito de Évora há uma freguesia que é quase inteiramente propriedade sua. (MCG - 1973.09.23).
Defronte a mim o Tejo refulge como um espelho. (1) Passa uma fragata e há barcos ancorados. O ferry-boat prepara-se para acostar. Passam pessoas ali em baixo na rua e as gaivotas evolucionam sobre o rio. Estou no 2º piso dum autocarro, aguardando que ele parta. Começou a andar. Até já. (...) Almocei com a Emília [Dias]. O almoço no "Isaura", ali na Av.Paris, estava bom e falámos dos nossos velhos companheiros de lides associativas - quantos já se integraram no sistema? Outros continuam a lutar, alguns mesmo à custa da própria liberdade. (MCG - 1973.10.02)
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1 - Será devido a este fulgor que o estuário é conhecido por ... Mar da Palha?
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Escrevo no antigo laboratório da Farmácia [Sanitas, no Largo Luís de Camões], no tempo em que as mezinhas eram manipuladas aqui nas traseiras. São cerca de 17:00 e os empregados tomam cházinho com bolos. (...) Ah! o cházinho é porque a minha tia Esperança faz... 71 anos. (MCG - 1973.10.31) .
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Ontem à noite (1973.10.24), no regresso de Arraiolos, muitos Mercedes a caminho de Évora, onde às 21:30 alentejanos cinzentos de ar sisudo aguardavam ordeiramente o início da sessão de propaganda da ANP[Acção Nacional Popular] Debaixo dos arcos [arcadas], uma fila de homens, com ar humilde e jeito de rebanho descido da camioneta, dirigia‑se para o cinema onde se realizaria a tal sessão.
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A Oposição não comparecerá as eleições no domingo. O Marcelo [Caetano] bater-se-á contra nada. (MCG - 1973.10.25).
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Levanto os olhos e vejo muitos magalas, na sua farda verde oliva. Andam também pelas ruas, aos grupos, espalhafatosos, como quem já tem o seu grão na asa. "Cheira‑me" que haverá dentro em breve mais um contingente para a guerra em África. Alguns escrevem, curvados sobre o papel, a caneta firme na mão, como quem não está habituado a frequentes escrituras. Parecem rapazes muito novinhos; uns conversam, irrequietamente, outros têm um ar absorto, ausente. (MCG - 1973.11.26)
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1974
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Os magalas ainda não embarcaram, continuando a encher ruas e cafés. Cheguei há instantes da tabacaria, onde confirmei um anti-slogan: "Não telefone, vá!" Uma hora, foi o tempo que levei para conseguir uma chamada para Lisboa. (...) A gasolina é quase como agulha em palheiro para encontrá‑la. Está praticamente esgotada em Évora ou Lisboa. P'rá semana há mais! Domingo passado, segundo o Carlos, às 4 da tarde já havia 3 ou 4 carros parados numa bomba aguardando pela meia noite para poderem seguir rumo a Lisboa. No regresso de Portalegre tiveram de juntar‑se‑lhes. (...)
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(... ) E então, que me dizes ao aumento do preço do petróleo e seus derivados? (Lá para Abril deve haver mais. Olarilas!). A velhota dos jornais ali às portas do Arcada já desabafou comigo esta manhã: não haver um raio que os partisse! Há 10 dias encomendara uma garrafa de gás; está cozinhando a lenha. Que só na 3ª feira. "Os patifes, os espertalhões, já sabiam disto e obrigam-me a pagar o gás mais caro!" Como dizia o Carmelo, muito solene e sisudo na sua pose à mesa do café: "Isto está cada vez pior!" (MCG - 1974.01.03)
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Comprei hoje um livro de que o Pedro (...) me falara em tempos: "Le Sexe au Confessionnal", que reproduz uma série (parte de 600 e tal) confissões sobre questões sexuais gravadas por um casal em variadas igrejas de Itália. Entrevistas muito interessantes, reveladoras dum certo tipo de mentalidades. (MCG - 1974.01.08)
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As visitas que hoje fizemos a várias pensões foram muito instrutivas. Algumas não tinham condições, especialmente nos prédios antigos, onde os quartos são na maioria interiores, dando para saguões, tristes, soturnos e deprimentes. Isto já sem falar nas cores horríveis de alguns. Mas não se arranja quarto por menos de 2 000 $ mensais [1973] [a minha mãe tinha acabado de chegar para as férias “graciosas” a que tinham direito os funcionários públicos das colónias – 6 meses de 4 em 4 anos. Ao contrário da minha mãe, o meu pai nunca as gozou de 1944 a 1974, quando no Natal veio umas escassas semanas para rever a família após 30 anos de ausência]
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Já passa da meia noite. Ao regressar hoje do jantar topei com montes de pinheiros às portas das casas, junto ao lixo. As "Festas" [do Natal e Ano Novo] foram-se. (MCG - 1974.01.08)
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Li o princípio e o fim da "Casa da Boneca", de Ibsen. Não tive paciência para ler o meio, pelo que fiquei sem saber como tinha ela (a Nora) arranjado as "massas". Se te lembras, diz me, OK? (MCG - 1974.01.16)
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Comprei sábado passado um livro de Desmond Morris, - "O Casal a Nú", cuja leitura achei interessante. Pretende ser um estudo psicológico dos gestos das pessoas, "desde a amável pancadinha nas costas ... do formal aperto de mão á cópula mais apaixonada". Na sua obra o autor procura interpretar o significado dos gestos humanos, buscando o tal significado nos animais ou na história dos costumes humanos, vendo como a maioria deles, embora frequentemente estilizados, correspondem ou antes, pretendem transmitir uma mensagem, com o seu código de leitura. (MCG - 1974.02.17)
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Hoje foi o Dia da Polícia e está explicado porquê toda a semana têm desfilado pelas ruas da cidade: preparação do grande acontecimento, em que estrearam os capacetes cinzentos com viseira protectora, espingarda de baioneta calada ao ombro, deixando, na esquadra, o escudo protector das pedradas dos manifestantes. 50 000 mil contos teria sido a quantia gasta nos últimos tempos pelo Governo para equipar a polícia. Ah! Ah! Os tempos vão desassossegados! (MCG 1974.03.12)
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O dia hoje está soalheiro. Regressei há pouco a casa; os jornais esgotaram. A RTP noticiou que na madrugada de ontem houve um levantamento militar nas Caldas da Rainha, após uma semana de grande confusão. (...) Segundo a BBC o Movimento das Caldas [16 de MARÇO] pretendia exigir a demissão do Presidente da República [Almirante Américo Tomás ](MCG 1974.03.17)
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Dizia a BBC ontem que prosseguia o chamado julgamento" das 3 Marias (Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa) autoras dum livro chamado "Novas Cartas Portuguesas” sobre problemas da mulher portuguesa, que a acusação pública considera pornográfico e ofensivo da moral e dos bons costumes. Mas uma das testemunhas de defesa, Maria Emília... afirmou que ofensivo da moral e dos bons costumes era o facto duma mulher não poder andar na rua e transportes públicos em Lisboa (e em Évora ?) sem ouvir piropos indecorosos e ser apalpada. Referiu também as vantagens que os homens da classe alta tiram impunemente da sua posição sobre as jovens das classes inferiores. (MCG - 1974.03.21)
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O nome do café não sei. O tempo é de aguaceiros e o ar é cheio de ruídos. Lisboa é um desencanto e as raparigas são muito magras. Nas mesas lado a lado as pessoas sentam-se mas não falam, desconhecidas que são umas das outras. A minha mãe acabou de ler o jornal e diz que esta casa não serve mal. Diz-me para chamar o empregado mas sugiro-lhe que espere pois ainda tenho um guardanapo para escrever. (1) (...) Não gostaria de viver em Lisboa. Perde-se muito tempo pelos caminhos. (...) Esta rua é muito barulhenta, passam muitas ambulâncias. (...) (MCG - 1974.04.02)
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(1) Esta carta foi escrita num guardanapo de papel
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Aquela fotografia do "Cinéfilo": uma jovem sentada num banco, atrai o meu olhar que nele se detém: cara de menina ausente (embrenha em profundos pensamentos?) ambas as mãos segurando a chávena que leva á boca, a aliança na mão direita. No corpo, um roupão entreaberto, deixando ver o seio esquerdo, as calcinhas brancas, as pernas cruzadas ... Uma fotografia erótica, reproduzida talvez em milhares de revistas, vista por milhares de indivíduos, que á noite beijarão ou farão amor com a mulher que não têm ou não lhes agrada ou pretendem impôr áquela imagem e semelhança.
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O livro "O Casal a Nú" é também deste género de leitura mistificadora, que pretende cloroformizar as pessoas. (MCG - 1974.04.06)
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Nunca o meu desencanto por Lisboa foi tão grande. Outrora no outro tempo ... Havia os grandes passeios, os encontros, as idas ao cinema. Era o tempo da disponibilidade do Luís Filipe, da Emília [Dias], do [António] Lampreia, do [Jorge] Zamith, do Martins Pereira, da Luísa Seia, estes [três] de Angola e meus velhos companheiros de Liceu (O Zamith já vinha da escola primária). Mas o tempo casou uns e levou outros e mesmo que ainda os veja, como estão distantes de mim! Passaram todos, e eu fiquei. (MCG - 1974.04.04)
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1 - Mais a malta de Angola e do Colégio Universitário Pio XII (o Jorge Zamith, o Martins Pereira) e do Centro de Estudantes Católicos de Luanda (o Duarte Pousada, o Duarte Pedro e uma moça de Carcavelos, a Luísa Seia).
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Não sei se aprecias literatura humorística. Se assim for, o último livro Unibolso tem interesse: "Aventuras de Tom Sawyer", de Mark Twain. Aqui fica a recomendação. (MCG - 1974.04.10)
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O "Diário de Lisboa", ao domingo, tem vindo a publicar as "Cartas de Soror Mariana"; não me despertou o interesse para ler a primeira, mas resolvi ler as seguintes e gostei. São muito expressivas e embora eu não conceba amores dramáticos àquele ponto, compreendem-se os sentimentos daquela mulher. (MCG - 1974.04.17)
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Com um ar grave e solene o locutor de serviço na Televisão comunica à hora do noticiário que a emissão prossegue com um concerto de Freitas Branco, até que sejam transmitidos os comunicados do Movimento das Forças Armadas O emissor do Rádio Clube Português transmite música portuguesa. Aguardo que retransmitam o comunicado da prisão do Presidente do Conselho de Ministros, refugiado no Quartel da GNR, no Largo do Carmo em Lisboa (...)
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Nas ruas de Évora, durante o dia, a malta sorria‑se, euforicamente, numa euforia um pouco contida. (MCG 1974 ABRIL 25).
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