Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

.

Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

.

Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

terça-feira, 1 de outubro de 2013

(a poesia nas palavras em setembro 09) - dispersos 01

  •  

    1 de Outubro de 2013 às 15:25
    ・ Victor Nogueira

    1972

    Saio de casa na brasa 

    Paço de Arcos  72.09.12  
    Saio de casa na brasa e consigo chegar aqui a tempo de escrever estas linhas e apanhar a tiragem das 12 h. Recebi as tuas cartas ontem (2 cartas e 1 postal !) Puxa! Gostas do postal, gostas? Ora, uma sonhadora realista como ela, gazela campestre, não houvera de gostar destes verdes todos, mais o riacho e as meninas e as árvores e animaizinhos ... Inté ouves os passarinhos chilreando e o rumorejar das águas. Vejam lá! Bem, resolvi ir para Évora no dia 20.  Encontramo‑nos em Beja nesse dia? 

    Até lá saudades e abraços do VM

    Dia de correio

    São 12:30. [Em Paço de Arcos] ouço o portão chiar  e assomo à janela ... e não vejo ninguém (Algum miúdo que entrou e saiu, penso eu). Mas eis que batem com a aldraba na porta. Abro‑a e lá está o carteiro no gesto habitual, mão estendida com as cartas (hoje, apenas carta!) Cumprimentamo‑nos e agradecemos mutuamente. Fecho a porta. Regresso à sala de estar, pego na tesoura para abrir o sobrescrito, que resguarda  as notícias da Celeste.  "Olá, mocinho! Tenho apenas 21 anos dizem‑me (a idade das, de algumas liberdades consentidas) ... " e continuo numa surpresa crescente, como a quem se revela numa faceta até aí ignorada. Todo eu sou uma crescente surpresa estupefacta! Apago o gira‑discos - que transmite canções do Nelson Eddy.

    Estou agradavelmente surpreendido e preciso de concentrar‑me para perceber isto tudo, estas linhas inabituais. Volto ao princípio. Releio com os olhos, com a inteligência, com sofreguidão, com todo o meu ser, para aperceber‑me duma Celeste desconhecida.  Surpreso, não tanto pelo conteúdo, mas pela forma, pela linguagem invulgar (nela). É verdade que há alguns "senãos". (Não me apercebi ainda, p.exemplo, que ela soubesse que existe uma "certa técnica" aprendida, de beijar).  Continuo a ler e, repentinamente, tudo se desmorona, numa enorme decepção. "Não Victor, tens razão, o palavreado não é meu ... "

    Resta‑me pois saber como é a personagem dum conto de [Urbano] Tavares Rodrigues com quem te queres identificar. É uma curiosidade desenganada que fica em mim. (MCG - 1972.09.06)

    Aqui estou no meu quarto

    Aqui estou no meu quarto, buscando para ti as palavras que não encontro, corpo sem imaginação mas irritado e desassossegado pela constipação que me percorre as veias e me enche dum nervoso miudinho. Busco para ti as palavras dos outros, nos livros dos outros, os ponteiros aproximando‑se das nove e trinta, hora da vinda do homem que levará de mim as letras que cadenciadamente vão surgindo no papel branco que já não é só! Busco as palavras e apenas encontro estas, hoje vazio de ti pela tua ausência, ontem pleno pela nossa presença. São vinte e uma e vinte, hora de parar, os livros espalhados pela mesa, o corpo quebrado, a imaginação e a voz quase secas e frias. Daqui desta terra, para ti noutra terra, te abraço e beijo com ternura e amizade, na memória do tempo que fomos juntos. Aqui estou!  (MCG - 1972.09.21)

    1973

    Enquanto a minha mãe arranja o cabelo 

    73.09.06 Lisboa 
    Enquanto a minha mãe arranja o cabelo ali junto ao Ministério [do Ultramar], nós vamos até além abaixo, ver o Museu dos Coches, agora sem outro préstimo que não seja estarem arrumados a um canto para turista ver. Hoje passaremos o dia em Paço de Arcos e amanhã vamos até Évora, para deixar umas coisas e trazer outras.

    Aproveitarei para dar uma saltada ao Instituto para pagar as propinas dos exames e saber do calendário dos mesmos e ter duas conversinhas, uma com o Secretário [Pe.Augusto Silva, s.j.], outra com o Director [Pe. Lúcio Craveiro ?].

    Na varanda das piscinas, em Évora 

    Évora 73.09.07 
    Na varanda das piscinas, em Évora, às 15:30. Está um dia quentemente abafado; nas ruas muitas saudações dos "amigos" e conhecidos que passam. Na boca um sabor amargo e de náusea. Detesto Évora. Pronto. Já disse. Poderei algum dia apreciar a beleza de Évora ? A máquina de dactilografar está já no carro. Daqui a pouco vou até ao Instituto para uma conversinha com o Pe. [Augusto] Silva. A minha mãe escreve um postal ao meu pai - que tal como o Zé ainda não deu sinal de vida - enquanto a Maria Luísa "contempla" a paisagem. Trouxeram agora os cafés. O Manuel Prates está cá a tirar a carta. Saudades de todos. Beijinhos do VM    (MCG)

    Viemos hoje até à Ericeira

    Ericeira  73.09.16 
    Ora viva! Viemos hoje até à Ericeira, povoação de pescadores que os veraneantes descobriram para as suas férias. Ei-los que passam vagarosamente, atravessando as ruas e os cafés, no seu jeito muito burguês. de quem nada tem para fazer. E também os bancos do largo, na conversa, que parece chilreio de pássaros. Aproveito para ir lanchando. A estrada para cá é muito estreita e cheia de curvas; os carros vêm a passo de boi. Eu, vou-me andando, que são horas de regresso a Lisboa. Saudações do VM    (MCG)

    aqui numa azinhaga em Carnide

    Lisboa  73.09.18
    Sentado no "Boguinhas", aqui numa azinhaga em Carnide, caminhos do tempo em que a cidade ainda estava mais para baixo. Aguardo que a minha mãe se "despache" duma visita que foi fazer.

    Todo este fim de semana tenho sentido a tua ausência, com um desejo imenso do nosso carinho e ternura que é quase "loucura". (Ó céus, onde pára a "frieza" dele!) Teria sido bestial que tivesses vindo frequentar o curso. Porque não te inscreveste mesmo fora do prazo? Nada tinhas a perder!

    Devo ir para Évora no princípio da próxima semana. Ainda não sei o mapa dos exames. Da ternura e das palavras nada passou ao papel. Gostaria que não estivesses tão longe de mim. Há um poema qualquer do [Fernando] Pessoa que diz algo como "E eu gosto tanto dela que não sei o que fazer na sua ausência! Beijo-te com muita ternura. VM     (MCG)

     Fartei-me de rir com aquelas histórias do absurdo

    Lisboa  73.09.25 
    Já cá estão as fotografias que tirámos em Montes Claros e junto á camioneta. O colorido é muito bom. O mesmo não diria de alguns fotógrafos! Hoje não saí de casa, salvo para comprar os jornais da tarde. Estive a estudar umas coisas para Doutrinas [Sociais] e a fazer uns telefonemas. Só para o fim da tarde fiz as gravações do Solnado para a minha mãe. Fartei-me de rir com aquelas histórias do absurdo. Entretanto o Pe. [António da] Silva - irmão do secretário [Augusto da Silva]  - escreveu-me comunicando que a monografia fora aceite. Um cartão todo simpático que a Maria Luísa me leu telefonicamente de Paço de Arcos. A propósito, como na 6ª feira é a mudança, nessa noite, na 5ª, já deves escrever-me para Paço de Arcos. OK? Amanhã continuo. Já é quase meia noite. Beijinhos do VM PS - Já foste ao monte [de Vale Vinagre]? Como está o teu pai?    (MCG)

    1974

    Está quase na hora da tiragem do correio

    Paço de Arcos  74.09.18 
    Está quase na hora da tiragem do correio aqui em Paço de Arcos de modo que passei ali pela tabacaria e escolhi este postal para te escrever. Está frio e encontro-me sentado num marco de pedra no passeio, onde está o mercado  defronte ao correio. Isto é uma simples descrição do sítio onde me encontro. As pessoas, os carros passam de regresso a casa e eu quero ver se ainda passo ali pelo "super"mercado. Aqui te deixo beijinhos e ternurinha (enregelada, Ah! Ah! Ah!) do VM Recebi hoje 2 cartas tuas - de 16 e de 17.  XX    (MCG)

    Safa, que o Porto é frio, duma frialdade enregelante

    Safa, que o Porto é frio, duma frialdade enregelante. Estou aqui num café na Rua Formosa, aguardando o pequeno almoço. A casa do meu avô Luís  está superlotada - os meus tios estão lá - e resolvi ficar numa pensão, que só de pensar nela me arrepio. Ali a Pensão Brasil (3 estrelas) já deve ter tido uma certa categoria - no tempo em que as pensões eram uma casa, mas agora está em franca decadê-ncia, porca, suja e desleixada. 100 paus é a  diária dum quarto num quinto andar. Enfim ... O velho, dono da pensão, estava ontem ás voltas com um dedo entalado, enrolado num pano que enchia a casa de vinagre. Aconselhei‑o a pôr o dedo em água quente e hoje lá me foi dizendo que estava melhor. Cheguei ontem á noite, depois duma viagem chata e atribulada.

    Hoje já é 2ª feira. Amanhã regressarei a P.Arcos com os meus tios. Mas continuemos a história de ontem.

    A viagem foi chata porque 6 ½ horas num comboio é demasiado ... para um homem sozinho. Vim ao Porto para representar o ISESE numa Reunião Geral das Direcções Associativas (Movimento Associativo Estudantil). Vínhamos no comboio que saía de Santa Apolónia (Lisboa) ás 15h 17m, mas a malta acabou por mudar a correr para o comboio das 15:10, para ir o maralhal todo junto. Eis senão quando, o comboio já em marcha, dou pela falta da bolsa, com o livro de endereços e a máquina fotográfica. Uma conversa com o revisor fez‑me apear na estação seguinte, para apanhar o primitivo comboio.  

    Mas se a carteira lá ficara, o facto é que alguém a abafara. A esperança não é muita, mas pode ser que alguém a  tenha encontrado na estação (Santa Apolónia) e esteja nos "Achados".Em Aveiro a corrente eléctrica foi abaixo e lá ficou o comboio parado e eu cheio de sede e de fome, a ver que íamos ali passar o resto da noite! Lá para as tantas entrou o "Foguete" na estação, rumo ao Porto. Vai daí, eu e mais alguns expeditos mudámos para ele, e assim consegui viajar confortavelmente, em poltronas estofadas e com aquecimento (1ª classe), conseguindo chegar ao Porto á tabela, i.e, ás 21:30, sem pagar bilhete. (Soube depois que o resto da malta, do outro comboio, só chegou depois das 23:00). Enfim ... 

    No Porto, nova aventura: onde ficar? Pego na lista telefónica, retiro uma série de endereços de pensões e ... nova preocupação. E  então, os preços?!  Pego em mim e venho andando, tentando adivinhar a categoria da pensão - e consequente modicidade do preço - pela fachada. E assim caí naquela espelunca.  (......................................)   (MCG - 1974.09.22)

    1989

    Os dias deste prolongado fim de semana têm estado lindos

    Os dias deste prolongado fim de semana têm estado lindos, soalheiros, convidativos ao passeio e ao prazer de estar com os outros, de estar com Joana Com Sabor a Cravo e Canela, com serenidade e alegria, mesmo contrastando a sua exuberância e à vontade que me encantam (quando não está com a telha) e o meu retraimento, que tantas vezes me incomoda.

    Penso nela, penso em nós desde que nos conhecemos vai para quatro meses. Como sempre mil pensamentos e ordenamentos passam por mim para encontrar as palavras que permitam o nosso entendimento e afastar as sombras que surgem entre nós e que impedem a clareza.

    No gravador o Paulo de Carvalho canta Olá, como vais?, depois de se ter calado de novo a Luísa Basto, cuja voz me comove imenso, ainda mais que a da Nana Mouskouri ou da Joan Baez. Gosto de ouvir o Paulo de Carvalho, mas gosto também de ouvir cantar Joana Com Sabor a Cravo e Canela, como sucede com a canção Vendaval.

    Ás vezes penso que também ela gosta de mim, embora noutras vezes pense que me engane, que talvez esteja a ler mal os sinais contraditórios que nela vejo. Comunicamos com os outros essencialmente com as palavras, pontes ou barreiras, clarificantes ou não. Mas também comunicamos através de outros meios, como os gestos, a postura corporal, a mímica, o vestuário, com chaves  diferentes ou não conforme o contexto em que surgem ou o meio socio-cultural em que nos inserimos  ou de que provimos.

    (…) Gosto muito de vê-la na minha casa, como expresso em textos como  O amor é bem que suaviza ou É bom ter quem suavize nossa vida (…) Gosto de vê-la nesta casa, onde me parece que está á vontade, porque dela conhece todos os cantos e nela se move como peixe na água.

     (…) Apresenta-se-me como mulher independente, sem preconceitos (ou parecendo agir como tal), embora por vezes pense que esconde a sua fragilidade por detrás de muitas máscaras e comportamentos por vezes insólitos, que não passarão de fogos fátuos, pó e areia atrás dos quais se protege. 

    E porque Joana Com Sabor a Cravo e Canela se apresenta como mulher independente mas com actuações contraditórias, fico sem saber como interpretar as suas atitudes para comigo, o significado dos meus convites que aceita ou das suas iniciativas, como definir os seus sentimentos para comigo, que lugar ocupo entre os amigos que tem. (...)

    Quereria falar com ela pessoalmente, esclarecer as situações, mas a hora bela e serena não surge. (...) Terá havido já duas ocasiões, mas a verdade é que a hora do almoço, na esplanada do Esperança, era demasiado curta e uma série de gestos dela lançaram-me na reserva, levando-me a interpretar como trocista o seu sorriso por detrás dos óculos escuros, quando no fundo talvez não passasse dum sorriso de quem se diverte sem maldade, aguardando que o parceiro desembuche a declaração que gostaria (?!) de ouvir, mas que não há meio de aparecer, como não apareceu no café, no "jantar" após o cinema, com o tempo marcado porque o filho dela estaria em casa à espera. (...) Tudo isto se juntando num local não propício, barulhento, cheio de gente, deste modo se quebrando o encanto da alegria dela e risadas de satisfação vendo o Indiana Jones  ou o livrito anotado e por mim comentado que lhe oferecera ! (...) Acordei mal disposto e cansado

    Gostaria de vê-la e de estar com ela, que saíssemos ou viesse a minha casa, de poder telefonar-lhe e ela a mim sem o constrangimento ou impedimentos das horas de serviço, para falar do que de importante ou banal aconteceu, ou simplesmente para dizer-lhe Olá, como estás? , ou que chove ou  faz sol. Mas tudo isto estará terminado ! (Paço de Arcos e Setúbal, 1989.09.24/26)

    1990

     Passei  as férias lá para o Norte

    Está uma tarde soalheira, neste final de verão e aproveito a lazeira para agarrar na "machine" e alinhavar umas linhas na sequência da inesperadamente volumosa missiva  da Musa d'Ante, que consegui traduzir na sua quase totalidade, embora lembrando-me do tempo em que me virava para  a minha secretária e Ihe pedia para decifrar-me o que eu havia escrito, o que ela normalmente conseguia. Só que neste caso o pergaminho é doutrem e a dourada prateleira em que estou nem  a moço de fretes dá direito! Enquanto escrevo aguardo que do INE me atendam, do outro lado da linha, enquanto ouço  uma música estilo cavalgada heróica bachiana.(...)

    Já me atenderam e voltei ao meio do barulho do rádio ali da sala ao lado e a alto ronronar do aparelho de ar condicionado; antes a música heroicamente bachiana! É o meu segunda dia de "trabalho" post-férias e vai-me faltando a paciência para aturar estes dias de nada fazer que já completaram alguns demasiado largos semestres.

    Passei  as férias lá para o Norte, para as bandas do berço da nacionalidade, visitando o castelo de Guimarães; igrejas românicas e citâneas celtibéricas, como Sanfins  e Briteiros. Uma aventura andar a conduzir naquelas estreitas e  sinuosas veredas, mal sinalizadas, com pessoas simpáticas que se  metem no carro para nos indicarem o caminho, quando não nos dizem que é já ali à direita enquanto apontam a esquerda, já  ali a dois quilómetros, que não pertencem ao sistema métrico do contador do Renault 5, que os multiplica sempre por quatro ou cinco. Mas outro factor de aventura resulta de possuírem outro código de estrada: não abrandam nas cruzamentos, mesmo que se apresentem pela esquerda, o STOP não existe, os motociclistas não usam capacete e entram nas curvas a cortar a direito, os peões ficam aparvalhados à beira da passadeira quando paramos para lhes dar passagem, enquanto os automobilistas não facilitam mesmo nada para entrarmos na "corrente".

    Mas aventura também porque assim, deste modo, não há programa que resista, chegando a noite sem o  cumprimento dos objectivos fixados de véspera, na mesa, debruçado sobre o mapa e o guia turístico das preciosidades a visitar ou a vislumbrar. Assim ainda não foi desta que fui ao Gerês, a Trás-os-Montes ou bordejando a margem norte do Rio Douro, para montante.

    Mas o Norte está diferente e poucos troços verdejantes se encontram ao longo dos caminhos ou pelos atalhos. Casas, muitas casas,  sejam ou não "maisons" dos "avec" que irrompem agressivamente na  paisagem, numa fúria de "apagar" o passado, sejam ou não melhoradas as  condições de habitabilídade; os campos e as povoações já  não ostentam aquele equilíbrio entre o "natural" e o humanizado.

    No Mindelo, onde os meus pais herdaram a casa  de verão do meu avô materno, já pouco resta do antigamente, havendo um contraste nítido entre o coração do povoado inicial e as "cogumélicas" casas de grandes ou menos grandes e cuidados jardins que nascem à beira-mar duma praia rochosa e arenosa que cheira a iodo. Das casas  do Zé Povinho, persistem algumas poucas e arruinadas, de granito, que desta feita a máquina fotográfica registou.

    Mas, passado o Verão, o Mindelo e a Póvoa de Varzirn retomam a calma e pasmaceira que os "turistas" quebram com o seu "cosmopolitismo" e juventude. Já em Vila do Conde, onde ainda se mantém o ar antigo e uma ou duas  ruas manuelinas; (com mais janelas e portas do que em Setúbal), o equilíbrio e o sossego mantém-se pelo ano inteiro.

    Eis-me, pois, regressado a Setúbal 

    Eis-me, pois, regressado a Setúbal, onde amanhã começa mais um Festival de Teatro, este homenageando o Mário de Sá Carneiro, mas que não me seduz muito pelo programa apresentado. Outrora sempre vinham cá companhias de todo o país, das consagradas, que nos permitiam ver ou rever as peças durante o ano representadas em Lisboa, Porto e arredores. E assim se vai perdendo o teatro. Mas não só o teatro. Agora foi a vez do Casino Setubalense, últimamente especializado em pornografia, após a fase do kung-fu e dos lacrimejantes filmes indianos, onde uma vez consegui ver "Por Favor Não Me Mordam o Pescoço", do Polanski, por uma daquelas insólitas surpresas proporcionadas pelo exibidor. Segue-se este encerramento ao do Luísa Todi (agora Forum Municipal), ao do Bocage, ao do Grande Salão Recreio do Povo (agora Banco, preservada a fachada) ou ao do Salão da Sociedade Recreativa Perpétua Azeitonense. Consequências do vídeo, embora nada se compare ao envolvimento duma ecrã maior ou menor ou do cavaquear no intervalo,  ritual também já ultrapassado nas salas de bolso que proliferam nos centros comerciais, desaguando os espectadores directamente para os corredores "montrados" e feéricamente coloridos.

    (...) Já o sol e a lua se puseram desde que. as linhas anteriores foram escritas, o que significa que este é um novo dia, oscilando entre o sol quente e o cinzento nublado ameaçador de chuva.

    Estou partido, pois andei a mudar estantes

    Estou partido, pois andei a mudar estantes para se consigo arrumar em novas prateleiras os livros que proliferam como coelhos. Daqui a pouco vou até Lisboa para mais uma  reunião sindical, pelo que não vale a pena ir ali ao arquivo e á secretaria [do Urbanismo] em busca de volumosos e pouco apetitosos processos de obras ou requerimentos de viabilidade para retirar de cada  um duas informações para um inquérito industrial do INE sobre loteamentos industriais. De modo que prossigo o alinhavar de linhas para a Musa d'Ante, os ouvidos massacrados pela agudeza e guincharia da música que em alto som irrompe ali da sala da Manel e da Célia, da qual estou separado apenas por um armário de madeira que não chega ao topo.

    Acabei por não  ir à Festa do Avante, ao  contrário do que programara, pois na véspera do meu regresso ao Sul tive um acidente por ter ido além da chinela. Pus-me a desentupir a canalização com soda cáustica, que espirrou e me mandou sucessivamente para os bancos de urgência dos  Hospitais de Vila do Conde e de S.João, no Porto, sem outras  consequências que não fosse passar uns dias às escuras, de olhos  vendados ou de óculos escuros.

    Como se vê, umas férias  aventurosas, com imprevistos ao virar de algumas esquinas, mas sem o cosmopolitismo  e o internacionalismo das da Musa d'Ante.

    Apreciei o postal da casa do Karlinhos, que no entanto supunha mais escura e mais austera, mais em sintonia com a gravidade do seu porte de filósofo que mudou o mundo.

    Como terá ela resolvido o seu pungente dilema: comprou o anel ou ficou-se pelo "Ata-me" do Almodovar?´Bem, parece que o dia se recompôs e o calor sobrepôs-se às potencialmente  pluviosas núvens cinzentas,

    Esperemos que a Musa dê notícias e avise quando vier  à Pátria, dela, que eu sou cidadão do mundo, embora não tenha passado, na Europa, de Badajoz e de Vila Nueva del Fresno ou Rosal de la Frontera, já não me lembro bem. Lembro-me, sim, que em Badajoz, no tempo da outra senhora. fiquei retido na fronteira, como refém, às ordens da PIDE com outros colegas, por causa do contrabando (de bebidas, roupas  e chocolates), enquanto o prevaricador-mor ia a casa (em Évora) buscar dinheiro para pagar a pesada multa. (Setubal 1990.09.19)

    1993

    Acordei mal disposto e cansado 

    Acordei mal disposto e cansado, o que de resto me sucede desde domingo, tal como antes de férias. Para além disso hoje acordei de madrugada cheio de frio, pelo que resolvi fechar a janela da cozinha. Voltei a acordar mais tarde, continuando com frio até descobrir que a janela do quarto da Susana também estava aberta. De qualquer modo  não se perdeu tudo e assisti ao nascer do sol antes de voltar a deitar-me, acordando tarde. Antigamente e nas férias levantava-me mal acordava. Mas agora não tenho prazer em levantar-me em tempo de trabalho como este que (não) tenho presentemente.

    O primeiro dia de trabalho [no Planeamento Urbanístico] está terminado e parece que as férias foram há muito tempo. O regresso foi como sempre: bacalhoadas para a direita, algumas beijocas para a esquerda, um sucinto relatório das mesmas com perguntas idênticas ao(s) interlocutor(es)  e interrogações sobre as  fotografias de férias. Vá lá  que a arquitecta Nina, que foi ao Brasil ver a família e mostrar a  Mariana, a criancinha que é o enlevo dela como mãe babosa,  não se esqueceu das moedas para a minha colecção.

    Para além disso foi um dia de grande chateação. A minha secretária estava limpa e arrumada, tal como a deixara. Embora tenham deixado de distribuir-me trabalho, a minha categoria profissional dá-me liberdade para apresentar e desenvolver propostas e projectos de trabalho. Mas isto exige um mínimo de meios que não me dão ou retiram., para me cortarem a veleidade de fazer qualquer coisa. Há uns três anos tiraram-me o apoio administrativo e há dois meses o computador.  Sem ovos é difícil fazer omoletes. Ás 17:00 horas, farto da pasmaceira geral, de conversa para encher tempo e sem nada para fazer, disse adeus ao pessoal e fui curtir a minha chateação e desalento para o Jumbo, para comprar fruta, peixe, iogurtes, queijo, manteiga e algumas coisas mais.

    Hoje estou nos meus dias de pedrada. E quando tal acontece aborrece-me estar sózinho. embora não me apeteça estar com qualquer pessoa. Como frequentemente a vizinha Maria apareceu aqui ao fim da tarde, com o filho mais novo, que é um miúdo muito engraçado e palrador, com uma grande amizade  por mim, o que de resto acontece com muitos miúdos. Tenho sido uma espécie de pai e mãe da Maria, que aliás é a única vizinha que se oferece para me ajudar ou que me traz presentes: um bibelot, um queijo, fruta ou uns enchidos da terra, um prato de arroz doce ou um petisco do Alentejo.  Mas hoje eu estava com uma grande chateação de modo que nem os problemas financeiros da  Maria nem a sua simpatia e preocupação pelo meu mutismo e ar fechado me levantaram o moral.  Fui telefonando a outras pessoas, mas nem por isso a neura passou. Pois uma coisa são as amigas e os amigos, os colegas de trabalho, os filhos. Outra, bem diferente, é a namorada, o amante, a companheira, que permite a expressão duma outra parte do nosso ser e a expansão da nossa personalidade.

    Não gosto de estar sózinho e por isso gostava de ter uma namorada em quem pudesse confiar, que estivesse ao alcance da voz e do gesto de amizade e carinho mútuos, que me procurasse, que me acolhesse e que ficasse contente quando a procuro. Uma namorada para quem eu fosse tão importante como   importante ela seria para mim. Porque todas as idades são boas para as pessoas se enamorarem com entusiasmo, serenidade e leveza de coração e não com este desalento. Porque uma coisa é saber com segurança que naquele dia ou naquela hora vou estar ou sair com ela e assim organizar o dia-a-dia, domesticando o desejo de estar com a pessoa de quem gosto. Outra, bem amarga, é a incerteza, a insegurança e  os mal-entendidos relativamente à pessoa de quem gostamos  e que escolhemos de entre todas.

    Há um poema que escrevi uma vez  a propósito de Joana Com Sabor a Cravo e Canela e que de algum modo  exprime esta ideia: 


                Todo o dia esperei por ti
                                 alinhando o tempo em banho-maria
                                 num fervilhar lento e calmo
                                 submergindo a ebulição do meu sentir e pensar
                Todo o dia tratei dos meus assuntos
                                paguei as contas
                                comprei livros
                                passeei pela cidade
                                temperei os bifes e trouxe o gelado
                Todo o dia guardei em mim as mil-palavras
                                expressão do meu sentir que tão bem conheces
                                sem volta na ponta
                                talvez maçadoras
                Todo o dia estive contigo~
                               retraindo o impulso de beijar os teus lábios
                                                           de afagar o teu rosto e cabelos
                Todo o dia refreei a minha impaciência de subir ao Sol e á Lua e cobri-los de estrelas
                Todo o dia estive nas tuas mãos
                                frágil como ave inquieta ou cana agitada pela brisa
                                         sem a fortaleza de saber que me queres
                Todo o dia não permiti entusiasmar-me com a tua vinda
                Todo o dia contei em silêncio os minutos
                                 e as horas passaram lentamente
                                                               até ao teu telefonema
                                                                         à tua voz triste
                                                               às palavras que não dissemos
                                                               à inquietação e desassossego que ficaram em mim
                Todo o dia esperei por ti e dói-me a tua ausência!  [Setúbal, 1993.09.08/09}



    (MMA - Setúbal, 1993.09.08/09)

    inFELICIDADE        

    (...)   Ontem, que já é anteontem, a Maria do Mar falou sobre a felicidade em contraponto a uma pretensa atitude de infelicidade minha. Não me considero infeliz. Vou vivendo, melhor que muita gente, embora não tão desafogadamente como outros ou do modo que eu preferiria. Diferente da infelicidade é o desencanto pela falta de solidariedade e de humanidade crescentes nesta sociedade em que estamos. E desencanto tenho, por vezes muito, por vezes em demasia. O que não significa que não tenha tido momentos de alegria e serenidade. Alguns deles com ela, apesar de tudo. E talvez parvamente e sem razão eupersiga nela a crença ou a esperança de que teria sido (seria) possível ter sido (ser) feliz com ela, como amigo ou como amador e ser amado. Mas isto só teria resposta se outra fosse a nossa relação. A isso, só a convivência límpida e no dia-a-dia teria dado resposta.

    Apesar de tudo acredito que é possível as pessoas serem felizes. Por muito breve que seja a felicidade. Porque entendo que os homens e as mulheres não foram feitos para estarem sózinhos ou viverem solitáriamente. Por isso, na breve passagem nossa por este mundo, é preferível, digamos, um ano de felicidade, mesmo que repartida no tempo, a uma vida inteira com medo de perdê-la ou não alcançá-la.

    Todos temos limitações maiores ou menores, neste ou naquele campo. Preciso é sabermos aprender a viver com as nossas limitações para ultrapassarmos os muros que nos cercam ou querem levantar ou levantamos á nossa volta.

    Quando estudante de Economia em Lisboa, tinha então vinte anos, frequentei um curso intensivo de inglês. A professora, uma jovem inglesa, a Maureen Baltazar [a casa de quem fui algumas vezes e com quem passeei ou fui à praia], era alegre, encantadora e todos nós gostávamos muito dela. Mas entretanto ela resolveu regressar a Inglaterra, já não me lembro se por se ter entretanto separado do marido português. E o surpreendente para mim era o desgosto e a ideia expressa nas palavras duma das empregadas da escola pelo facto da Maureen abalar, creio que definitivamente, dizendo que mais valia não a ter conhecido porque assim não teria o desgosto de perdê-la. E surpreendia-me esta atitude, pelo que então lhe contrapuz que o que era importante era termos conhecido e convivido com a Maureen, porque a recordaríamos sempre com alegria e ao tempo em que tínhamos estado com ela, porque era um tempo que tinha valido a pena ter sido vivido!  (MMA Setúbal, 1993.09.16/19)

    #####################

    O AMOR É UMA COMPANHIA


    É bem, uma companhia, o amor
    Por alguém já não querer andar sózinho,
    Buscando a claridade e o carinho
    P'ra noite e dia terem belo valor.

    De Olimpo a vida ganha outro sabor
    Desde que se encontre o bom caminho
    Do brocado e mui verdejante linho
    Vestindo o mar e o céu de calor.

    A fera guerra o amor já serena
    Fazendo brotar, velha, novas mágoas
    Na sempre distante felicidade.

    Em doce e renovada cantilena
    Por vales e montes partindo fráguas,
    Com belo engenho, arte e qualidade.


    1989.09.03 (2)
    SETUBAL

    É bom ter quem afague nossa  vida,

    É bom ter quem afague nossa  vida,
    Por nós espere e faça companhia,
    Ajudando, sem dor ou gritaria,
    Ambos na cozinha, com sua lida,

    É bem não andar só, em má corrida,
    Ver o cinema e ter cantoria,
    Viajando em paz pelo dia-a-dia,
    Sem pranto nem a  cabeça perdida.

    Mui gostoso é ter uma presença,
    Com pele doce, suave, morena,
    Sonante, sensual, maliciosa,

    Como a da mui linda, bela Princesa,
    Trazendo o sol e a lua, serena,
    Com o canto e o riso duma rosa.

Sem comentários: