Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

terça-feira, 27 de março de 2018

As gracinhas da Susana e do Rui Pedro

Foto de Victor Barroso Nogueira.

* Victor Nogueira


1976

                O "Vitinho" está a crescer de dia para dia. (Da Celeste para FNS - 1976.03.14)

A Celeste lá vai andando, bem como o mini, que deve nascer lá com a força do calor.  (MEB - 1976.06.01)

A Susana lá vai crescendo e engordando. ([1]). A semana passada já pesava 3,200 kg. Não chora muito, mas fá‑lo normalmente a horas inconvenientes, isto é, ente as 24 e as 2 da madrugada. Já tem uma configuração diferente mas não sei com quem é parecida. Ah! Ah! Ah! Dizem que é comigo! Coitadinha da criancinha, bem poderia ter saído mais bonitinha! 

Nós cá vamos com uma nova actividade: o "tratar da Susana" (o nome sugerido pelo tio Zé [Luís] (...) Quando lhe damos as gotas [de Vi‑Dê] faz umas caretas enormes que nos faz rir (E a tomar banho também. Delicia‑se, salvo quando lhe molham a cabeça). O Victor está um pai "baboso" (NSF - 1976.08.30)

A Susana cá vai crescendo. Já tem cara de gente e vai engordando. Agora está bebendo o leite de biberon. Já nos segue com os olhos, desde que estejamos ao pé dela, e de vez em quando vai sorrindo, cada vez com mais frequência. Tem recebido bastantes prendas, mas sucede‑lhe um pouco como aos noivos: qualquer dia não sabe o que há‑de fazer aos "babetes" e aos "baby‑grows" (macacos). (NSF - 1976.05.09)

A Susana tem grandes palrações e de vez em quando berra para lhe irem fazer companhia. Pesa 6,050 kg. (MEB - 1976.11.29)

A D.Maria [avó] e a Susana dormem. A Susana fala muito, embora por enquanto só ela entenda o seu palrar. Nasceu‑lhe um dente e outro está a romper. Agarra as coisas e diverte‑se a tocar o guizo ou a fazer chiar o cão de borracha. Fora isso bebe o leite todo mas faz grandes fitas para comer a papa. (NSF - 1976.12.13)


1977

A Susana está com muitas gracinhas. (NSF - 1977.05.22)



1978

A Susana está para ali amuada pois quer ir para casa da Isabel, nossa vizinha. (MCG - 1978.06.27)


1980

A Susana tosse - tem estado com anginas. Está numa fase de afirmação de si própria e só quer fazer o que muito bem entende. Não sei como lidar com ela! (NSF - 1980.08.28)


1986

Ouço o Pedro Barroso, que em 2ª audição me agrada mais. Já arrumei as embambas, li a carta da Susana e vi o desenho do Rui, pus a roupa suja na barrela, faltando-me lavar a louça do jantar. Sempre comprei um frango assado, que ficará para amanhã, pois descobri no frigorífico um resto de perna de perú e batatas assadas, a que juntei um ovo cozido, sumo de limão e sopa de legumes que a minha querida sogra me veio cá deixar antes de ir-me embora no fim-de-semana. (MMA 1986.07.23)

Passei a manhã lendo ou gravando música - desta vez brasileira - para além de ter ajudado a minha tia lavando a louça e na parte das lides domésticas resultantes da minha estadia. À tarde fui com a Susana ver o comércio de Paço de Arcos e passear pelo jardim.  (MMA 1986.08.15)

Aproveitando a lassidão deste dia, fui dormir depois de almoço, para pôr os sonos em dia e para ganhar alento para logo ver na TV o filme da meia noite. 0 Rui foi brincar para casa do Chico e a Susana foi com a Cinda e demais amigas à festa de Natal da Junta de Freguesia de S. Sebastião. E eu, como não  me apetece sair, por causa do frio mas também por causa desta chuva miudinha que todo o dia tem caído, pus-me a ouvir música no leitor de cassetes que a Susana "ganhou" na Festa de Natal da Câmara; primeiro o UHF e agora o Paulo de Carvalho e a seguir a Gal Costa. É daqueles leitores que tem uns auscultadores e que a malta jovem traz pendurados nas orelhas, na rua ou nalguns empregos. O Rui também ficou encantado com a prenda que Ihe coube, um robot que deita luz por todos os lados e muda de direcção quando choca com os obstáculos.


(...) Posso pois continuar a minha visita á Maria do Mar, enquanto o Rui e a Susana brincam pegados um com o outro, com a exclamação "pai" nos lábios, até que se magoem e gritem a sério, obrigando-me a intervir com bonomia ou zangado, conforme a minha disposição na altura. (MMA 1986.12.14)


1988


Daqui a pouco vou com as criancinhas para Setúbal; na próxima segunda feira entro de férias.

Vim carregado com os álbuns de fotografias desde 75, para identificar ou escolher as que darei ao Rui e à Susana  para os álbuns deles. Foi uma empreitada para esta linda 2ª feira de Agosto.

Misturado com algumas fotografias repetidas encontrei este postal, de quando há dois anos fui acampar com amigos meus [o Manuel Salazar e família] para Lagos, e uma foto tua, que te ofereço. És das minhas amigas aquela de quem eu mais gosto ou com quem prefiro estar ou encontrar-me, mas és também a mais "complicada". Olha, dou-te um beijinho e como não posso estar contigo deixo-te alguns textos do Rui e da Susana. Ontem fiquei contente por estares contente; espero contudo que hoje já não estejas com a "neura" ! (MMA 1988,08.15)

1993

Ontem fui ás compras, arejar o dinheiro. Comprei mais um relógio de parede, muito original, para substituir um outro de estilo mais "barroco", o da sala, que só tem trabalhado quando lhe apetece (talvez por ser "fino" demais) e que tocava doze músicas diferentes, uma a cada hora, dum modo que entoava por toda a casa, irritando a Susana. Para além disso comprei dois CD dos Beatles, o chamado Duplo Álbum Branco, por alguns críticos considerado dos melhores, conjuntamente com o Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, (MMA 1993.08.07)

 Hoje estou  novamente com este enorme casarão por minha conta. A minha mãe esteve a passar uns dias em Setúbal., mas já regressou a Paço de Arcos. Apesar dos nossos "desentendimentos" [entre mim e a minha mãe] a casa ficou vazia, como sucede quando o Rui ([2]) e a Susana se vão embora, especialmente após estadias mais prolongadas. (MMA - 1993.08.10)



Hoje veio visitar-me o Caló, um miúdo que mora aqui no Largo e anda aí pelo prédio a pedir esmola e que asila aqui muitas vezes para jantar e ver filmes de desenhos animados ou banda desenhada. É um miúdo com dez anos, delicado e simpático (mas também com a escola da vida), muito franzino e parecendo por isso mais novo, embora tenha um rosto envelhecido, cujo pai, segundo ele, é pastor. Por vezes, ao fim de semana, aparece arranjado, mas isto não é regra nos restantes dias, talvez porque a madrasta não lhe ligue muito, embora esta não ande mal cuidada, quando por vezes aparece a procurá-lo; no princípio era todo machista, mas agora oferece-se para pôr a mesa, lavar a loiça e regar as plantas. As pessoas escorraçam-no ou não lhe devem dar muita atenção, por ser pobre e pedinte, pelo que ele diz a toda a gente que eu sou o maior amigo dele.

Hoje anda por aí muito feliz e risonho, admirado com as magias do Rui  e para as quais me vem chamar a atenção com frequência.

Nem parece que houve fim de semana. Estou  muito cansado e dormi à tarde (coisa rara), até ser acordado pelo telefonema da Christine, uma colega e amiga  da Susana.  (MMA - 1993.08.15)

É meia-noite e o silêncio da madrugada, que apenas começa, só é perturbado pelo suave ruído das ventoinhas do quarto e do ventilador do computador, para além do matraquear das teclas que permitem a fixação deste texto. Quando paro para pensar ou refazer o que escrevo ouço um leve barulho da televisão que o Rui e a Susana vêm, entremeado com a conversa deles, lá ao fundo na sala. (MMA - 1993.08.15)


Finalmente a bagagem está toda ali à porta ou no corredor, aguardando o seu transporte para o velho Renault 5, meu companheiro de longas viagens. Tudo isto teria sido mais rápido se as criancinhas ajudassem, mas entre cada transporte ou arrumação surge sempre uma série na televisão que elas têm de ver ou um livro para o Rui ler !

Se o meu carro fosse de confiança amanhã metia-me auto-estrada do Norte acima, pois não tenho paciência para esperas e transbordos. Assim, tenho de passar por Paço de Arcos, descarregar, comprar bilhetes para o comboio, voltar a carregar o carro, levá-lo no dia seguinte para Santa Apolónia com uma hora de antecedência, secar na estação até à hora da partida, embarcar, desembarcar em S.Bento, esperar pelo descarrego do carro e ala para o Mindelo. Como se vê, uma aventura que se repetirá no regresso, onde espero ficar em Paço de Arcos alguns dias, em Setembro.  (MMA 193.08.17)

De modo que me sentei aqui no quarto do meu tio José João para ocupar o tempo a escrever  enquanto ele assiste a um desafio de futebol transmitido pela TV; a minha tia Maria Luísa lá ao fundo, na sala, assiste a outro programa com a Alexandrina, a viúva do meu avô Zé Luís. Quanto ao Rui e à Susana foram para a cozinha especar-se frente a um terceiro televisor, para ver um filme com o Robert De Niro e o Robert Duvall. Televisores não faltam e é difícil haver guerras por causa dos programas (ainda há um quarto aparelho, que está desligado). A contrapartida é que está cada um silencioso para seu lado, o que tem vantagens ou desvantagens conforme as circunstâncias. 

            
O calor continua e neste fim de semana partirei mesmo para o Norte, pois eu e a Susana queremos estar de volta para poder  assistir à Festa do Avante. De manhã fui cortar o cabelo a um barbeiro já velhote cuja existência desconhecia, ali numa transversal entre a Livraria Danny e o Largo do Mercado. A barbearia foi outrora o Salão Azul, agora decadente, e aplica cortes antigos e preços que são metade dos de outras barbearias. E que lento que é o velhote  na execução da sua tarefa! Porque gosto do trabalho perfeito, explicava-me ele.À tarde o Rui queria ir ao cinema (...) [e] a Susana preferia ver as lojas da Baixa Pombalina, para arejar o dinheiro. Prevaleceu a proposta da Susana, que comprou adereços de artesanato em pele e missangas, tendo oferecido ao maninho uma fina pulseira em cabedal. 

(...) Hoje não choveu, apesar do tempo trovoadoresco, pelo que acabámos na Praça da Figueira cheia de gente, na Esplanada  dos Irmãos Unidos vizinha da Suiça, mas com pouca variedade de comes e bebes. Por lá apareceu um indivíduo, poeta popular, vendendo meia dúzia de poemas  em livro de sua autoria, a quem comprámos um exemplar que dedicou à Susana, depois dele e a minha mãe se terem recitado mútuamente poemas das respectivas autorias. De qualquer modo os dele, em conteúdo, não chegam nem de perto nem de longe aos calcanhares do António Aleixo, algarvio, ou do Calafate, setubalense,  pois quanto ao estilo  são diferentes. (MMA - 1993.08.19)



A Susana, acabada de acordar, veio até aqui perguntar se eu andava a escrever o meu diário, emitindo a douta opinião de que os diários só se escrevem ... ao fim do dia e não a meio da manhã. Quanto ao Rui  apareceu agora dizendo que era um hippie, de tronco nú, vestido com as calças de ganga,  um colete da irmã e as joias artesanais dela ao pescoço e nos braços. É o ai Jesus da Alexandrina, que o trata como o menino da avó, com ternurinhas e cuidados risonhos, coisa a que não está muito habituado. (MMA , 1993.08.20) 

O Rui anda ali no corredor exibindo o seu esqueleto bronzeado como se fosse musculado e atlético, ao murro à irmã, esquecendo‑se que em resultado de brincadriras semelhantes ela anteontem torceu‑lhe o dedo indicador, o que é um grave acidente com repercussões nos seus exercícios de viola e no seu dedilhar do computador. (MMA - 1993.08.20).

O Mindelo é para mim um quartel-general donde parto para as minhas explorações paisagísticas e turísticas. Para o interior e ao longo dos rios dão-se belos passeios, com protestos da Susana, que não aprecia ver pedras e monos. (MMA - 1993.08.21)


Na 2ª feira coube-me a vez de servir de ama-seca ao Rui, pois tive de ir com ele à escola da Belavista, onde pela última vez dei aulas há 12 anos, para mudar para a turma onde ficou a maioria dos colegas que foram transferidos com ele da escola do Aranguez. Na sala onde eu dava Geografia agora é o Conselho Directivo e alguns empregados ainda me reconheceram, o que não deixa de ser agradável. O que não me agrada é ele ficar possivelmente com aulas á tarde e não sabiam ainda se também ao sábado de manhã. Devido á falta de salas de aulas, o turno funciona salvo erro com seis horas seguidas, o que é uma violência.  De resto nesta escola foi a única vez que dei 22 horas de aulas semanalmente, apenas num turno, o da tarde, o que me custou imenso. Felizmente que a meio desse  ano  fui para a Câmara do Barreiro. MMA - 1993.09.15)

O Rui anda todo orgulhoso porque lhe teria aparecido uma borbulha de acne no rosto, sinal, segundo ele, de que já entrou na puberdade. Agora deu-lhe para experimentar penteados a ver qual lhe fica melhor. Já não bastava o orgulho na musculatura! (MMA - 1993.09.16/19)

De manhã passei pelo Jumbo de Alferagide, cheio como sempre, apesar de estarmos a meio do mês. Ao menos no de Setúbal anda-se à vontade, excepto no final dos meses. Mas o de Alferagide tem mais variedade de filmes em vídeo ao meu gosto, que não comprei, enquanto os CD estão mais arrumadinhos.

Como não podia deixar de ser eu e a Susana perdemo-nos na confusão do Jumbo, só a encontrando à minha espera no carro, pois esquecera-se duma nossa velha combinação sobre o ponto de encontro após perdimentos nestes malfadados hipermercados. E lembro-me duma das vezes em que nos perdemos no Jumbo de Setúbal. Farto de andar às voltas, dirigi-me à recepção dizendo que perdera a minha filha e se lhe podiam marcar um ponto de encontro. Ia tudo bem até que a empregada me perguntou a idade da menina. Devidamente informada das suas 16 risonhas primaveras, a empregada foi-me logo dizendo que com tal idade nada feito, pois a desaparecida já era muito crescida para andar perdida, pelo que não podiam satisfazer a minha pretensão. De modo que lá andámos os dois num hiper cheio como ovo, aos encontrões, à procura um do outro, cada um para o seu lado desconhecido, deixando recados a toda a gente conhecida com quem me ia cruzando. Uma aventura  sem qualquer graça!

(...) O Mindelo é para mim um quartel-general donde parto para as minhas explorações paisagísticas e turísticas. Para o interior e ao longo dos rios dão-se belos passeios, com protestos da Susana, que não aprecia ver pedras e monos.
           
E chega por hoje de letras alinhadas em carreirinha umas atrás das outras. (MMA 1993.08.21)

Acordei mal disposto e cansado, o que de resto me sucede desde domingo, tal como antes de férias. Para além disso hoje acordei de madrugada cheio de frio, pelo que resolvi fechar a janela da cozinha. Voltei a acordar mais tarde, continuando com frio até descobrir que a janela do quarto da Susana também estava aberta. De qualquer modo  não se perdeu tudo e assisti ao nascer do sol antes de voltar a deitar-me, acordando tarde. Antigamente e nas férias levantava-me mal acordava. Mas agora não tenho prazer em levantar-me em tempo de trabalho como este que (não) tenho presentemente. (MMA 1993.09.08/09)

O Rui e a Susana vieram para o habitual fim-de-semana quinzenal que passam comigo. Amanhã começam as aulas. Fiquei por Setúbal, fazendo o habitual: arrumar a casa, comprar e ler os jornais, lavar e estender a roupa, comprar víveres na cooperativa, ouvir música. Não me apeteceu ir a Lisboa, embora a minha velha amiga Musa d'Ante, regressada definitivamente do Parlamento Europeu, me tenha convidado para ir conhecer a casa que alugou em Benfica e comer uns hamburgers especiais.

Também não me apeteceu aceitar o convite do Zé e da Madalena, um casal amigo do Seixal, para irmos jantar a casa deles hoje ou para irmos amanhã ao Barreiro ver a pastelaria que em sociedade com uma irmã do Zé abriram nesta cidade. Ando fatigado e não há meio de passar a inflamação nos gorgomilhos que me acompanha desde meados de Agosto e que com a chuvada piorou.

O Rui anda todo orgulhoso porque lhe teria aparecido uma borbulha de acne no rosto, sinal  segundo ele de que já entrou na puberdade. Agora deu-lhe para experimentar penteados a ver qual lhe fica melhor. Já não bastava o orgulho na musculatura! (MMA 1993.09.16/19)

A especialista em bolos é a Susana, mas ultimamente tem-se dedicado mais ás mousses de chocolate, que já deixei de apreciar, não por serem dela, que até tem jeito, mas porque antigamente gostava mais de doçarias.
            
O fim de semana passado, que ameaçava ter sido chuvoso, acabou soalheiro. No domingo á tarde fui com o Rui e a Susana ao Jumbo comprar material escolar para  o caçula depois de termos ido a uma das salas de cinema do centro comercial ver um filme de que te falei anteriormente: Dennis, o Pimentinha, sobre as diabruras duma criancinha traquinas. Embora me tivesse rido nalgumas cenas, achei o filme inferior a qualquer um dos da série Sózinho em Casa, não só porque nestes o miúdo/actor era mais expressivo, mas também porque nestes a história tinha mais consistência. Embora qualquer deles sejam filmes para miúdos cujo principal intérprete é uma criança, são  duma extrema violência sobre os bandidos, adultos, que sofrem autênticos tratos de polé. Mas a verdade é que o Rui e os seus amigos deliram com tais cenas de violência, muito semelhantes ás dos filmes de desenhos animados, sobretudo dos de origem  norte-americana que a televisão passa nos programas infantis.

Foi um fim-de-semana relativamente folgado, pois à Susana deu-lhe o apetite de fazer todas as refeições por sua iniciativa. Quanto ao Rui, como já entrou na adolescência, cozinha as refeições dele quando não gosta do rancho da maralha. Claro que só fecho os olhos ás ementas do Rui para ele próprio porque fins-de-semana não são todos os dias a comer arroz de manteiga e douradinhos ou sandes de atum de conserva!

Hoje tive visitas ao jantar: o Caló. Reparei que também  utiliza muito o Victor quando fala comigo, tal como sucede com a filha da Maria do Mar. Aquele devia ir para diplomata: oferece-se para ajudar-me, pergunta-me pelo Rui, pela Susana e pela minha mãe, elogia a minha comida ... (MMA 1993.09.20) 

Neste fim de semana a Susana não quis sair, a não ser para ir ás compras comigo, e pespegou-se em frente ao televisor ou a ouvir música, para além de se ter encarregado dos almoços e jantares e de aspirar a casa.  O Rui pespegou-se frente ao computador a jogar com o Bruno, um dos filhos da vizinha Estrela,  e desta vez não houve  ensaios de viola porque a não trouxe. Outras vezes fazem um estendal no chão com carros, canhões e soldados simulando grandes, discutidas  e barulhentas batalhas terrestres. (...)

De qualquer modo agora tenho com frequência companhia ao almoço. Com efeito o Rui anda com uma paisite aguda, de que te falei um dia destes ao telefone, pelo que vem até aqui  frequentemente  para almoçar ou quando não tem aulas, pois a Escola da Belavista fica a dois passos. Normalmente traz um colega, nem sempre o mesmo, para almoçar também ou para jogarem no computador. E neste fim de semana resolveu ficar ... até 3ª feira (5 Outubro), embora a Susana tivesse ido embora hoje. De vez em quando chega‑se inesperadamente a mim para beijar-me ou abraçar-me e retribuir-lhe. A Susana é que de vez em quando tem destes ataques de ternurite, mas vindos do Rui é novidade. Sabes, aqui é sempre o mais novo, enquanto que na casa da mãe passou a ser o do meio. Aliás o Jorge é um miúdo precoce, como a Susana, e o Rui ressente-se das habilidades comentadas dos irmãos das extremas. Quando está sózinho comigo é fácil de aturar, mas quando está com a irmã dá-lhe a veneta e aparecem as fitas para ser o centro das atenções.

O Rui agora passa a vida a experimentar penteados, parecendo-me que se fixou na risca ao meio com os cabelos  para os lados, como se usava nos anos 40. Um dia destes rapou o bigode e depois comentava para a irmã que já o sentia crescer quando passava a língua pelo lábio superior!  (MMA - 1993.10.03/04)

1994

Está uma tarde fria e cinzenta. Almoçamos em casa do Zé e da Ana. O Zé e o sr. Caldeira cantaram músicas do Alentejo; o pai da Ana tem uma voz muito bonita. O Rui também abrilhantou o almoço, com a sua viola, que já toca bem. Com os seus truques de magia e cartas, bem poderia começar a pensar em animar as festas de bairro!

A Susana foi dar uma volta; ficou de vir às seis para irmos ao Jumbo comprar a prenda para o César, o filho da Ana e do Zé (de Pias), que hoje fez 3 anos.  Quanto ao Rui, comigo, é mais caseiro e agora anda para ali aos saltos com o Bruno, desalojados que foram do computador, e em animada conversa com a Catia e a Aida, as filhas mais velhas da Ana e dum outro Zé (da Amareleja), com quem vivem. (MMA - 1994.02.06)

Pois é, a Susana chegou ontem aqui a casa positivamente nas nuvens. Estou apaixonada, disse‑me ela. Com aquele ar de êxtase ainda só a tinha visto  quando me sabe interessado por alguém e me pergunta emocionada como vão as coisas ... comigo. (MMA - 1994.02.07)

               



[1]  - Nasceu em Évora a 7 Agosto 1976. Quando rebentaram as águas à Celeste, fomos para o hospital, tal como a Joana Espanca lhe dissera que fizéssemos. Apanhámos o táxi, de malinha na mão. Lá chegados, disseram-nos que ainda era cedo demais, que só voltássemos quando o intervalo das dores fosse de 5 minutos. A pé, lá regressámos à Rua Serpa Pinto. Quando as dores apertavam queria a Celeste ir para o hospital, enquanto eu, de relógio na mão, contando o tempo lhe dizia que o intervalo ainda estava longe dos cinco minutos. Mas, como ela protestasse, lá apanhávamos de novo um táxi, de malinha na mão, regressando a pé, com o mesmo recado. E a cena repetiu-se algumas vezes até que, sendo ao entardecer, os médicos acederam no seu internamento. Contudo a criancinha  só nasceu no dia seguinte, pouco antes da visita. Quando a vi, acabadinha de nascer, toda vermelha, os olhos bogalhudos e a cabeça com a forma duma bola de basebol, fiquei desgostoso, comentando: mas que filha tão feia! Contudo passado algum tempo já estava bonitinha e assim se tem mantido! Falava muito, horas seguidas, sendo também muito teimosa. Como os livros na sala estivessem ao alcance da mão, dizia‑lhe que lhes não mexesse, Como persistisse, batia‑lhe na mão prevaricadora, mas ela, voltada para mim, com a outra, atrás das costas, ia mexendo nos livros. Tencionávamos chamar-lhe Natasha; contudo, no dia em que fui increvê-la para a consulta de pediatria, disseram-me que tinha de fazê-lo com um nome e, como não tivesse a certeza que no registo civil aceitassem o que pretendíamos, dei-lhe o de Susana, que havia sido sugerido pelo meu irmão Zé Luís e me parecia pouco comum. Qual não foi o meu desgosto quando no dia da consulta eram chamadas mais que muitas ... Susana! Estávamos todos enlevados com as gracinhas da recém‑nascida, até que vi um filme feito pelo Zé João tendo como protagonista o João Filipe, filho da Isabel, da mesma idade, e que fazia exactamente as mesmas ... gracinhas. Pelo que caí em mim, ao aperceber-me que em todo o mundo milhares de criancinhas faziam exactamente as mesmas graças perante familiares enlevados que as consideravam únicas!

[2] - O Rui nasceu completamente careca, ao contrário da Susana, sendo menos sociável e risonho. Só aceitava o colo das avós e dos pais, chorando quando algum estranho lhe queria pegar. Habituado a andar com um capote alentejano, por causa do inverno, queria no pino do verão seguinte sair à rua ... de capote, chorando por isso.

in RETRATOS e CARTAS (quase diário)

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