marco do correio 07 - poesia de outrem 01
* Victor Nogueira
Prosseguindo a série "marco do correio" há lugar agora à poesia de outrem partilhada na minha correspondência.
6.
Que foi feito de nós
Ah Clara, nada invejes
todos mais ou menos
ficamos tolerados
e aguardando
receando como tu
o desemprego e a velhice
vendo
crescer
os nossos filhos sem sorrir
António Reis, in “Poemas Quotidianos” (MENS, s/data - anos 70)
III
Este é o local, o dia, o mês e a hora
O jornal ilustrado aberto em vão.
No flanco esquerdo, o medo é uma espora,
fincada, firme, imperiosa Não
espero mais. Porquê esta demora?
Porquê temores, suores? Que vultos são
aqueles além? Quem vive ali? Quem mora
nesta casa sombria? Onde estão
os olhos que espiavam ainda agora?
O medo, a espora, o ansiado coração,
a noite, a longa noite sedutora,
o conchego do amor, a tua mão ...
Era o local, o dia, o mês, a hora .
Cerraram sobre ti os muros da prisão.
(Daniel Filipe)
A mentira que fingem é verdade.
A submissão corrompe
Não nasceram ainda
Poderão nascer mais tarde
tão adultos de aspecto?
(Egipto Gonçalves)
Como se mantém este deserto?
Praças sem vida
sombras nos passeios,
estores corridos nas janelas ...
Poderiam só palavras convencer?
(n/ ident. s/data - anos 70)
Lisboa ...
Alguém diz com lentidão:
"Lisboa, sabes ..."
Eu sei. É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,
algumas rugas finas
a espreitar-lhe os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.
Eu sei. E tu sabias?
Eugénio de Andrade - "Poemas"
(n/ ident s/data)
Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não Ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há arvores; há ideias apenas.
Há cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
(Alberto Caeiro) (MENS s/data)
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marco do correio 08 - poesia de outrem 02
50.
Não é nas mãos
que desespero
As minhas mãos
só trabalham
e adormecem
esfriam
ou arrefecem
Não desmaiam
nem têm rios
Têm ossos
músculos
e sangue
poros também
por onde transpiro
mais nada têm
"Poemas Quotidianos" por António Reis (NSF i971.03.11)
IV
Uma palavra antiga
mais nada.
Eh! amiga, camarada!
Eh! onde quer que o sonho
leve teu corpo tenso, teu sabor
[ campesino
(agridoce) de azedas e medronho,
tua voz - aurora, sol vitorioso, sino.
motivo de cantiga,
anónima e amada
eh amiga, camarada !
(Daniel Filipe, in "O Viajante clandestino")
Como vais? E os teus exames ?
Saudades a todos do VM (LAF 1971.10.06)
Manuel Bandeira – 1939
Versos de Natal
Espelho, amigo verdadeiro,
Tu reflectes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exacto e minucioso,
Obrigado, obrigado!
Mas se fosses mágico,
Penetrarias até ao fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera de Natal
Pensa ainda em por os seus chinelinhos atrás da porta.
Com um abraço do
VM (MNS 1972.05.15)
Do Victor para a C.
Ah! querem uma luz melhor que a do Sol!
Querem prados mais verdes que estes!
Querem flores mais belas do que
estas que vejo!
A mim este Sol, estes prados, esta flores
contentam‑me.
Mas se acaso me descontentam
o que eu quero é um Sol mais sol
que o Sol,
O que eu quero é prados mais prados
que estes prados,
o que eu quero é flores mais flores
que estas flores -
Tudo mais ideal do que é do mesmo [modo e da mesma maneira!
(Alberto Caeiro)
(...)
Corre pelos vagos campos até mim uma [brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não [sou eu; sou feliz (...) [1]
(Alberto Caeiro)
Também eu trago a saudade
nos sentidos
Se dissesse que não era mentira
Também eu perdi um cão
casas
rios
Mas hoje
tenho mulher
amigos
e uma saudade mais real
é que me inspira
(António Reis) (MCG 1972.09.27)
~~~~~~~~~~
[1]
Vai alta no céu a lua da primavera.
Penso em ti e dentro de mim estou completo.
Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.
Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.
(Alberto Caeiro in "o pastor amoroso")
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marco do correio 09 - poesia de outrem 03
Para a Celeste
com amizade e ternura
Os meus lábios, mudos de beijos
Os dedos em gestos de veludo
Desenham sonhos no ar [Florbela Espanca ?]
De uma carta da Celeste para o Victor. Do Victor para a Celeste.
Dentro de mim .... Este estribilho canta qualquer outra oculta praia
do oculto mundo. Qualquer sinal há nele que não sei entender
Dentro de mim, Senhor, dentro de mim quem terá morrido? [1]
(MCG - 1972.09.xx)
~~~~~~~~~~
[1] adolfo casais monteiro - MISTÉRIO LONGÍNQUO
Há dentro de mim um vazio que cresce,
como o crepúsculo comendo a pouco e pouco a terra.
Não sei o que se desmorona cada vez mais depressa
dentro de mim.
Não sei que ondas vão e vêm varrendo este mundo que fui,
alargando cada vez mais o espaço interior para outra coisa,
que não é nada aquela plenitude sonhada
dentro de mim.
De repente estou longe de tudo,
esquecido do sabor das coisas mais amadas,
com náuseas do que mais outrora amei
dentro de mim.
Dentro de mim... Este estribilho canta qualquer oculta praia
de oculto mundo. Qualquer sinal há nele, que não sei entender.
Dentro de mim, Senhor, dentro de mim quem terá morrido?
Vem nestas três palavras um dobre a finados
- dentro de mim, dentro de mim -
sobre alguém que ainda não sei que deixei de ser,
sobre aquele que finjo existir, talvez por piedade
- por mim? por quem?
-Mas o outro,
esse que já sou mesmo sem minha licença,
o outro que a vida pôs dentro de mim sem eu ter dado conta,
o outro, Senhor! - que fará ele de tudo o que não sei abandonar
dentro de mim?
Ao outro - quem o fará vencer
dentro de mim?
Adolfo Casais Monteiro -Poesias Completas
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
NAS ERVAS
Escalar-te lábio a lábio
percorrer-te: eis a cintura,
o lume breve entre as nádegas
e o ventre, o peito, o dorso,
descer aos flancos, enterrar.
Os olhos na pedra fresca
dos teus olhos,
entregar-me poro a poro ao furor da tua boca,
esquecer a mão errante
na festa ou na fresta
aberta à doce penetração
das águas duras,
respirar como quem tropeça
no escuro, gritar
às portas da alegria,
da solidão
porque é terrível
subir assim às hastes da loucura,
do fogo descer à neve,
abandonar-me agora
nas ervas ao orvalho -
a glande leve.
(Eugénio de Andrade)
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À C., com amor
Lisboa, quase rumo a Évora (MCG 1973.01.09)
Serão Palavras Só
Diremos prado bosque
primavera,
e tudo o que dissermos
é só para dizermos
que fomos jovens.
Diremos Mãe amor
um barco
e só diremos
que nada há
para levar ao coração.
Diremos terra ou mar
ou madressilva,
mas sem música no sangue
serão palavras só,
e só palavras, o que diremos.
(Eugénio de Andrade)
em Évora, a 15 Janeiro 73, com um abraço do VM para a Celeste. (MCG 1973.01.15)
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