QUINTA-FEIRA, MARÇO 29, 2007
Por toda a casa soam estalidos, consequência do irrequietismo do Orlando. Não descortino bem qual o gozo daquilo, mas enfim ...
Volto a página e pergunto‑me que mais vou eu escrever? Levanto‑me, dou uma volta pelo quarto, remexo numas quantas coisas e torno a sentar‑me para escrever isto.
Entretanto a D.Vitória regressa, para levantar a bandeja do lanche e despejar o cinzeiro (o João, o Carlos, o Tobias e a Lídia empestaram‑me o quarto com cigarros). Há cinco anos que lido diariamente com a D.Vitória e nunca as nossas relações foram muito cordiais nem estreitas!
Acendo o candeeiro, não porque seja absolutamente necessário, mas num gesto algo inconsciente ou automatizado.
Olho para a minha direita e vejo um enorme calhamaço: "Os Macondes de Moçambique", vol III - "Vida Social e Ritual". Terei de consultar este e os dois primeiros para redigir a monografia de Antropologia Cultural. (MCG - 1973.01.26)
O Orlando faz hoje anos. Deve haver festinha. Reprovou na Escola e anda ouvindo discursos por causa disso há tanto tempo que já estou enjoado (....) A Vicência faz exame depois de amanhã. (...) [O Orlando] deu‑me alguns dos desenhos dele (que eu podia ficar com todos os que quisesse). Vai sendo altura de mudar a decoração do meu quarto. O rapazinho agora pediu‑me trabalho - não tem nada que fazer - de modo que desde sábado que me anda em arrumações aqui no quarto - ordenou‑me revistas, separou‑me jornais e amanhã vou comprar umas folhas de cartão para fazer cadernos para arquivar a papelada e revistas. (MCG - 1973.06.17 B)
Quanto à D. Vitória tem‑me recebido com um sorriso bom. ([1]) O sorriso que não tenho à minha volta nem dentro de mim. O Orlando tem feito grandes estádios no meu quarto. Por causa da máquina de escrever. (MCG - 1973.11.27)
[1] - A nossa relação mútua sempre foi algo distante, talvez por não sermos muito expansivos. Mas a verdade é que a D. Vitória me aturou algumas madurezas e creio que me estimava. Sempre foram seis anos de convivência. Dizia-me ela que um alentejano só dá a sua amizade a alguém apenas depois deste provar merecê-la. E foi no Alentejo que me habituei a usar a palavra amigo, como em Setúbal se utiliza a de vizinho. Visitei-a algumas vezes quando ia a Évora depois de sair de lá, uma delas com o Rui e a Susana, estava ela na loja do irmão, na Rua de Aviz, e telefonei-lhe algumas outras, ficando contente por não esquecê-la. Morreu em 1998 e desse facto soube acidentalmente pela Noémia muito depois, quando me vai dando notícias dos nossos conhecimentos comuns em Évora. A D. Vitória era solteirona, tal como os irmãos que com ela viviam: o sr. Prates e, posteriormente, a D. Joana. Na pensão ficavam sucessivamente os sobrinhos que do Cano vinham para Évora estudar, como o Manuel, a Ermelinda e o Orlando.
Victor Nogueira, in RETRATOS
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