* Victor Nogueira
Em 5 de Abril de 1971 escrevia eu: "Sábado fui com o Jorge ao cinema, ver um filme de desenhos animados com o Asterix. Pois bem, o miúdo pulava e ria se, enfim, era um espectáculo. Gosto dele, só tenho pena ... que não estude. Tem me oferecido rebuçados, uma daquelas bolinhas de plástico que saltam muito e até me chegou a pagar o jornal ! Há dias apareceu-nosno café [Arcada] todo eufórico. Tinha ganho algum dinheiro e então comprou um cinto com uma espada de plástico, postais, maçãs e ... um copo. Enquanto não mostrou a espada a toda a malta sua conhecida não descansou. Queria também que aceitássemos as maçãs dele e os postais. Quem não gosta da brincadeira é a D.Vitória [Prates, minha hospedeira na Rua do Raimundo]. Um novo desenho existe no meu quarto, mas esse foi oferta dum outro miúdo, o Carlos. (MCG - 1971.04.05)
Nas minhas deambulações de hoje encontrei a Lídia e o Jorge. Este andava à procura de dez tostões para o cinema - eu fiz que não percebi a indirecta; informou me que esteve em Beja a trabalhar no circo e à minha observação sobre a sua magreza retorquiu "É da fome que passo." (e que não está em mim remediar) (MCG - 1972.02.23)
Podia falar te do Jorge, que agora anda todo bem vestido - fato cinzento com colete e gravata - , do seu amigo Carlos .- que é moço de recados no Café Arcada e maça as pessoas com os seus préstimos (as gorjetas são a sua única remuneração). Ou do Pedro, que esteve muitos anos no Brasil, que é um tipo expansivo e bom palrador, mas que fala com sotaque brazuca para impressionar (o Jorge desmascarou o no café, com um dos seus comentários de miúdo que não está ainda dentro de certos mecanismos sociais) (...) (MCG - 1972.11.06)
Ah! acabei por não ir ao cinema. À tarde o nosso amigo Jorge veio cravar-me dinheiro para o "Trinitá" (MCG - 1972.12 ?)
O Jorge apareceu ontem pelo café, depois duma longa ausência. Mais velho, já não o miúdo que conhecemos, agora com os ombros curvados, mostrando-nos os calos do trabalho de servente de pedreiro. Gosto dele, mas não encontro nem os gestos nem as palavras que lho digam. ( MCG - 1973.06.10)
Comigo, aqui na mesa encarnada do Arcada, após o jantar, a minha mãe e o Jorge, que trabalha como ajudante de carpinteiro, vencendo uma jorna de 70 $ 00. Em Setúbal ganharia 120 $ 00, mas os pais prendem no aqui no burgo [Évora] (...) O Camilo e o Carlos não apareceram por aqui. O Jorge está aqui com uma conversa muito adulta, apesar dos seus dezasseis anos. Ele agora está atrapalhado. Por causa da minha mãe passou a tratar me por "Senhor Victor" e por "vocemecê" [abandonando o "Victor" e o "tu"] (...) Perguntei ao Jorge se queria escrever qualquer coisa [para ti, nesta carta], mas ele não quer, pois diz que parece mal a letra dele ao pé da minha de doutor. (1 ) (MCG - 1973.12.06)
1 - Ao arrumar papelada, encontrei um texto que ele dactilografara na minha velha Olivetti Lettera 2000: a primeira parte é um conto, escrito com piada embora com muitos erros ortográficos. É demasiado longo para esta nota de rodapé. Na segunda parte escreveu: "1. - O senhore Vitor Nogeira 'e muito meu amigo e axo que ele tambem gosta de mim eu pelo menos gosto dele as coizas que eo gosto de fazera! gosto de escrever a maquina gosto de houvir discos gosto de ler livros 2. - (gosto muito dos meus pais foram eles que me quriaram;" Ainda hoje me comovo com este escrito, especialmente com a segunda parte.
Sem comentários:
Enviar um comentário