Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

sexta-feira, 6 de julho de 2012

em évoraburgomedieval - 1974 (Março) por Victor Nogueira


  a Quinta-feira, 5 de Julho de 2012 às 20:18 ·
* Victor Nogueira

Aqui se fala do isese, onde a contestação estudantil crescia, do julgamento das 3 Marias, da guerra colonial portuguesa, das catilinárias de Cazal Ribeiro, ultramontano Deputado à Assembleia Nacional,  e do golpe das Caldas a 16 de Março. A Igreja de Moçambique condenava a guerra colonial  e os massacres  de populações civis, perpretados pelas Forças Armadas em Moçambique, que aliás se verificavam também em Angola. E não esquecendo o Festival da Canção, em que foi vencedora uma canção que havia de ser uma das senhas em 25 de Abril - E depois do Adeus de José Niza interpretada por Paulo de Carvalho, menos contundente que a de 1973, de Ary dos Santos, interpretada por Fernando Tordo: Tourada

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Tivemos hoje a primeira aula com o Vaz Pato [Técnicas de Investigação Social II] (...) a sala estava um gelo e um gelo estará pois não há gás. Como se ainda não bastasse, o Pe. Silva, Secretário, [está]  sempre a cortar no aquecimento e na luz das salas de aula. (MCG - 1974.03.01)

Tencionava ir até ao cinema ver um filme sobre o nazismo. O de ontem foi um policial, com um argumento mais que estafado; mas não era mauzito e tinha suspense: ainda dei uns pulitos na cadeira. Ah! Ah! Ah! Mas ... hoje não há cinema em Évora. Que terá sucedido, sim, que terá sucedido para que o "Salão Central" não dê sessão a meio da semana ? Uma ida ao café ao fim da tarde e ... EUREKA! Hoje é dia de festival [da Canção] Como quando há" grande" futebol, o cinema fecha. Toda a minha gente fala no Festival. Vais? Não vais ? Queres ir para minha casa ? enfim, tudo se prepara para esquecer amarguras e trabalhos, quase tudo se prepara para grudar os olhos ao rectângulo da TV, durante a noite. 

E eu? Eu fico sem cinema. Olha, é a maneira de ver umas coisas de demografia e de tentar deitar-me cedo, que ontem estive a matraquear na máquina até às tantas da matina (MCG 1974.03.07)

Houve ontem fita na Assembleia Nacional: o deputado Mota Amaral fez um discurso a defender as teses de Spínola (federação de Portugal com as colónias), mas as interrupções de extrema-direita teriam sido de tal ordem que o Presidente da Assembleia o aconselhou a não permitir mais interrupções, que estavam a assumir um tom indigno da importância do assunto. Vá lá, parece que o senhor Cazal Ribeiro e sua camarilha não chegaram a vias de facto e tentativa de agressão física como no ano passado, durante uma intervenção do então deputado Miller Guerra que advogava a livre discussão do problema chamado ultramarino.

Entretanto, no Instituto, o professor de Previdência Social ameaçou instaurar um processo disciplinar ao 2º ano, cujos delegados [dos cursos] foram chamados à Direcção (nada de cuidado, parece que só criancices). Por seu turno, no 1º ano, o curso em peso resolveu começar a aplaudir as "bacoradas" do Rola em Direito Natural e o Pires Lopes tem crises de nervos nas aulas de Doutrinas Sociais. Quanto ao Borges, insurgiu-se contra os alunos do 1º ano de Sociologia, por não saberem determinantes (processo de cálculo matemático). Instado pelos alunos, meteu os pés pelas mãos - como já vem sendo hábito - e teve também uma crise de nervos. No 5º ano de Economia, o professor de Investimentos é um senhor muito simpático que terminou a história da sua vida mai-lo o curso - de que não deu  quase nada. No 5º ano de Sociologia, onde anda cá o rapaz (contrariado, se bem te lembras) ... bem  ... o Cónim deixa-nos montes de trabalho [Estudos da população II] e a Rita anda desnorteada porque queria trabalhar com o Guerreiro mas ele deu-lhe com os pés e, como ela se armava em parva, não pode vir [não quero que venha] trabalhar comigo - nem eu estaria disposto a que S.Exa gozasse os louros do meu trabalho. Estude, que a cabeça não é só para penteados e coscuvilhice. Enfim ... (MCG - 1974.03.08) (!)

(1) - A Rita tinha notas altas, especialmente nas cadeiras de encornanço, mas era incapaz, i.e.  não sabia, aplicar os conhecimentos.

Só com muito custo arranjei aqui esta mesa,  no cantinho habitual do Arcada, cheio de gente, barulho e fumo. (...)

Entregámos o trabalho da Siemens ao Pe. [Augusto da] Silva. Vamos ver qual será amanhã a crítica de S.Exa. Estive a trabalhar até às 4 da matina, pois numa semana o Queiroga nada fez do que deveria ter feito, salvo quadros muito lindos eternamente repassados a limpo. Quanto aos gráficos e textos, nada, salvo a introdução. Enfim ...

Hoje foi o Dia da Polícia e está explicado porquê toda a semana têm desfilado pelas ruas da cidade: preparação do grande acontecimento,  em que estrearam os capacetes cinzentos com viseira protectora, espingarda de baioneta calada ao ombro, deixando, na esquadra, o escudo protector das pedradas dos manifestantes. 50 000 mil contos teria sido a quantia gasta nos últimos tempos pelo Governo para equipar a polícia. Ah! Ah! Os tempos vão desassossegados!

Então, como vai esse teu valor? E a "Maria"? As pessoas são aquilo que o meio provoca delas. A "Maria" enveredou pela provocação suicida; o Padre Zé  - e outros – pela segurança do conformismo. O resto, de amizade e solidariedade, é, para além de certo limite, teoria. Duvidas ? (MCG 1974.03.12)

Estou metido numa alhada. A brincar disse que se arranjassem 80 assinaturas apoiando-me e dando-me plenos poderes, aceitaria a Direcção da Associação. Levaram-me a sério. Amanhã há uma reunião para preparar a estratégia que permitirá convocar uma outra, alargada, para formar uma equipa. Tenho de usar de toda a minha dialéctica e "sabedoria" para conseguir ficar de fora, ou ao menos, sem a Presidência. A ver vamos. (1) (MCG - 1974.03.12)

1 - Em 72/73 o Viegas e eu resolvemos não formar lista para a Direcção da Associação dos Estudantes, pelo que, à falta de candidatos, os jesuítas nomearam uma Comissão Administrativa para gerir a AE. Mas em 73/74 a malta dos três primeiros anos resolveu retomar a associação através de eleições e pressionavam-me para que encabeçasse a lista. Realizávamos então reuniões clandestinas numa sala das traseiras do Café Parque, junto à Praça de Touros, para preparar o processo eleitoral e programa da lista. Dos conspiradores lembro-me que também faziam parte o Tó Veladas, o Carrageta, o Manuel Gonçalves, o João Garcia e creio que a Maria Antónia, entre outros. Entretanto aconteceu o 25 de Abril e em Plenário Geral de Estudantes estes elegeram uma Comissão Coordenadora das Actividades da Associação dos Estudantes, que nos primeiros meses incluiu a minha pessoa.

Uffa, "mas que fartura!", como diria o outro que não sei propriamente quem seja. Pois é, o Pe [Augusto da] Silva entendeu por bem fazer algumas sugestões  sobre o nosso trabalho. De modo que o Guerreiro e eu passámos a tarde encafuados no meu quarto às voltas com as alterações. Amanhã devemos terminar a tarefa.

Entretanto o curso de Sociologia Urbana vai correndo; a aula de hoje foi muito interessante.

Daqui a pouco tenho a reunião com a malta por causa da Associação. Se soubesses como estou cansado e sem vontade de mais debates e dialécticas, hoje ! Enfim ...

Amanhã há  mais, que a comida está arrefecendo (MCG 1974.04.12)

Sim, terminar um curso na minha situação não é motivo de grande  regozijo. Creio que não "dourarei" a vida passada de estudante. vida, é só uma e o "ser estudante" um momento dela. Que futuro será o meu, não sei. Não quero é que ele seja de estagnação. Há sempre - tem, de haver - um modo de conseguir que o momento que passa seja de conhecimento, um conhecimento que só é possível pelos outros e com os outros. A certeza é a nossa morte, tudo o resto é uma tentativa para superá-la ou para sobreviver-lhe.

Andei hoje inquieto. Provavelmente efeitos do ar trovejante.

Na reunião restrita de ontem reflectiu-se sobre o papel da Associação dos Estudantes,deliberou-se "solicitar" à Comissão Administrativa a convocação duma Assembleia Geral e entretanto haver uma nova reunião amanhã à tarde para preparar o processo dinamizador da sensibilização dos estudantes para a problemática da Associação.

(…) Tenho saudade e desejo de estar contigo. Mas ao mesmo tempo retraio-me da minhas ida [à Amareleja] porque não poderei estar contigo como desejo. Enfim … (MCG - 1974.03.13) 

O trabalho? Ora, a Siemens encomendou-nos um levantamento estatístico (mal pago por eles e não muito bem executado por nós [na minha opinião]). O Pe. [Augusto da] Silva pensa que a gente deve fazer um estudo sociológico – pareceu-me – e quer mais texto. Enfim  -… tenho uns colegas e professores algo “provincianos” nestas coisas de investigação. O Queiroga está convencidíssimo que o nosso trabalho é uma grande coisa (lá no íntimo pensará que se fosse como ele quereriria seria melhor). Entretanto o Pe. Silva acena e comenta aprovadoramente “Está aqui muito e bom trabalho”. Mas ainda se deve fazer mais. O Guerreiro – com razão – enfartura-se. Eu encolho os ombros e quero que vão todos à merda. Encomendaram-nos um trabalho, executou-se (poderia ter-se feito melhor; não se fez) e espero o pagamento. Tenho mais que fazer, para além dum mês e meio de prejuízo.

Hoje apanhas esta seca. Vou jantar, que logo tenho de começar a pensar no trabalho [final] para Sociologia Urbana, [curso] que termina no sábado (MCG 1974 03.14)

Cheguei agora, ou antes, só agora, quase 24 horas – consegui despachar-me do jantar com o professor de Sociologia Urbana. Almoçámos com ele eu, o Guerreiro, a Domingas e a Conceição na Aldeia da Serra. Fomos também a Estremoz e Vila Viçosa. ).

Estou aqui a escrever-te sobre os joelhos, junto ao correio, para não perder a tiragem da correspondência do marco (MCG 1974.03.15)

O dia hoje está soalheiro. Regressei há pouco a casa; os jornais esgotaram. A RTP noticiou que na madrugada de ontem houve um levantamento militar nas Caldas da Rainha, após uma semana de grande confusão. (...) Segundo a BBC o Movimento das Caldas [16 de MARÇOpretendia exigir a demissão do Presidente da República [Almirante Américo Tomás]

Pois é, minha linda. A guerra é muito bonita, mas que sejam outros a fazê-la. .Em tempo de guerra pertencer aos quadros das Forças Armadas é pouco atractivo: há muita insegurança, um tipo arrisca-se a levar um balázio ou a ficar trôpego.

No começo da guerra [colonial] notava-se em Angola uma grande rivalidade entre os oficiais milicianos para a campanha – e os oficiais dos quadros  - comodamente instalados na cidade, tratando da sua vidinha.

Entretanto, a frequência da Academia Militar e do Colégio Militar tem vindo a dminuir, criando ao Governo graves problemas para o preenchimento e substituição dos quadros das Forças Armadas, nomeadamente no Exército.Viu-se assim o Governo compelido a recrutar os elementos em falta entre os oficiais milicianos. Mediante a frequência de curos especiais  os alferes e tenentes milicianos alcançavam o posto de capitão miliciano, para suprir a falta de capitães do quadro.

Mas geraram-se descontentamentos entre estes pois um miliciano conseguia alcançar o posto de capitão muito mais rapidamente. Deste modo, os oficiais subalternos do quadro boicotaram esta mdida, exigindo, além disso, regalias especiais.

Por seu turno, entre os milicianos, o estado de espírito não seria muito favorável a estas discriminações. Primeiro, porque dão o corpo ao manifesto e não aceitariam privilégios especiais de outros.

Assim, o ambiente ir-se-ia deteriorando rapidamente. Desde Dezembro último iniciou-se a rebelião dos capitães (milicianos? do quadro? Ou ambos?) Uma primeira tentativa de golpe de estado, chefiada pelo General Kaulza de Arriaga, não teria obtido a adesão do general Spínola, que ocupava desde esse mês a Vice-Chefia do Estado Maior das Forças Armadas, lugar especialmente criado para ele.

Em Fevereiro ter-se-ia gorado nova tentativa de golpe de estado. Na semana passada vários capitães – quatro ou cinco foram desterrados – Macau, Timor, Braga … Os restantes capitães retiveram-nos, impossibilitando-os de cumprir as ordens superiores.

Decretado o estado de sítio – domingo a 3ª feira passadas – todos os oficiais foram obrigados a apresentarem-se nas respectivas unidades militares. 3 daqueles capitães teriam tentado abrir negociações mas foram imediatamente presos.

Entretanto os capitães teriam exigido a demissão do Presidente da República [Almirante Américo Tomás] (Note-se que o General Kaulza teria exigido, em Dezembro, a demissão do Presidente do Concelho) [de Ministros, Professor Marcelo Caetano]

Mas … os Chefes dos Estados-Maiores do Exército, da Marinha e da Aeronáutica bem como os Comandantes das Regiões Militares apresentaram-se na Assembleia Nacional onde reiteraram a sua fidelidade ao Governo. No dia seguinte a Chefia do Estado Maior das Forças Armadas foi exonerada: generais Costa Gomes e Spínola. [que não haviam aderido com um 3º oficial general ao beija-mão do que ficou conhecida como a Brigada do Reumático]

Na 6ª feira à tarde estes 2, com mais outros 3 oficiais, todos condecorados com a Torre e Espada do Valor Lealdade e Mérito (a mais alta condecoração portuguesa) compareceram na Assembleia Geral extraordinária da Associação dos Antigos Alunos do Colégio Militar onde foram premiados com um prémio especialmente criado no ano passado, sendo apontados e ovacionados como “exemplo de 5 homens bons, dignos sucessores dos Homens Ilustres do Passado e exemplo para o futuro.”

Na madrugada de sábado, de ontem, deu-se a intentona militar, que sabes ! Segundo emissoras estrangeiras, o general Spínola encontra-se em paradeiro in certo, havendo sido presas entre 70 a 200 pessoas, para além dos insurrectos das Caldas

Claro que tudo isto até aqui não passariam de rixas entre os galos na capoeira.

Mas … convém não esquecer a origem disto tudo: a guerra em África.

Assassinado o Dr. Amílcar Cabral, em Janeiro (?) do ano passado, o general Spínola teria perdido o seu interlocutor dentro do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, de que era Secretário-Geral, Pensou-se na altura que ele tivesse sido assassinado, se não por instigação do Governo Português, ao menos da linha integracionista, contrária à autonomia (O Ultramar não se discute, defende-se!) Pensa-se também que poderia ter sido assassinado por dissidentes do PAIGC, que não concordavam com as negociações.

(…) Recorde-se que na Guiné o PAIGC inicia a guerrilha urbana, em Bissau.

Em Moçambique o Norte é dominado pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e o cobre da Rodésia deixa de ser escoado pelo Caminho de Ferro da Beira, para ser escoado pelo Caminho de Ferro de Benguela (pelo porto do Lobito) [Angola] O Governo Português desmente acusações de que forças armadas da Rodésia e África do Sul colaborem com as forças armadas portuguesas na luta contra os guerrilheiros da FRELIMO.

Os “brancos” de Moçambique, perante o agravamento da guerra, pretenderiam um governo local autónomo com a instauração dum regime racista branco de “apartheid”

Em Angola, a situação embora não sendo tão grave, reflecte os conflitos entre os interesses económicos (locais e estrangeiros) partidários dum governo local. Existe lá uma forte corrente para a instauração dum regime racista “branco”.

Segundo o “ Expresso” prevê-se uma invasão de Angola por tropas regulares da República do Congo. Entretanto as Forças Armadas em Angola teriam desmantelado o MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola, favorável a negociações) ganhando força o partido rival de Holden Roberto (racista e responsável pelos massacres no Norte de Angola em 15 de Março de 1961). A FNLA [Frente Nacional para a Libertaçlão de Angola] de Holden Roberto não seria favorável a negociações. Mas … o MPLA era de orientação marxista-leninista [apoiado pelos países socialistas do Leste Europeu e pelas sociais democracias do Norte da Europa], enquanto que Holden Roberto é subsidiado pelos americanos. Daí a ameaça duma possível invasão pelos congoleses.

Entretanto há pouco tempo surgiu mais um movimento de libertação, este de S. Tomé [e Príncipe].

Nas assembleias internacionais são admitidos como observadores representantes dos Movimentos de Libertação e o Governo Português é cada vez mais isolado e pressionado para rever a sua política.  (MCG 1974.03.17)

A BBC vai transmitindo o seu noticiário. Enquanto não volta a Portugal vou aproveitando para uma visitinha a ti.  (...)

Antão, sempre resolveste passar as férias connosco? Em Lisboa tes a casa da D Alice [Quaresma, amiga da minha mãe]

(...) Vim à pouco do cinema onde fui ver um filme de Orson Welles - "O 4º Mandamento" Não gramei lá muito. 

Acabei de lanchar aqui no Estrela d'Ouro. Aqui ao meu lado o Alpendre estuda História Económica; o Guerreiro acabou de chegar do supermercado, onde foi aviar-se.

Tivemos hoje uma tempestuosa reunião em casa do Queiroga [ele resolvera fazer a introdução sugerida pelo Pe Silva, que eu e o Guerreiro considerámos uma bizantinice  - e ao fim de 6 dias de trabalho esforçado pô-la à consideração minha e do Guerreiro. Discordámos ambos dela, aquilo era tudo menos conclusões e em muitos casos era uma simples repetição do que já fora escrito.] Sua Exa no entanto não admite críticas, é casmurro, está habituado a que se curvem à sua "profunda" sapiência. Enfim, a sua argumentação [contra nós] girava toda à volta de "Porque sim!" e "estás com birras", "estás habituado  a que te façam todas as vontades", que não tinha nada a ver para o caso.  Estou farto disto tudo.

Dizia a BBC ontem que prosseguia o chamado "julgamento" das 3 Marias (Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa) autoras dum livro chamado "Novas Cartas Portuguesas” sobre problemas da mulher portuguesa, que a acusação pública considera pornográfico e ofensivo da moral e dos bons costumes. Mas uma das testemunhas de defesa, Maria Emília... , afirmou que ofensivo da moral e dos bons costumes era o facto duma mulher não poder andar na rua e transportes públicos em Lisboa (e em Évora ?) sem ouvir piropos indecorosos e ser apalpada. Referiu também as vantagens que os homens da classe alta tiram impunemente da sua posição sobre as jovens das classes inferiores. (MCG - 1974.03.21)

O dia do Marquês (1) -  Hoje foi o dia do Marquês. Distribuímos jesuítas (250) e ginjinhas (5 litros) pela malta, a começar pelo Secretário [Pe. Augusto da Silva,sj]. Ah!Ah!Ah! Ontem eu e a Domingas desenhámos dois cartazes (com piada!) e hoje enforcámos bancos com gabardina no Instituto. O Ilhéu  tocava corneta e eu descobri uma vocação de tamborista. Fenomenal. (Tu [Celeste] a cantar e eu ao batuque havíamos de formar um lindo dueto). Todos disseram que os "jesuítas" estavam bons e a "ginjinha" deliciosa, incluindo os jesuítas.

Trouxe o badalo para casa e agora o sr. Veladas só tem uma sineta rachada [para os toques de entrada e saída] (2)

Tenho muita pena mas não sobrou qualquer jesuíta. Só 6 (...)  Os manos Silva [Augusto - secretário - e António - Director ], o [Manuel] Belo, o "Piricão" [Pires Lopes], o "Ginjas [Vaz de Carvalho], O Borges e o [Vaz] Pato. Para esses ainda não apareceu nenhum Marquês [de Pombal]. (MCG - 1974.03.28)

(1) No século XVIII o Marquês de Pombal havia expulso de Portugal a Companhia de Jesus e encerrado todos os seus Colégios e a sua Universidade em Évora.

2 - O senhor Veladas sempre desconfiou que eu trouxera o badalo para casa e pretendia que eu o devolvesse, mas como nunca lhe acusei o toque acabou por esquecer.

Eis prestes terminado o meu penúltimo dia de aulas no ISESE. É ao entardecer; daqui a pouco são horas do jantar. . Esá frio – para a noite arrefece – e tenho de mudar de roupa. Fomos hoje à Siemens receber o “cacau”. Falta-me receber apenas 1 400 $ de despesas.[7 €]

Sempre houve a reunião da Associação de Estudantes, à qual compareceram uns 15 estudantes. Ficou decidido que a actual Comissão convocará uma outra reunião para um dos últimos primeiros quinze dias de aulas. A minha proposta será que a Associação cesse as suas actividades - salvo no que se refere à secção de Folhas. Isso permitir- me-à formar um grupo para lançar um jornal e ir preparando terreno para despertar uma outra consciência dentro do Instituto.  

Ainda não sei se haverá ou não 2ª fase do trabalho da Siemens, nem se nela colaborarei. A ver vamos. Só estaria interessado se ganhasse o equivalente a 4 ou 5 000 $ mensais [20 a  25 €]

Ouviste ontem o Marcelo [Caetano] ? É um homem perigoso, tanto mais quanto se insinua daquele modo. Quantos acreditarão nele ?

A BBC ontem só deu uma pequena notícia referente a Portugal. Em Angola (Cabinda) os guerrilheiros [do MPLA]  já possuem mísseis. (MCG 1974.03.29)

Passa da meia noite: o tic-tac do relógio enche o quarto. Os sacos estão arrumados e o quarto também. A mesa, essa ainda não. Arranjo um espaço à minha frente. Estou triste e cansado. Desta vida de estudante, o que mais me custa é a partida para férias. Ou porque as férias não têm sentido – a seguir há os exames e a preocupação deles – ou porque [sem ti, ausente] não têm qualquer significado. Bah! isto são balelas.

Não me apetece escrever-te. Mais correctamente – hoje não tem qualquer sentido escrever-te. Telefonei-te apenas porque tu esperavas o meu telefonema. Que não me apetecia fazer. Depois, não sei falar ao telefone, porque basta um nada para que as minhas palavras endureçam e a minha voz se torne agreste. Para além disso a porta da cozinha estava aberta e tu numa cabine telefónica, mal nos ouvindo um ao outro. Eu, o homem que se quer tolerante e compreensivo, atento aos outros, alguma vez serei isso? Tenho em mim esta austeridade do rigor …

Mas nada disto interessa. Uma presença, um gesto, um sorriso, valem mais que mil palavras. Por isso te deixo.

Vim até aqui ao Arcada, muito barulhento. Está um dia bonito, cheio de sol. Évora está cheia de miúdas, aos bandos. (MCG - 1974.03.31)

Tourada

Não importa sol ou sombra
camarotes ou barreiras
toureamos ombro a ombro
as feras.
Ninguém nos leva ao engano
toureamos mano a mano
só nos podem causar dano
espera.
Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.
Entram vacas depois dos forcados
que não pegam nada.
Soam brados e olés dos nabos
que não pagam nada
e só ficam os peões de brega
cuja profissão
não pega.
Com bandarilhas de esperança
afugentamos a fera
estamos na praça
da Primavera.
Nós vamos pegar o mundo
pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza
graça.
Entram velhas doidas e turistas
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.
Entram cavaleiros à garupa
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...
Entram empresários moralistas
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.
E diz o inteligente
que acabaram asa canções.


E depois do adeus


Quis saber quem sou
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
Perguntei por mim
Quis saber de nós
Mas o mar
Não me traz
Tua voz.

Em silêncio, amor
Em tristeza e fim
Eu te sinto, em flor
Eu te sofro, em mim
Eu te lembro, assim
Partir é morrer
Como amar
É ganhar
E perder

Tu vieste em flor
Eu te desfolhei
Tu te deste em amor
Eu nada te dei
Em teu corpo, amor
Eu adormeci
Morri nele
E ao morrer
Renasci

E depois do amor
E depois de nós
O dizer adeus
O ficarmos sós
Teu lugar a mais
Tua ausência em mim
Tua paz
Que perdi
Minha dor que aprendi
De novo vieste em flor
Te desfolhei...

E depois do amor
E depois de nós
O adeus
O ficarmos sós  


Foto MENS - Amareleja, Largo do Regato, a casa da professorinha e à porta esta e o namorado. Ao lado, o carro da minha mãe e os mirones registando para a má língua e calhandrice.
Foito VN - Amareleja - Ao fundo o Largo do Regato e a casa onde morava a professorinha
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