* Victor Nogueira
Os dias e as noites pareceriam idênticos mas não, era apenas aparência, porque na dobadoira do tempo haviam perdido o brilho, o fulgor, a espontaneidade, a luminosidade, a criatividade .... numa expressão talvez adequada - a inocência da santidade, maneira cómoda e simplista de rematar este naco de prosa para que tudo, generosamente ou com generosidade, lá possa caber. Estava pois João, Bimbelo umas vezes, Baptista Cansado da Guerra outras.
Estava pois sentado à secretária e quando olhava para lá da janela, não era uma parede, barreira esbranquiçada, que encontrava mas a cidade a seus pés, negra e sem estrelas salvo aquelas douradas, que a ilusão dos sentidos parecia ter semeado em terra como pirilampos luzentes mas sem pisca-pisca. Estendiam-se pois as estrelas em terra até Lisboa que se avistaria se não se interpusesse a atalaia do morro onde alcandorados estão a vila de Palmela e seu castelo. E se fosse dia e estivesse límpido o tempo, talvez até Sines, diziam-lhe, mas ainda não se dera ao cuidado de confirmar se assim é de verdade.
Outras diferenças havia: já não o tac tac da Olivetti Lettera 2000 tambor girando um espaço ao fim de cada linha mas o dedilhar rápido no teclado duma maquineta que nunca lhe inspirara receio de explosão ao utilizá-la. O silêncio era similar, mas agora, para além do permanente zumbido nos ouvidos, estava silencioso o leitor de CD's - já não pick up ou gira-discos de vinil ou leitor de cassetes ...
Bem, acabemos com as derivadas e dizemos que o silêncio agora é partido com o bac seco do espacejador do teclado preto brilhante com signos branco baço.. E vazio estava o cesto dos papéis pois agora todos os erros se apagam sem ficar rasto ou pegada deles, um "delete", um "back space" mais ou menos contínuo, um "copy and paste", e lá fica a folha sem borrões, quase virginal. No "recycle bin" não estão pois papéis amarfanhados ou rasgados mas apenas uma garrafa vazia de "desperados", cerveza con tequilla, herética mistura para os puristas.
E neste momento pousa o queixo na mão esquerda, pensativo. E nota que a barba está áspera, duma aspereza que é áspera ao tacto, não sedosa como o cabelo; pensa: "tenho de voltar a barbear-me todos os dias", quanto mais tempo disponível menos faz ele que outrora tinha de compimi-lo, fazendo múltiplas tarefas simulâneamente, organizando-se e ao trabalho de outrem, com eficácia, planificando, delegando, responsabilizando e controlando a execução, não guardando para si o mérito de outrem, mesmo que doutro quadrante partidário, embora asssumindo a responsabilidade pelo "seu" colectivo face à Adminiistração, como se cada hora contivesse quatro para a imensidão dos trabalhos, trabucando a 800 km por hora quando a maioria se contentava com o remanso atabalhoado dos 8 mil metros em cada 60 minutos. De nada lhe valeu, pois o que interessa é não levantar ondas, não drenar o pântano ou secar o lamaçal, o que interessa é saber viver no meio da manada que segue o cacique ou reizinho de paróquia. Sem fazer ondas e mordendo pela calada, alívio da alma, mas não com a frontalidade fraterna, quase sempre diplomática, mas por vezes duma ironia cortante, por vezes mesmo sarcástica.
Em terra de carneiros, de camaleões, de meias aguas e de meias tintas, quem levanta pendão pelos direitos seus e de outrem é alvo a liquidar, cortando-se de preferência o mal pela raiz ou, se não for conveniente, encerrado em gaiolas mais ou menos douradas, como general sem tropas, desapossado da centúria. Mas a liquidar, de preferência, para que o sosego das hienas, das marabuntas, dos abutres, dos asnos, dos papagaios, das piranhas, das pegas, das lesmas, dos tubarões, dos polvos tentaculares, dos lobos e das alcateias prossiga serenamente.
Estava pois João com o tempo todo do mundo por sua conta mas oco quado o-o [ lhava ] para o que lhe escorria por entre os dedos das duas mãos. O que é mais importante? A obra ? O Trabalho ? O concretizar de sonhos e projectos ? Ou ir alberta e caeiramente vivendo? Sem sobressaltos com Lídia à sua beira sentada, no regato Largo ou não, que contiuaria a correr para o mar salvo se, quais castores na ribeira, erguessem um dique, as águas pelos campos correndo, tudo inundando e na enxurradinha levando apenas formigas e caracóis.
Está incomodado com o cabelo ondulado que já tem mais que o comprimento desejado e amanhã tem mesmo de telefonar ao Chagas para saber quando pode ele cortar-lho.
Os dias e as noites pareceriam idênticos, como idêntica era a aparência dos sentimentos. Só que estes com o correr e a dobadoira dos dias e das noites haviam perdido o brilho, o fulgor, a espontaneidade... Estava pois João, Bimbelo umas vezes, Baptista Cansado da Guerra outras.
E lembrou-se dum escrito, sempre um escrito, sempre uma lembrança a interpor-se no seu caminho. E que dizia tal escrito ? Quem teria perdido a claridade, a transparência, a limpidez ? Ele que escrevia e falava ou quem o ouvia e lia? Ora, que interessava a resposta: toda a vida e as pessoas e ele eram cada vez mais baços ! Irremediavelmente ! Desesperançadamente . Ou não ? Ah! sempre este nunca digas nunca que o sempre não existe. E, maravilha das maravilhas, num passe de magia do "copy and paste", corta e cola:
Quando convido alguém para vir a minha casa, quando te convido para vires a minha casa, é apenas porque gosto de receber as pessoas que estimo ou com quem julgo ter afinidades. Gosto de recebê-las no meu espaço.
.
Quando te convido para sairmos, mesmo usando palavras gastas e sem novidade,é porque aprecio a tua amizade e companhia, o sol e o mar, o riso no teu olhar, o calor da tua voz a sorrir, a curva da brisa no teu rosto, a tua serenidade, paz e alegria suaves, ave, rio a navegar ou ribeira a cantar na leveza do teu andar.
Porque é a vida tão complicada ? Porque se enteiam/enleiam as palavras e se buscam significados ocultos naquilo que se pretende simples e linear?
E numa pirueta ri-se e com outro passe de magia, qual Houdini, tira da manga ou do bolso outro feixe de letras que estende à sua frente e defronte de quem espectador é mas não actor ou actriz pois é mais cómoda e almofadada a poltrona da plateia ou do balcão, mil vezes preferível ao palco da vida, dos enredos e (des)enganos, num simulacro de existir apenas nos encantos vividos só, em pensamento.
Neste jogo de palavras
e de gestos comedidos
Aqui
neste canto da cidade
preso à roda do leme
em sonhos
que sonho em ti
busco o passado que não fui
no futuro que não serei
.
suspenso do teu andar
.
Arde-me o sangue nas veias
neste fogo vento suão
murmúrio do teu sorriso
verde brisa na planura
fresca do teu olhar
E se quisesse fazer trapaça diria que o estendal fora tecido há minutos, mas não, o cobre já tem a patine do tempo, verde de antigo e não folha primaveril, pois seco é o verão a caminho do outono antes do inverno. Tecido no antigamente e não no agora-mente, em passe que nos faz viver uma década, um século, um milénio ... sem que do calendário se esbanjem mais folhas. Em si guarda o ficheiro que "neste jogo de palavras" viu a luz do dia ou da noite nesta cidade de setúbal, a vermelha do rio azul, mais rosa e laranja do que propriamente de vermelho vestida, em 1985.07.23.
E hoje, na madrugada do novo milénio que de XXI se transformou em XIX, na madrugada que não é a de Sophia e sem as aves de Eu-Génio, em 2012.07.02, João, Bimbelo umas vezes, Baptista Cansado da Guerra outras, encerra as escritas e lança as palavras ao vento e ao fluxo - refluxo das marés onde mergulham loucas gaivotas, umas vezes em altaneiros voos de águia, outras em saltinhos de pardalitos de asas cortadas.
Foto Victor Nogueira - Setúbal - pôr do sol no estuário do Rio Sado
Foto Victor Nogueira - Nocturno em Setúbal
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