* Victor Nogueira
O bólide é o Ford Consul que a minha mãe adquirira, depois de dar o grito do Ipiranga e ter arranjado trabalho como professora.
Ao chegar a Luanda, em 1945, como engenheira química, a minha mãe teve várias ofertas de emprego em fábricas, ao que o cônjuge, engenheiro civil, se opôs que aceitasse.
Na altura o meu pai estava desempregado, pois havia pedido a demissão na Câmara Municipal de Luanda, por não ter aceite e alinhado com os cambalachos.
Uma década depois a minha mãe resolveu deixar o papel de ser a "fada do lar" e empregou-se como professora.
Nesses tempos o meu pai ainda não ultrapassara a educação paterna, dominante numa sociedade patriarcal, de que a mulher não precisa de grandes estudos e que o seu lugar é a casa ou lar, entre tachos e panelas, como submissa "escrava" ou como submissa "fada do lar", na estrita dependência do "pater familias".
Na verdade, face á decisão da minha mãe e consequência da educação paterna numa sociedade patriarcal, o meu pai declarou-lhe então que arranjara um emprego mas perdera um marido.
Não aceitando então o "grito do Ipiranga" da minha mãe, a decisão desta levou á crescente deterioração das relações conjugais, que culminou com o divórcio aos oitenta anos, ultrapassada a injunção da indissolubilidade do matrimónio católico.
Contrariando o meu pai, a minha mãe impusera que partiria para Luanda apenas após a conclusão do curso de engenharia e da celebração do casamento, não pelo civil, mas católico.
Enquanto que a minha família no lado paterno, alentejano era ateia (embora no fim da vida o meu pai e o meu avô se declarassem agnósticos). no ramo materno, minhoto e transmontano, eram católicos assumidamente praticantes e não de fachada, com António de Sousa Barroso, primo direito de António dos Santos Barroso, meu avô materno.
António de Sousa Barroso foi missionário em Angola no antigo Reino do Congo, e, posteriormente, foi Bispo do Porto, conhecido como o "Pai dos Pobres", com arrastado processo de beatificação, que então celebrara o casamento entre os meus avós António e Francisca, mas que nos alvores da I República foi por esta duas vezes condenado ao exílio, por se opor, corajosa e militantemente, á separação entre a Igreja e o Estado, defendida pelos Governos da I República.
António de Sousa Barroso teve em Luanda uma avenida com o seu nome e figurou numa nota fiduciária de Angola, no valor de 20 angolares, embora para a minha mãe tudo isso nunca tivesse assumido especial relevância
Registe-se, em abono da verdade, que apesar do seu ateísmo, o meu pai, tolerantemente, nunca se opôs á educação católica dos seus filhos.
2022 10 16
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