* Victor Nogueira
O que são as memórias? Um escrito? Uma foto? Uma lembrança burilada ou afeiçoada nas brumas do tempo e da memória? Uma recordação, uma atrás das outras, impetuosas ou em meandros como o rio que se espraia pela planície? Qual é a verdade das memórias?
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Hoje - a 4 de setembro - farias 92 anos; daqui a 4 meses faria a Maria Emília 94, como o Zé Luís teria feito 62 em 29 de Maio, tantos quantos a Celeste a 7 desse mesmo mês. Não comemorarás o centenário com a família, parte da família, como desejavas, num lauto banquete como o que ofereceste aos 80, de convites personalizados. Na juventude pensei que seria o patriarca duma grande família, espalhada por várias gerações. Mas os meus tios de "sangue" não casaram, o meu irmão morreu, os divórcios e separações mesquinhamente e com frequência apartam águas.
Contigo, para além de na minha meninice e adolescência me teres transmitido os valores da tolerância política e religiosa, da solidariedade, da multi-racialidade, da verticalidade e da não subserviência, da não adesão a castas ou preconceitos de classe, aprendi também que a família é muito mais extensa . Depois disso tivemos muitas desinteligências, não poucas vezes deixaste de falar comigo mas não eu contigo, porque na família fui o único que te disse não qd entendia dever fazê-lo, sem que a minha firmeza me roubasse as boas-maneiras para contigo, entre-ambos. E só nos voltámos a encontrar nos dois anos antes de morreres. Só então voltaste a libertar a ternura que sempre tiveras pelo teu filho insubmisso, rebelde e contestatário.
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A família … Que é a família? Uma certidão ou conjunto de certidões de nascimento? Uma árvore genealógica a partir destas? E como preencher as lacunas das filiações de pai incógnito, mesmo qd se sabe que este era um estudante de medicina, médico muito rico numa qualquer terreola do interior ? Uma Photo ? Mesmo que seja mentirosa como aquela em que estás com a mão no ombro do que sempre considerei meu bisavô? Como neto me consideraram o avô Zé Luís, afinal teu padrasto, ou a minha tia-avó Esperança, que sempre nos considerou e nos tratou e à Maria Emília como sobrinhos ! Porque é mentirosa aquela foto que sempre exibiste com orgulho? Um dia perguntei à Lili se o meu bisavô não teria escrito poemas ao Manuel - o Necas - como fizera aos filhos da Alzira e do Zé Luís ou se estes se haviam perdido. A resposta foi que nunca os havia escrito. Insisti, mas parecem amigos na foto, aquela que o meu pai emoldurou em vários exemplares e me ofereceu e aos irmãos e não sei se ao “pai” dele, adoptivo. E veio a história – por duas vezes o Manuel pousou a mão no ombro do que eu sempre considerei meu bisavô e por duas vezes este sacudiu-a com brusquidão. Mas à 3ª, não houve tempo porque entretanto o fotógrafo disparara.
Na última longa conversa que tivemos, dias antes de morreres, em que falámos de muitas coisas - do passado, do presente, do futuro - [a minha mãe escrevia-me mas tu preferias conversar] , veio à baila a fotografia que estava porque a puseras no teu quarto no lar. E sem acrimónia e com bonomia e com um sorriso ladino contaste a história do garoto que teimosamente rejeitara a rejeição do seu “avô” – a verdade da foto não é/seria a aceitação que não houve mas a teimosia de quem considerava aquela a sua família. Como no teu quarto puseste essa e a foto que te tirei na tua casa em Setúbal, porque mo pediras, numa das mãos uma com a Alzira e o Zé Luís, teus pais, na outra a do teu bisneto Francisco, como se fosses um elo entre gerações.
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Há da família conceitos que a vida pode ir alargando, cada vez mais compreensiva e extensamente. Há quem fique pela escravidão do “sangue” e da servidão, mesmo que retintamente vermelho e plebeu aquele seja, e há quem alargue o conceito até abranger a humanidade e a vida, toda a humanidade e toda a vida. Há um poema de Eugénio de Andrade que fala disso:
Poema à Mãe
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"
Partir com as aves é muitas vezes doloroso, mas tal como o poeta refere em O Lugar da Casa “ (…) crescer como árvore, resistir / ao vento, ao rigor da invernia,/ certa manhã sentir os passos / de abril / ou, quem sabe?, a floração / dos ramos, que pareciam / secos, e de novo estremecem / com o repentino canto da cotovia.” é partir com as aves e responder ao canto da cotovia; significa a capacidade de estender a fraternidade para além do clâ, da seita, da igreja, do clube, do bairrismo, da vizinhança.
Sim, a minha família é muito mais extensa do que aquela que certas leis e certas decisões dizem ser a minha. Muitos não percebem, não compreendem nem aceitam que a minha família, se a explicitasse, englobaria as das mulheres que amei, mesmo que não tivessem sido minhas companheiras: desde a jovem professora - meu amor de sempre, nunca esquecido - que em évoraburgomedieval me despertou para a poesia, até à Maria Papoila, a Florbela, a Fatma, incluindo a Maria do Mar, a Joana Princesa, a Mana Clarisse de Aguiar e Berlmonte, a Maria dos Mil-Sóis Rendilhados, a Julieta dos Espíritos ... Mas (quase) tudo passou e morreu, com ou sem aspas, e uma simples passagem no inFaceLock pelas páginas de certas pessoas que sempre conisiderei da minha familia, leva-me a constatar que eu e os meus filhos e neto fomos pura e simplesmente eliminados. A decisão não é minha, nunca seria minha.
“Pai, tu não és deste Mundo ! Tu não vives neste Mundo !”, disse-me a susana em adolescente. Talvez ! Mas a minha família continuam a ser a Vida e a Humanidade” como o meu pai e a vida me ensinaram. E eu decidi escolher ! Eu escolhi a fratenidade e a igualdade. Eu escolhi o futuro sem esquecer ou renegar/re-escrever o passado.
Um brinde aos avós, a todos eles, qualquer que seja a geração passada ou futura, com a Dança do Balcão, já a seguir, em:
Foto de Família - Porto
Foto de Família - Luanda
Foto de Família - Luanda
Foto MNS - Porto - Natal de 1973 (Rua Fernandes Tomás) - avô Zé Luís (+), Alexandrina, tio Zé Barroso (+), Carlos, tia Teresa, Victor, tia Isabel, Manuel, (+) tia avó Esperança (+), Celeste (+), Maria Emília (+), avô Barroso (+), tio José João (+)
(+) já faleceram
Foto de Família - Porto
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