Para alem desta janela
o sol já desapareceu e dele
persiste apenas no horizonte
debruando as colinas
uma faixa vermelho alaranjado.
[…]
E de repente chove a cântaros
neste fim de dia cinzento e triste
apesar da cozinha cheia de luz
do encanto dos gira-sóis colhidos
na berma da auto-estrada
que iluminam a nudez e ascetismo desta casa.
Chove silenciosamente a cântaros e
tenho saudades do casarão de Évora
das salas enormes e desniveladas
onde ouvia a chuva bater no telhado ou
marcar a vidraça
encanto vedado nesta torre de betão armado
[…]
Levantei-me para acender a luz
já necessária neste fim de dia
neste crepúsculo
que o meu ânimo melancoliza.
[…]
Olho novamente pela janela e
o céu agora é azul-escuro
com um leve debrum alaranjado no horizonte
Piscando um avião passa além
enquanto lá em baixo
fieiras de luzes assinalam
as estradas as casas os automóveis
no caminho para Porto Salvo.
E dirás ao ler o que registo
rapidamente
no papel
"Que bem escreve o meu amigo" ou
"que bonitas coisas ele diz”
E deste modo me dirás que telefone
- se eu telefonar -
que gostaste de receber os meus escritos
que os guardarás não sei onde
para leres guando fores velhinha.
O tempo cheio de sol
continua frio e cinzento.
*** *** *** *** *** ***
Um dia deixarei de escrever-te
telefonar-te ou procurar-te
e toda esta conversa não passará de imaginação
porque não estás aqui
com o teu jeito gentil
o teu sorriso afectuoso ou
levemente trocista.
[...]
Da nossa amizade pouco resta já
senão alguns presentes
a memória
cada vez mais sepulta na bruma dos tempos
e algumas cartas e poemas
- alguns bonitos -
cantares no fundo de um qualquer baú
até que o lixo os leve.
Deste modo vou seguindo
ao longo dos caminhos
[...]
*** *** *** *** *** *** ***
No cimo da colina
a esfinge pergunta aos caminheiros
qual é mais forte
se a frágil cana que resiste ao vento ciclónico
e os (des) humanos dedos partem
ou o centenário roble
pelo raio fendido em noite tempestuosa!
E cheio de claridade ou
de silêncio e sombras
o viandante procurará a resposta
pondo as palavras umas atrás das outras
alinhadas ou desalinhadas
tecendo a manta que reflecte
no seu desenho
o pensamento donde nascem
as histórias da Vida
entrelaçadas nas vidas da História:
E com palavras e fábulas a esfinge e o caminhante
vão tecendo a rede para apanhar o pensamento
unindo os fios da meada
dando o nó para tentar que estes não escapem
quando flutuam na memória
saltando de história em história
em busca do entendimento.
*** *** *** *** *** *** ***
Estive nas tuas mãos
como se fora uma frágil cana
agitada ou batida pela brisa
neste silêncio da madrugada
tão diverso da serenidade do entardecer
É a madrugada aquele tempo
em que constelado de estrelas está o céu
ou nimbado de luar
trazendo em si a claridade do azul
celeste ou cinzento
que esconde o sol
conforme haja
nuvens ou não.
Estive nas tuas mãos
pássaro de asas cortadas
em voo de pardal.
Para a formiga é o pardal
um gigante
que saltitante debica além e aqui
sem as culminâncias da águia.
E assim entendem de modo diverso
a esfinge e o caminhante
conforme se fiquem pelo voo rasteiro do pardal ou
planem nas alturas da águia.
Mas
viageiro sem resposta
deixo cair este envolvente e pesado cansaço
com o coração magoado de verdade
o pudor de falar disto
com este desalento que me invade e cerca
pela frustração das erradas leituras
das noites mal dormidas
pelos dias sem sentido
pela tua ausência
pelo meu trabalho
estiolantes
E deste modo abandono a teia tecida
fecho a porta atrás de mim
e vou na “bicicleta de recados"
em busca de outro viver
com mágoa daquilo que (não) foi e se perdeu.
*** *** *** *** *** *** *** ***
O novelo de emoções está
menos envolvente
lanço as fábulas ao vento
para que sobre elas recaia o reflexo do
entendimento
e de novo recolho as palavras
para que nelas se busque um novo sentido
Porque amanhã
amanhã
é sempre um novo dia
com flores do mar ou do campo
á nossa espera
neste fluir constante da vida
ardente ou em fogo brando
onde cada instante.é
irremediavelmente
diferente do anterior
E deste modo retomo a viagem
sem nenhum gesto
partindo
simplesmente
neste rasto de palavras multifacetadas
de signos díspares.
*** *** *** *** *** *** ***
Para lá desta janela
a serra de Sintra
iluminada no dia que passou
Lá em baixo
à direita
a estrada para Porto Salvo
polvilhada de casario
cada vez mais
substituindo os campos agrícolas
agora secos.
1989.Março.07 - Setúbal / Paço de Arcos
vem de
https://www.facebook.com/notes/victor-nogueira/entre-eros-e-afrodite-07-os-sons-do-sil%C3%AAncio/10151634732234436
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