Na habitual feira das velharias por onde periodicamente deambulo, comprando alfarrábios e outra tralha vária, encontrei um outro maço de cartas, não datadas, escritas a uma tal Penélope por um incerto João Baptista. Compartilho pois alguns excertos das mesmas.
* Victor Nogueira
A praia defronte a mim é um campo de rochedos maiores ou menores e, à minha direita, um areal imenso. Fino e limpo é daquele lado o granulado, com as conchas que o mar num ondear alteroso incessantemente remove. Defronte da esplanada em que me encontro é a água chã e asperamente semeada de rochedo, com um leve ondular que deposita algas esmeraldinas ou acastanhadas e muito mais conquilharia, algas cuja recolha as transformará em adubo, húmus para o plantio de milho, batatas, feijão de estaca, couves (a que chamam pencas) ... É de iodo a maresia, boa para o bronzear que não seja escaldão.
A esplanada está cheia de jovens e de crianças, em conversas que o vento leva. Mais além lê-se o jornal ou um desses romances descartáveis de capas idênticas e de escritores prolixos cujo nome a história não registará, retirados dos escaparates de grandes superfícies comerciais, em rotação acelerada das capas mas não dos conteúdos, pior ou melhor alinhavados em chapas uniformes. Lá dentro o ambiente é opressivo, incomodativos os gritos e o choro das crianças, o barulho da máquina de café a que chamam cimbalino, os pires e as chávenas colocados nas bandejas, nas mesas, no tampo do balcão ....
Olho em frente e em redor de mim, o ar está de calor e calmaria, e tudo é pouco nítido, tremelizante, como se em leve e diáfano movimento estivesse. Cheguei há pouco, deixei as malas e os sacos de viagem em casa e vim até aqui. Hesitei entre o Iced Tea e a cerveja e fiquei pelo garoto claro ou pingo, como aqui se diz.
Aqui estou pois rodeado de gente mas sem ti. Penso em ti. No teu rosto ensombrado, ontem! Cujo significado eu pressinto, mas não me compete falar por ti, que me pareces demasiado orgulhosa e retraída para falares naquilo que te respeita. Erradamente convencida da inconstância das minhas amizades, das minhas simpatias. Nunca descobri - ainda - porquê!
Ainda não estivemos como eu queria que estivéssemos. Com a ternura, o silêncio, as palavras e o trabalho nos momentos que lhes são devidos e na sua medida exacta. Como eu preciso que nós estejamos.
Os dias que passam deixam nas pessoas ódio, amor, tédio, indiferença, alegria ou melancolia. Que deixarão em nós esses mesmos dias?
O sol se põe mas o céu ainda é azul, com dois luzeiros brancos cintilando. Um arco vaporoso tingido de encarnado - rasto dum avião - cruza o céu. Daqui a pouco o horizonte será um debrum alaranjado, uma estrada cintilante e argêntea, para lá do qual mergulhará a incandescente esfera, bola de fogo.
Quero estar contigo hoje, e amanhã, e nos dias que se seguirem enquanto tiver sentido estarmos um com o outro. HOJE! Mas tu não estás! Nem estarás amanhã! Para ti, terá sentido tudo isto. Para mim, é absurdo. O tempo foge-me por entre os dedos e não sei o que me ficará dele. Gosto de ti e não faz sentido que o meu desejo de ti, o meu apelo, fiquem sem resposta. Porque incapaz estás de quebrar as barreiras que apenas em ti existem, que alimentas, embora criadas pelos costumes ancestrais que em torno de ti e para tua submissão o que te cerca e quem te rodeia ergueram
Voltei do banho, tiritando, como pele de galinha. As crianças correm pela areia, mergulham, saltitam, gritam; os adultos conversam ou estiram-se à soalheira ou à sombra enquanto o ar se vai tornando frígido e agreste, cortante, de nortada.
Pousei o livro que trouxe, de Alexandre Dumas, “Os mil e um fantasmas”, um escritor prolixo, de escrita fluente, conhecido pelos romances históricos, que teria ghost-writers a escreverem para ele, cabendo-lhe as pinceladas e tonalidades finais. Mas esta não é uma novela de capa e espada, antes uma série de contos ao jeito dos de Cantuária ou das Mil e Uma Noites, cuja temática é a pretensa “sobre-vivência” para lá da morte, violenta ou não, de acordo com a experiência de vários narradores, ao estilo de as cerejas atrás das cerejas aparecem.
Voltando a nós, sempre este regresso pela tua ausência; o meu desejo de ti és tu e não estas linhas que não te dão nem a minha nem a tua ternura, que não são a flor ao vento no veludo dos sentidos. Tu além, e eu aqui, não somos senão o desejo irrealizado. As palavras nada sentem, ao contrário destas mãos ou da pele em que finas rugas se entrecruzam cada vez mais ao passar dos dias. E das noites. E no entanto pareceriam tão fáceis a paz, a serenidade, a alegria!
Arranco estas folhas do caderno, arrumo a Pelikan no bolso da camisa que acabo de vestir com os calções, pago a conta e levanto-me acenando vagamente para as pessoas que nesta esplanada reconheço e me reconhecem, um breve inclinar da cabeça, um leve sorriso nos lábios. Regresso sobre os meus passos e entro no carro.
João Baptista
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