2 de Julho de 2014 às 16:58
foto victor nogueira
* Sophia de Mello Breyner
Caminho da manhã
Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos: mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.
in Livro Sexto, 1962
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foto victor nogueira - cela (coutos de alcobaça) - pôr do sol na quinta que foi do general humberto delgado
* Victor Nogueira
Sic transit gloria mundi ou os caminhos do povo e os atalhos de Zeus ou Júpiter
Malhas que o império tece, jaz morto e apodrece em campa rasa, quem da Nação dizem que não é Gloria nem Exemplo a seguir. Leia até ao fim para saber de quem se fala!
No Mosteiro de Alcobaça está um dos panteões dos reis, rainhas e princípes de Portugal, a par dos da Igreja do antigo Mosteiro de Santa Cruz (Coimbra), do Mosteiro da Batalha (Aljubarrota), da Igreja do Mosteiro de São Vicente de Fora (Lisboa) e do Mosteiro dos Jerónimos (Lisboa).
Também a Igreja de Santa Engrácia (Lisboa) se destinava a Panteão Real, mas a centenária morosidade na conclusão das suas obras ("obras de santa engrácia", expressão que significava morosidade e inacabamento) inviabilizam-no, acabando por tornar-se já no século XX e após a implantação da República, Panteão para os Heróis e Glórias da Nação, tão ecletico que nele repousam desde Almeida Garrett a Aquilino Ribeiro e Sofia de Mello Breyner (a 2ª mulher), dos ditadores fascista Carmona e proto-fascista Sidónio Pais "democraticamente" coabitando com adversários como Manuel de Arriaga (o 1º Presidente eleito na 1ª República) e Humberto Delgado, este assassinado pela Pide a mando de Salazar, na Presidência de ... Craveiro Lopes, sucessor de Carmona.
Depois de Amália (a 1ª mulher), outras glórias se pretende que lá repousem, como o futebolista Eusébio ...
Mas quem fala em José Afonso ou em Catarina Eufémia, assalariada rural alentejana morta pela GNR qd reclamava "Pão e Trabalho",. ou em Bento Gonçalves, operário torneiro, morto no Campo de Concentração do Tarrafal com muitos outros presos políticos, ou em Dias Coelho, escultor,assassinado pela PIDE numa rua de Lisboa ?
Ou em escritores, como Ferreira de Castro ou Miguel Torga, e poetas, como Florbela Espanca, António Aleixo, Eugénio de Andrade ou José Gomes Ferreira ?
Malhas que o império tece, jaz morto e apodrece em campa rasa, quem da Nação dizem que não é Gloria nem Exemplo a seguir.
Setúbal 2014.06.02
foto victor nogueira
foto victor nogueira
foto victor nogueira
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