* Victor Nogueira
30 de setembro às 20:31
O milho está crescido e colorido de verde seco, uma cortina no horizonte. De repente um bramido contínuo ecoa pelos ares, mas não consigo identificar a sua origem. De súbito ergo os olhos para lá da janela e quase ao alcance da mão, passa uma ceifeira-debulhadora seguida dum tractor com atrelado.
Este ano, ao contrário dos anteriores, os trabalhos começaram lá mais para norte, na extrema do campo que a minha vista alcança, terminando aqui junto ao quintal. Partículas de folhedo esvoaçam pelo ar e uma e outra ave levanta voo. Pouco depois o campo está raso e a partir de amanhã bandos de pássaros, em formações mais ou menos cerradas, debicarão o solo em busca de grãos de milho.
2 de outubro ·
foto victor nogueira - no mindelo, o campo depois da ceifa e debulha, mecanizadas e sem cantes nem milho-rei
O campo está lavrado, o horizonte desafogado e o restolho e caules que permaneceram, hieraticamente verticais, alinhados em filas rectilíneas, estão coloridos dum amarelo seco, acastanhado, ou dourado pelos raios de sol que reflectem. Ainda são raros os pássaros saltitantes, debicando ou voando em formações cerradas.
No muro do quintal saltitam melros e talvez pardais, mas o saber ornitologico não é a minha praia.
4 de outubro
Ao meu olhar estás bela, libertando o riso, o sol, as lágrimas e o mar. Na praia deserta e com um marulhar contínuo, passam peregrinos, solitários ou aos pares, a caminho de Santiago de Compostela. A manhã está quente, soalheira. O céu e o mar estão azuis e, plácidas, rendilhadas de branco, as ondas espraiam-se junto à costa mergulhando no areal por entre os sargaços ou por entre os rochedos na Ponta ds Gafa, antigo porto piscatório na enseada, Imagino-te ao meu lado, quando fugazmente me dás o braço e uma enorme serenidade entra em mim, breve, muito breve, porque tudo não passa afinal de imaginação ou memória.
5 de outubro
A frialdade húmida penetra até ao turano dos ossos. Ao contrário de ontem, não se ouve o roncar cíclico dos aviões descolando lá mais para sul, em Pedras Rubras.
A casa está fria, apesar das janelas escancaradas ao sol, que ao longo do dia em todas elas bate. Na varanda virada a sul o calor em dias soalheiros aquece o corpo e a alma.
Tudo é silêncio, salvo o rolar no empedrado da rua ao passar um raro automóvel. É memória apenas ou simples imaginação a concha da tua voz ridente ou o teu cantarolar enquanto no vaso vais pondo flores, a tudo dando outra vida e bom sabor.
Vila do Conde - Nau quinhentista (réplica)
FLOR DO MAR sem GUARIDA
1. É bom ter
quem nos afague e faça companhia
e nos diga:
olá, bom dia
com alegria e fantasia.
2. É bom ter quem nos aguarde
uma casa aberta
onde o fato não aperta
riso pleno de sol e mar
sem noite em noite de luar!
3. É bom pensar em ti
como nave que sorri
na brisa do meu olhar.
4. É bom falar-te sem dor
com valor, satisfeito
perfeito, uma flor.
5. É bom estar contigo
num passeio sem receio
com amizade
ternura de permeio.
6. É bom que os gestos não sejam novelo
enleado, em atropelo,
e que as palavras não sejam punhal
quando me recebes mal!
7. Este é um fraco poema
pobre teorema
rima que não rema
perdida na tua calema!
1991.04.05
Paço de Arcos // Lisboa
A tua presença na minha casa
Enche o ar de color e alegria,
Arte, doce, terna, bela magia;
Assim meu coração ganha outra asa.
Espantando a tristeza que arrasa
Rio, danço com tua cantoria;
Cozinhamos o pão que não esfria
Brincando, procuramos boa vaza!
Com tua feição nos vasos pões flor
A tudo dando vida e bom sabor;
Caricio teu corpo, os teus lábios,
Afago teu rosto, aparto as dores;
A rua, plena de sol e louvor,
É verde planura com riso dos sábios.
,
Setúbal 1989.09.05 (3)
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