Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Encerrado ...


montagem a partir de foto de J. J. Castro Ferreira

Destaque duma foto de Rui Pedro

Fotógrafia destacada dum conjunto - Nogueira da Silva
(Lisboa - o regresso da família em 1975)

auto-retrato

Susana Silva (Mindelo)

Joana Princesa - musa de muita poesia sobre o amor e o brincar- tal como a Maria do Mar
(Porto)

Fátima P. (Buçaco)
a navegadora e anotadora nas nossas viagens em Portugal de lés a lés

Rui Pedro
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... por falta de leitores, de comentários, de nível ou de interesse. Ou tudo junto.
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Autores das fotografias creditados
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Grafittis e civismo


por bernardino guimarães arquitecto

Talvez fosse importante estudar este fenómeno que nos assalta em cada rua e esquina
arquivo jn
Temos de chamar feio ao que é feio. Poluição ao que é poluição


Sei perfeitamente que se trata de um tema delicado para alguns, cheio de encruzilhadas onde avultam direitos presumidos e até interpretações diferentes de estéticas e comportamentos. Refiro-me aos graffitis que rabiscam e poluem a cidade, as cidades, emergindo em cada superfície adequada, cada muro, sobretudo cada edifício, público ou privado, que tenha sido pintado ou refrescado há pouco tempo. Os autores (desconhecidos) destas"expressões" urbanas têm - como a Natureza - horror ao vazio. Talvez devesse escrever, ao limpo. Sinais indecifráveis, hieróglifos tortos e bizarros, simples riscos sobrepostos e misturados. Acumulam-se nas paredes da cidade. Dizem-me que parte desses grafismos pouco agradáveis não têm significado - o que não é de estranhar. Mas também consta (mito urbano ou realidade?) que certas rasuras, certas manchas de cor, feitas a "spray" nervoso e nocturno, podem ser códigos privados, ou então graçolas reservadas, sinalética de "tribos" e maneira secreta de demarcar território e espalhar gritos de guerra.
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Confesso que já não sei o que pensar. Alguns graffitis parecem denotar certa coerência na sua ostensiva fealdade. Outros nem isso. Vão invadindo tudo mas nem essa omnipresença os torna inteligíveis, até porque onde figuram letras e desenhos a confusão parece ser ainda maior.
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Talvez fosse importante estudar este fenómeno que nos assalta em cada rua, em cada esquina, mesmo em monumentos e até ( já vi uma vez) em inocentes árvores. Encontrar-lhe as motivações e o sentido (se o tem), procurar intrincadas origens em áridas realidades sociais e urbanísticas, nas ignoradas vidas de uma parte dos jovens(?) habitantes da selva urbana... seria sem dúvida útil desvendar alguma coisa disto.
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Até que tal esforço seja feito, ao cronista só ocorre uma palavra - vandalismo. Pode ser que seja precipitado, pode ser que seja algo injusto. Convém, no entanto, esclarecer que estamos muito longe, por exemplo, dos murais" proletários" do pós-25 de Abril e mesmo do ácido humor das pichagens anarquistas de há uns anos.
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O que se vê nos graffitis que mancham agora o espaço público é radicalmente diverso - a intenção parece ser (sublinho o parece) mais ocupar terreno, inquietar pela falta de decoro e de estética, do que expressar o que quer que seja ao cidadão passante. Sendo assim, não se vê que a inviolável liberdade de expressão seja para aqui chamada!
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Claro que esta poluição anónima, que não poupa nem respeita nada, contribui para um sentimento generalizado de insegurança, de abandono e desmazelo - que vem juntar-se a outros factores de degradação, que não é raro vermos nas nossas cidades do cuspir para o chão até aos espaços verdes prometidos que acabam em cimento, do buzinar idiota dos automobilistas, até às "requalificações" urbanas pretensiosas e mineralizantes.
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Ou ainda a falta de cuidado nas obras de rua, os dejectos caninos carinhosamente disseminados, as podas que destroem e mutilam as árvores da via pública, os automóveis estacionados nos passeios.
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O cenário pesado e deprimente das urbes dispensa mais contributos - é já preocupante e todos, por acção ou inacção, somos responsáveis. Silenciar - mesmo que por causa de bem intencionadas e politicamente correctas inibições - o mal que fazem os tais graffitis, aos nossos olhos e espírito, ao património colectivo, não parece ser atitude defensável. Mesmo sendo problemático e incerto qualquer esboço de solução para tal praga, havemos de chamar feio ao que é feio, poluição ao que é poluição, falta de civismo ao que não pode ter outro nome!
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blguimaraes@clix.pt

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Grafittis, tags, riscos, códigos

Segunda-feira, 20 de Março de 2006

Grafittis, tags, riscos, códigos


(Amesterdão, Agosto de 2005)

Não fazia ideia do que era a cultura urbana Hip Hop, mas diz-se que tem regras próprias. Haverá uma ética Hip Hop? Estará contemplada nesse livro de estilo a não invasão abusiva do espaço público e privado? Ou prevista a utilização exclusiva de paredes degradadas para pintar?
Continuar a ler

Parece-me que nos pintadores de paredes há claramente grupos com motivações e gostos distintos, e não se pode associar a cultura Hip Hip a muitos dos rabiscos que vemos crescer nas paredes dos prédios. O grafitti da fotografia em cima agrada-me, também por ter sido realizado num espaço vazio, num parque de estacionamento, mas desagradam-me os riscos, assinaturas, o que for que invada de forma anárquica as paredes dos prédios e monumentos.

A questão é: o que fazer? Como evitar? Como prevenir? Como impedir? Como dissuadir?

Será a repressão a única, mais eficaz e exequível maneira de acabar com os rabiscos nas paredes, estas formas medíocres de grafitti? Como resolver esta questão sem recorrer à violência, sem dizer disparates "à machão", sem optar por uma solução dispendiosa?
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in

viveraltadelisboa.blogspot.com


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Sexta-feira, 17 de Março de 2006

Perceber os Tags








Throw-ups na Alta de Lisboa

O post Riscos nas Paredes do Tiago deixou-me curioso acerca dos Tags, por isso resolvi vaguear um pouco pela Internet para saber mais sobre este fenómeno. Percebi então que os tags são bem mais que riscos na parede, tem uma história, obedecem a regras e acima de tudo são uma forma de afirmação individual. Partilho aqui o pouco que já sabia e o muito que aprendi entretanto, não quero avaliar se são bonitos ou feios os se quem os faz devia ou não ir para a prisão, é um pequeno texto muito básico sobre as assinaturas que vimos espalhadas por todos os cantos da cidade (ou será do mundo ocidental?).

No final dos anos 60 na cidade de Nova York vários indivíduos começaram a escrever o nome nos edifícios e nas estações de metropolitano. O primeiro writer a ganhar notoriedade foi um jovem de descendência grega de nome Demitrius que encheu a cidade com o seu tag TAKI 183. Em 1971 o jornal New York Times encontro-o e conseguiu entrevista-lo, numa tentativa de perceber e explicar o estranho fenómeno.

Os Tags acabam por ser assinaturas que tal como graffitis estão intimamente associados a cultura HIP HOP, que assenta em três bases – Rap, Break Dance e Graffiti. A cultura HIP HOP tem vindo a desenvolver-se deste meados dos anos 70 e tem actualmente uma força imensa, empresas multinacionais de roupa e artigo desportivos vigiam atentamente e inspiram-se neste movimento que acaba por ser uma referência em termos de estilo para os jovens de todo o mundo.


Continuar a ler
Há uma terminologia especifica para cada tipo de intervenção, os Tags são os mais simples e consistem exclusivamente na assinatura do writer , depois há o throw-up , que é também o nome do writer desenhado rapidamente a duas cores, a base normalmente é branca e tem letras arredondadas desenhadas por cima numa segunda cor . Por fim temos a piece, que para quem não está por dentro chama grafitti ou seja, um trabalho de maiores dimensões desenhado normalmente com várias cores.

Glossário (muito, muito resumido):

.Crew – grupo organizado de writers
Piece – Diminutivo de masterpiece, trabalho mural onde são normalmente utilizadas várias cores.
Tag – A forma mais simples de “graffitar” consiste no desenho da assinatura do writer
Throw-ups – asssinatura do writer a duas cores, normalnente em fundo branco
To Bomb – Consiste em fazer um elevado numero de tag ou throw-ups
Writer - Aquele que faz graffitis ( Incluindo todos os tipos de graffitis mesmo Tags)
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Em Portugal todos os termos utilizados são todos em Inglês.
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referências:

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h2t

ethnograffiti
wikipedia
Art Crimes

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Terça-feira, 14 de Março de 2006

Riscos nas paredes


Na Alta de Lisboa, com as fronteiras tão bem definidas visualmente entre condomínios de venda livre e edifícios de realojamento, as generalizações são muito óbvias. O elaborado raciocínio "é dos nossos ou é dos outros" prevalece ao esforço e paciência para encontrar as causas das coisas. Essa simplificação subsiste de parte a parte, mas agora parece que também, como já era previsível dada a natureza do preconceito, de condomínio de venda livre para condomínio de venda livre.

Esta fotografia, tirada em Alfragide, é para aqueles que, tendo um espírito gregário muito forte, acham que os grafitti são todos feitos por "pretos que deviam voltar para a terra deles".

25 comentários:



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Torres Vedras, Sobral de Monte Agraço e o que mais se lerá

* Victor Nogueira
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Torres Vedras

Passei por Torres Vedras já era noite adiantada. Pareceu-me uma terra incaracterística, feia, lembrando o Montijo. Ruas íngremes, os passos ressoando na calçada deserta, levavam ao Castelo, cujas portas se encontravam fechadas, sendo por isso impossível visitá-lo.

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Torres Vedras ficou na história devido ao sistema de muralhas defensivo construído a norte de Lisboa, numa zona montanhosa, para impedir, com êxito, a tomada de Lisboa pelos exércitos napoleónicos em 1810, comandados pelo General Massena e detidos pelo General Wellington. (Notas de Viagem, 1997.07.08)

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O castelo, danificado pelo terramoto de 1755, é uma ruína, subsistindo alguns panos de muralha, para além da Igreja de Santa Maria do Castelo ou de N.Sra da Anunciação, com dois pórticos românicos. Vista deste local a cidade é feia. Daqui descemos ao centro histórico, de aspecto agradável, com ruas pedonais. As ruas têm nomes expressivos, como as travessas da Paz, do Castelo e do Quebra Costas. As ruas rebaptizadas referem na mesma os nomes de outrora: antigas ruas dos Balcões, da Misericórdia, dos Canos, do Açougue dos Clérigos, da Judiaria, dos Cavaleiros da Espora Dourada, do Terreirinho, da Cerca (1º de Dezembro), a antiga travessa das Olarias ou o antigo Largo do Grilo, para não falar no Outeirinho, actual Praça da República. A antiga Estrada Real 61 denomina se presentemente Rua 9 de Abril. O Chafariz dos Canos, gótico, ameado, do século XIV, embora mais rico, é similar à Fonte das Figueiras, em Santarém. Nalgumas ruas existem capelas como em Setúbal, os passos da via Sacra da Crucificação de Cristo.

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Numa praça ajardinada, com um obelisco, memorial às batalhas do Vimeiro e da Roliça, visitamos o Convento dos Agostinhos Calçados (Igreja e Convento da Graça), onde está agora instalado o museu municipal, embora a Igreja esteja aberta ao culto. A arqueologia é a componente principal do Museu que, para além disso, possui uma sala dedicada às invasões francesas, com armamento, gravuras, maquetas e fardamento, para além doutras secções com louças e armários. Nos claustros, agradáveis, estão sendo reconstituídos e restaurados os azulejos primitivos, com a vida de S. Gonçalo de Lagos, o Santo Patrono, que andavam dispersos por várias entidades ou armazenados num sótão, após a extinção das ordens religiosas no século XIX. Noutra sala estão expostos primitivos portugueses, provenientes do retábulo da Igreja de N.Sra. do Ameal.

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É dia de S. Gonçalo e o museu, neste domingo, está excepcionalmente aberto aos visitantes, atendendo nos os funcionários simpaticamente e convidando-nos para confraternizar e compartilhar com eles o jantar, transportado do exterior em grandes panelões, pois viemos de tão longe - Setúbal - e deste modo querem obsequiar nos. Mas declinamos o convite e prosseguimos o passeio, agora novamente nocturno, pelas ruas da povoação.

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Doçaria típica desta região são, vejam lá, os pasteis de feijão!

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O aqueduto com dois km. que transportava a água para a povoação, nalguns troços apresenta arcos duplos, como o de Estremoz, embora menos imponente.

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Na parte nova existem muitos edifícios Centro Comercial e o trânsito é intenso. A Câmara funciona no antigo edifício da Escola Industrial.

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O museu dá conta das povoações pré históricas existentes na região, de que é exemplo o Castro do Zambujal, num dos contrafortes da serra de Varatojo, com o rio Lisandro correndo lá no fundo da ribanceira., a 3 km de Torres Vedras. que não visitei desta feita. (Notas de Viagem, 1997.10.27)

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Em nova viagem visitamos o convento do Varatojo, depois de nova passagem por Torres Vedras e nova sessão de fotografias: o edifício não está visitável à hora que chegamos e exteriormente nada de especial lhe encontro. Situado numa das faces dum pequeno jardim, à entrada principal tem-se acesso descendo uma escadaria azulejada, que dá acesso a uma portaria com portal gótico. (Notas de Viagem, 1998)

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Bombarral

Chegámos ao Bombarral, terra dos vinhos. Lá vi diversos homens com o barrete ribatejano, verde e vermelho. (1963.09.8/9 - Diário III)

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Ao passar pelo Bombarral, desisto da visita e prossigo para Torres Vedras, por estreita estrada de infindas curvas e contracurvas. A vila não terá muito para ver e ainda não é desta que fotografarei os azulejos da estação ferroviária, que parecem ser um ex-libris da povoação pois surgem em inúmeros folhetos turísticos. (Notas de Viagem, 1997.10.27)

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Sobral do Monte Agraço

A viagem para Sobral de Monte Agraço faz se já de noite, contingências dos passeios em curtos dias de inverno. Da ruralidade da paisagem não me apercebo, mas sim e apenas do relevo do terreno, ora subindo, ora descendo, ora curvando, ora contracurvando. A povoação fica lá em baixo, mas é uma desilusão. Uma igreja barroca, na Praça da República, e um teatro (Eduardo Costa?), perto da Praça Dr. Eugénio Dias (médico dos pobres) com elegante coreto, busto do homenageado, fontanário, edifício da Câmara e uma residência do século XIX. As lojas têm um ar de antigas, na sua decoração interior. Mais adiante um outro largo arborizado, a praceta 25 de Abril, de edifícios recentes, permanecendo por enquanto uma casa estilo chalet, com um corpo estreitinho, lateral, estilo pequeno torreão, e restaurantes com nomes curiosos: Café Montagreste, Café Restaurante A Toca do Coelho, Restaurante Pé de Galo, Pastelaria Pan Diogo ... Já na saída da povoação a nossa atenção é desperta pelos painéis de azulejos do matadouro municipal (1940), representando cenas relativas à criação de gado: suinicultura, o pastor com as ovelhas, o ganadeiro com vacas e vitelos ... O adiantado da noite não dá para procurar as casas azulejadas e as varandas de ferro fundido referidas pelos livros.

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As ruas ostentam ainda cartazes da campanha eleitoral para as autarquias. Insólitamente, os do CDS/PP (Centro Democrático Social tranfigurado de Partido Popular) afirmam Só prometemos trabalhar. Curioso, esta do partido do grande patronato, que aliás não define o sentido da sua trabalhia!

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Não é desta que visitamos as ruínas das Igrejas de S. Salvador (século XII) e do Salvador do Mundo. Prosseguimos viagem em busca da Igreja de S. Quintino, (1) do século XVI, insólita porque na sua fachada principal coexistem um imponente portal manuelino e um pequeno portal gótico, emparedado, este sobressaindo na parede de pedra não rebocada. Defronte, no adro, um telheiro com bancos, sítio onde talvez o povo se juntasse para conversar abrigadamente. Com o templo fechado não dá para visitar os paineis de azulejos dos séculos XVII e XVIII que cobrem as suas paredes.

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Prosseguimos a viagem em busca de Sapataria, mas antes detemo-nos em Gozundeia e na Patameira, situadas nas margens dum rumorejante riacho e da linha do caminho de ferro. Trata se de acessos perigosos, pois as passagens de nível não têm guarda. Desta última povoação registo as ruas da Fonte e de Baixo Guarda, para além da calçada do Fincão. Não encontramos a Capela de N. Sra da Luz, pois a escuridão é total e as ruas estão desertas. Pelo que não resta senão procurar a povoação seguinte ... (Notas de viagem, 1998.01.--)

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Sapataria

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... e a Igreja de N. Senhora da Purificação (século XVI), com modesto pórtico manuelino e moderna torre sineira. A povoação é enorme, com ruas estreitas e casas parecendo se com as do Norte, com dois pisos; num largo persistem alguns edifícios antigos, um deles senhorial - com escadaria exterior, capela e portão brasonado - e outro com varanda alpendrada, como as do renascimento. Perto visitamos a Moita. Da toponímia anoto as ruas da Fonte, do Campo e das Faias, bem como a travessa de S. Sebastião, onde se situa uma modesta capela com um campanário lateral e cruzeiro no adro, a que não podemos aceder por estar encerrado o portão.

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Dado o adiantado da hora é difícil encontrar onde jantar, pelo que regressamos ao restaurante O Ferrador, cujos donos nos contam curiosidades da terra, como sejam a origem do seu nome, derivado dali se fabricar o calçado para a tropa. Do terraço da casa mostram nos o Monte do Moinho do Céu, de que se distingue o piscar das luzes para a navegação aérea.

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Nesta viagem passamos ainda por Almargem, povoação de casas pobres, com construções que me parecem respiradouros dum aqueduto, para além duma igreja modesta, parque infantil e poço. (Notas de viagem, 1998.01.--)

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1 - Visitável aos sábados e domingos das 13 às 18 horas, e nos outros dias através de marcação pelos telefones 941 877 ou 941 339.

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terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

De Caldas da Rainha à Lourinhã

* Victor Nogueira
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Saímos de Caldas, passamos por Amoreira já referida noutro local e chegamos a ...



Serra d'El Rey


De inverno o dia escurece rapidamente e as últimas fotografias em Serra d’El Rey são já feitas ao anoitecer. Retenho a igreja de S. Sebastião, com um vitral deste orago por cima da porta principal; no interior a sua vida contada em paineis de azulejos. Na torre sineira dois relógios rivalizam entre si, um deles mecânico que ao escurecer leva a melhor sobre o outro, que não é senão um relógio de sol. Dambulamos pelas ruas até depararmos com uma série de janelas manuelinas: trata-se do Paço Real, por onde pass(e)aram D.Pedro e D.Inês, que fotografo no regresso, já noite cerrada. Lateralmente as paredes estão em pedra, com as janelas góticas emparedadas. A este Paço, conhecido por palácio da serra a par de Atouguia, os reis vinham para montarias e pescarias e para satisfazê-los lá estavam os agricultores e pescadores. Por exemplo, os pescadores de Salir do Porto , nas terras da Rainha, estavam obrigados a manter um determinado número de caravelas para pescaria e a fornecer ao rei 1/3 do pescado, para que este e sua comitiva pudessem sobreviver durante as estadias por estas paragens ou por Monte Real.

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O adiantado do escurecer impede-nos de apreciar as belas paisagens em redor, tendo como limite o mar e o horizonte longínquo.

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-------Da toponímia retenho as ruas dos Matos, dos Bombeiros Voluntários, da Varzinha, do Pai Cavaleiro, do Rossio, dos Penedos ... o largo D.Inês, a travessa do Campino. Pelos arredores alguns moinhos, um dos quais fotografo já com o sol a pôr-se para lá dele, num retrato pouco conseguido.

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-------Nos arredores, perdido no meio do campo, a igreja de N. Senhora do Amparo, brilhando na sua alvura, cercada por um muro alto que se franqueia através dum portão lateral.

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A caminho de Atouguia da Baleia, próximo objectivo, em Coimbrã uma placa indica a existência dum cruzeiro, pelo que toca a fazer uma inversão de marcha para um pequeno desvio, acabando por encontrar um cruzeiro manuelino, perto do beco da Memória: num recanto ajardinado, com palmeiras, flores e arbustos, sob um coberto; o cruzeiro apresenta numa das faces Cristo na Cruz e na outra, morto, nos braços da Mãe. Dentro da povoação um moinho bem conservado, da Senhora da Memória. Que memórias são estas não consigo saber desta vez. De nomes com história apercebo-me apenas da rua do Ribeirinho e da travessa do Canto. (Notas de Viagem, 1997.12.05 e 1998.02.23)



Atouguia da Baleia


Finalmente Atouguia da Baleia, cujo nome primitivo era Touria ou Touguia, derivado da palavra touro, onde chegamos já noite cerrada, encontrando as ruas iluminadas, algumas com enfeites luminosos de Natal; iluminados estão também os monumentos, chamando imediatamente a atenção a Igreja barroca de N. Sra. da Conceição, com galeria e duas torres sineiras, cujo interior, pela sua simplicidade, contrasta vivamente com o seu exterior.

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A vila possuía um castelo, de que restam alguns vestígios, para além de pelourinho e dum cruzeiro quinhentista, com duas faces, uma representando Cristo Crucificado e outra N. Sra. da Piedade, tal como sucede com o de Óbidos.

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Teve esta povoação outras denominações, como Atouguia d’El Rey ou Atouguia da Pescaria, e da sua antiga importância dão testemunho o pelourinho manuelino e a Igreja românico gótica de S. Leonardo, que lhe fica defronte num pequeno largo com algumas casas importantes. Leio que ao interior da igreja merece visita, que o adiantado da hora não permite. Na entrada principal um letreiro reza a sua história, que remonta ao tempo de D. Afonso Henriques, e dela registo que um osso de baleia sustentatava o telhado, primitivamente. Muito corroídas pela acção do tempo são os capitéis da porta principal, com motivos animais e vegetais.

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No largo onde fica a igreja da Conceição e um cruzeiro, emergindo do solo, colunas de pedra, rudemente talhadas, com três buracos sobrepostos, são os vestígios que restam do antigo touril, onde se criava gado bravo e se realizavam touradas. Presumo que os orifícios serviriam para suster os barrotes que limitavam e cercavam o touril. Quer no largo de S. Leonardo, quer neste, na calçada à portuguesa, figuram touros estilizados. Neste largo da Conceição existe um coreto e um pequeno e aprazível jardim e, noutra direcção, à saída da povoação, a caminho do Baleal, deparo com uma modesta igreja, que não identifico, mas que tem por cima do portal principal um baixo relevo que encontrei noutras, representando dois braços cruzados sob uma cruz. Nas trazeiras da igreja da Conceição, por uma espécie de azinhaga, vai dar se a uma fonte gótica, um tanto ou quanto degradada.

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Perguntarão? Uma povoação tão antiga e curiosa e ainda não se referiu a toponímia?! Pois aqui vai o registo: ruas da Fonte, do Oitão, D. Pedro I, do Ouro, do Clara, do Meio, Direita (com uma cruz de pedra numa parede), da Misericórdia, da Porta do Sol, do Celeiro ... e travessas como as De Trás, do Adro, do Loureiro ... o largo do Oitão. Paradoxalmente a rua Direita é mesmo direita. Nalgumas ruas pequenas capelas dos passos da via sacra. Na parte antiga existem muitas casas arruinadas, o que dá um certo ar desolador às ruas.

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Seguimos viagem, não conseguimos encontrar a povoação do Baleal, passamos ao lado do Peniche e, atravessando o negrume da noite, acabamos por desembocar na Lourinhã. (Notas de Viagem, 1997.12.05 e 1998.02.23)



Lourinhã


Viemos em busca desta povoação na sequência dum programa televisivo de José Hermano Saraiva, Horizontes de Memória, a ela dedicado. Da memória do programa ficaram-me as imagens e as histórias do cabeço onde outrora ficava o castelo e hoje se encontra uma igreja gótica, do século XIV, com magnífica vista de campos cultivados, que outrora alimentavam Lisboa, pesasse embora o desprezo da burguesia pelos saloios que a alimentavam, bem como as pinturas da antiga Misericórdia salvas do desbarato anticlerical do século XIX, para além dos ovos de dinossauro preservados no museu local.

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Mas disto apenas encontramos a igreja, porque a noite é adiantada, a vista não rompe a escuridão e as portas se não abrem apenas porque tal seja meu desejo.

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As pessoas vão para a missa à Igreja do Convento de Santo António, em cujo interior painéis de azulejos contam a vida de Santo António. As ruas estão iluminadas devido à quadra natalícia e engalanadas com a propaganda eleitoral. Lateralmente à igreja um largo parque de estacionamento, bordejado pelo Tribunal, Correios e quartel de Bombeiros, as camionetas da carreira estacionadas na garagem das estrelas. No outro lado da igreja um pequeno largo ajardinado com praça de táxis, donde partem uma série de ruas pedonais bem, conservadas, que percorremos. Contudo esta boa conservação é apenas para inglês ver, pois que as interiores estão mal cuidadas! Da toponímia registo apenas a travessa da Misericórdia e as ruas dos Arcipestres e da Misericórdia. Nesta última encontra-se a igreja do mesmo nome, com um portal manuelino, para além duma discoteca a cuja entrada inúmeros jovens cavaqueiam. Seguindo pela rua acima chegamos a uma escadaria, após a qual deparamos com a trazeira da igreja gótica, iluminada, cercada de andaimes. (1)

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Daqui seguimos para Praia d'El Rey, terra de marisco, mas o negrume da noite em nada facilita a diligência, pelo que nos encontramos a descer rumo a Lourinhã, cuja igreja matriz brilha lá em baixo no cimo do cabeço, feericamente iluminada.

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Neste circuito ainda tomo notas sobre Atalaia, povoação simpática sem nada de relevante, salvo a existência duma igreja moderna com ninhos de andorinha e torre sineira, tocando as horas com sonora Avé Maria! (Notas de Viagem, 1997.12.05)

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1 - Neste local ermo apanhamos um valente susto. Ao contornar a igreja, encontramos uma motocicleta estacionada, mas prosseguindo, afoitamente, chegamos à fachada principal, que não tivemos tempo de admirar e fotografar, pois alguém assomou e gritou por entre os arbustos; resolvemos abreviar a visita e procurar local menos isolado, incomodados pelos passos rápidos que se aproximam até que surge um jovem de capacete na mão, olhar esgazeado e fixo, dirigindo se-nos sem responder às minhas interpelações, sempre a direito em direcção a nós, sem que eu encontre no chão algo que permita defender-me. [E nem sequer me lembrei que poderia utilizar a reflex, antiga e pesada, no estojo a tiracolo, como arma defensiva. A máquina ficaria desfeita mas a cara do moço também. Já em Valença do Minho, desta feita sozinho, altas horas da madrugada, ao procurar um ângulo para colocar o tripé, ao avançar, caí desamparado do passeio e a minha única preocupação foi salvar a reflex, não a largando ou caindo em cima dela. Em resumo, a máquina salvou-se mas eu caí desamparado sobre o lado esquerdo, batendo com a face no lajedo, ficando todo esfolado na cara, no braço e na perna, apesar das calças. Afinal a reflex teve um fim inglório na Póvoa de Varzim, ao pousá-la, sem olhar, no assento duma cadeira numa pastelaria: caiu ao chão e como estava com a teleobjectiva colocada ficou sem conserto e sem possibilidade de focagem] Mas ... voltando à Lourinhã:

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Tratava se afinal dum surdo mudo, que pareceu querer falar-nos das obras na igreja, cuja conversa procurei abreviar pois poderia apenas estar a entreter-nos até aparecer mais alguém. Conseguimos largá-lo e ele foi noutra direcção interpelando alguém mais além na rua deserta, o que em nada contribuiu para aumentar o nosso sossego. Estugámos o passo, descemos a escadaria rumo ao grupo de jovens, ouvimos uma motorizada aproximar-se, alcançamos os jovens e a motorizada passa por nós, pára e o jovem mudo faz grandes gestos de alegria por encontrar-nos e segue viagem rumo ao largo lá mais abaixo. Não ganhámos para o susto! Mas resolvi voltar à igreja, para admirá la, desta feita de carro, mas nem parei para fotografá-la, quando lá encontrámos dois ou três carros despejados dos seus ocupantes, rapazes de mau aspecto àquela hora tardia e solitária, pelo que seguimos viagem sem abrandar, não fosse aquele local de prostituição e tráfico de droga!

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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Deambulando pelos arredores de Lisboa - Cascais, Sintra e Agualva-Cacém

* Victor Nogueira

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Cascais

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Situa-se numa baia amena. A Câmara, com frontaria de azulejos, situa se numa largo pedonal, calcetada, onde... passam carros.. A Cidadela é uma fortificação imponente, numa praça ajardinada e arborizada. Perto, o Museu Biblioteca dos Condes de Castro Guimarães, no Parque da Gandarinha, com aprazível jardim e praia privativa. Dá na vista a fachada azulejada do edifício onde estão instalados os Paços do Concelho e que foi residência do Conde da Guarda. Nos arredores, na Estrada do Guincho, praia de dunas donde se avista ao longe a serra de Sintra, situa se a Boca do Inferno, arriba rochosa e cavernosa onde o mar bate com violência, onde se realiza uma feira ao longo da estrada. (Notas de Viagem, 1997)

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NOTA - Voltei depois muitas vezes a Cascais, uma vila cujo centro histórico está completamente descaracterizado. Havia, não sei se ainda existe, numa rua pedonal, uma livraria de hoje no r/c e montes de alfarrábios na cave e em expositores no passeio. O dono, simpático, tinha um ar muito british e eu já quase que fazia parte da prata da casa devido às minhas aquisições bibliográficas, algumas delas autografadas por autores conhecidos e relativamente célebres. Só me lembro de duas très edições: Branquinho da Fonseca, Bernardo Santareno e Carlos Selvagem. Aos anos que não voltei a Cascais, onde também ia a uma feira do livro, pequena, no jardim à beira da Caixa Geral de Depósitos e onde paravam as carruagens puxadas a cavalo e o mini-combóio, para turista passear.
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É uma terra com muita actividade cultural, como provam os seus inúmeros museus e salas de exposições, uma delas no edifício recuperado dum antigo convento, onde uma vez salvo erro se realizou uma exposição com desenhos eróticos de Picasso, num aprazível jardim, onde também existe um dedicado salvo erro às campanhas oceanográficas do rei D. Carlos I.
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Nunca apreciei muito a Boca do Inferno nem a Praia do Guincho, esta muito ventosa e desabrigada. (2008.02.25)
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Sintra

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Uff! Que calor! .Até parece o Abril em Luanda! Hoje a temperatura baixou um pouco mais, em relação aos dias anteriores. Mas mesmo assim... O ar está seco e quente; sinto-me pegajoso, indisposto. Calor, só calor; nem uma leve brisa para refrescar; quando corre não é senão um bafo quente. As engrenagens cerebrais estão emperradas, o raciocínio faz-se ao retardador! A casa é um forno, a rua um inferno. Nem sequer tenho tido coragem de ir à praia, não obstante a sedução dum mergulho infindável nas águas do oceano, melhor, do Tejo. Ontem fui com o Manel até Sintra. A viagem de comboio, na ida e na volta, foi um suplício. Mas lá, meu Deus, que paraíso! Um parque aprazível, o rumorejar da brisa por entre as ramagens, a quietude, o sossego! Por lá ficamos largos momentos, eu com a "História da Música Europeia", O Manel com "O Pequeno Lorde" (NSF - 1968.07.24)

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Sintra estende se por além abaixo, casario emergindo do meio do arvoredo ou dos campos verdejantes e ensombrados pelo dia cinzento e chuvoso. Lá ao fundo as montanhas e na mão esquerda uma sandes de queijo e presunto. Daqui a pouco seguiremos até à Boca do Inferno, perto de Cascais. Aqui atrás de mim duas velhotas filosofam sobre as misérias dos católicos (parecem me beatas e quando entrámos [no café à beira da estrada] estava uma desabafando: "o que nós fomos e ao que chegámos! " (...) O comboio de Sintra desliza lentamente lá em baixo no vale. A sandes de presunto e queijo estava saborosa. (1974.01.02)

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Duas feiras têm renome. Uma é a Feira de S. Pedro de Sintra (2º e 4º domingo de cada mês), com mais de dois séculos de idade, instituída para satisfazer semestralmente as necessidades das populações da região, muito afastadas de Lisboa e sem facilidade de transportes. Trata se duma feira eclética, onde se vende um pouco de tudo, desde vestuário a produtos hortícolas e fruta até ao pão saloio, passando pelos alfarrabistas, antiquários e coleccionismo. Outra é a Feira das trouxas, na Malveira, quase diária, onde se vendem roupas bem como artigos domésticos e alimentares. (Notas de Viagem, 1997)

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NOTA - Tal como em Cascais também há carruagens puxadas a cavalo para turista andar. De Sintra apenas gostei de encontrar no Museu dos Brinquedos muitos daqueles que tive na minha infância, a maioria deles que se estragaram e outros por lá ficaram com o regresso dos meus pais antes da independência de Angola. Brinquedos, livros e banda desenhada, tudo o que era meu o meu pai lá deixou, talvez devido à nossa já velha animosidade política, de décadas.

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O Palácio da Pena é muito «rocócó» para o meu gosto e não me lembro de ter visitado o Palácio da Vila, um autêntico labirinto de acréscimos díspares.

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Sintra tem subidas demasiadas para o meu gosto, para não falar no trânsito, ruído e confusão. Ah! mas umas vez meti-me lá por umas ruelas acima, na encosta para o Castelo, ruelas que pouca gente deve visitar e gostei dessa parte. Velharias, monos e calhaus, como dizia a minha filha quando adolescente, resmungando mal-humorada e carrancuda, nas nossas deambulações por Portugal, que adorava quando mais nova. Mas ela agora já me reconheceu por sua livre iniciativa que deve muito a mim devido às minhas deambulações turísticas e visitas a exposições e museus, embora eu esteja no tempo de «pasmaceira» em que «parei» vai para uns cinco anos. (2008.02.25)

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Queluz, Amadora e Cacém


Um desvio na autoestrada, um largo desafogado. Frente a frente uma igreja e o barroco Palácio de Queluz, estilo rocaille, com o seu jardim e salas sumptuosas.


Esta é uma povoação que ainda não parece uma incaracterística selva de betão em múltiplos andares como sucede no Cacém ou na Amadora, povoações parecidas umas com as outras, que não distinguiremos se formos largados de olhos vendados no meio delas. Uma ou outra casita mais antiga é o que resta dos povoados primitivos.


No Cacém uma casa portuguesa que fazia parte duma quinta em ruínas ostenta múltiplos e variados painéis de azulejos, o que aliás predominam na rua onde se situa, testemunho de esplendores passados.


Face à agressiva selva clandestina de betão em que se transformaram Agualva-Cacém e Amadora, ninguém diria que foram terras de bons ares e de quintas aprazíveis onde durante séculos os lisboetas descansavam em veraneio. (Notas de Viagem, 1997)

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domingo, 24 de fevereiro de 2008

Deambulando por Caxias

.* Victor Nogueira
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Caxias
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Fomos ontem tratar da mudança do meu tio [José Barroso] para outro lar, ali no caminho para o Alto do Lagoal, numa vivenda a meia encosta, escondida no arvoredo. Ao chegar lá por um caminho estreito e vicinal. ao sentir aquela quietude, aquele silêncio onde não chegava o bulício das pessoas e da cidade dos homens, uma enorme serenidade tomou posse de mim. Deliciei me com a bela vista para o estuário do Tejo e para a Margem Sul, naquela tarde soalheira com o rio azul refulgindo por entre as clareiras do arvoredo. Os ricos donos da vivenda deixaram na e ela é agora uma casa de "repouso" para pessoas idosas e doentes, muitas das quais já não estão em condições de apreciar aquela beleza e quietude, nem o frondoso jardim, agora descuidado, com as piscinas vazias e o campo de ténis abandonado! (MMA - 1986.08.31)

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Não reconheço em Caxias um núcleo original, que seria talvez junto à estação ferroviária, onde existem algumas casas corridas, e outras, maiores, com jardins em redor. Outro núcleo, mais recente, talvez dos anos 50, situa-se junto ao largo onde está uma gasolineira, a farmácia, o mercado, a mercearia, o talho, a tabacaria, uma loja de pronto a vestir, uma oficina de automóveis e alguns cafés e restaurantes. Um terceiro núcleo congrega a estação dos correios, café, cabeleireira, boutique, consultório dentário e sapateiro. O pequeno edifício do centro comercial junto à estação ferroviária está abandonado, encerrados o restaurante, o café e o clube de vídeo. Hoje Caxias é uma terra de muitas vivendas de traça mais recente, pela encosta acima, com jardins arborizados, atravessada por uma ribeira emparedada, mal-cheirosa, vinda de Laveiras.

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Célebre pelo Forte de Caxias, prisão política no tempo do fascismo e nos tempos subsequentes ao 25 de Abril, nela está também o Hospital Prisional. Para além disso alguns edifícios de quintas, o convento da Cartuxa e Quinta Real de Caxias, recentemente aberta ao público. Nesta destacam-se o jardim geométrico e uma cascata sumptuosa, com estátuas carcomidas pelo tempo. A quinta era lugar de recreio da família real, ao fim do dia, quando veraneava em Queluz. As casas não são sumptuosas e uma delas tem uma varanda com painel de azulejos. Até há pouco estes edifícios albergaram o Instituto de Estudos Psicotécnicos do Exército. O convento da Cartuxa tem defronte da entrada principal, junto à ribeira de Barcarena, um pequeno jardim com oliveiras aparentemente centenárias, num largo com casas com telhado de duas águas, estilo chalet.

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A vila é atravessada por uma ribeira mal cheirosa, denominada de Caxias ou de Barcarena. Por todo o lado moinhos americanos, reminiscência da agricultura que outrora se praticaria na região. Como atrás se disse, a povoação também é conhecida pelo Forte de Caxias, prisão política no tempo do fascismo, mal se avistando da estrada. Hoje toda aquela zona está em obras, uma confusão de pó, arame farpado, edifícios em construção, guaritas e sentinelas. (Notas de Viagem, 1997)

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sábado, 23 de fevereiro de 2008

Mindelo e arredores, passando por Vila do Conde e Póvoa de Varzim

* Victor Nogueira

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A casa que o avô Barroso está construindo no Mindelo encontra‑se numa fase adiantada e é interessante. Tem janelas amplas, uma paisagem encantadora (enquanto não construírem mais casas), quatro salas [assoalhadas], casa de banho e cozinha, além de poço. Alguns pormenores poderiam ter sido melhor solucionados, a meu ver, mas cada cabeça cada sentença. (NSF - 1969.10.17)

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Hoje fomos ( [...], o José João, o Zé e o avô Barroso) ao Mindelo ver a casa que este está lá a construir, [...] airosa. (NSF - 1969.12.31)

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Estive na casa do Mindelo que me agradou. Está mobilada com bom gosto. (NSF - 1970.12.25)

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Gostaria de passar as férias sossegadas, calmamente lendo e estudando, com um mergulho nas ondas e passeios ao entardecer em amena cavaqueira com os amigos ou com as pessoas da terra. O meu avô Barroso tem uma casa no Mindelo, onde há uma praia rochosa que me deslumbra pela violência com que as ondas batem na rocha em cascatas de espuma que salpicam o rosto. Ou então aquele moinho [azenha] que eu visitei ao inquirir dois velhotes, lá para os lados de Arraiolos. Gostava de passar as férias, p.ex., num sítio assim. (MCG - 1973.08.02)

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No Mindelo, onde os meus pais herdaram a casa de verão do meu avô materno, já pouco resta do antigamente, havendo um contraste nítido entre o coração do povoado inicial e as "cogumélicas" casas de grandes ou menos grandes e cuidados jardins que nascem à beira‑mar duma praia rochosa e arenosa que cheira a iodo. Das casas do Zé Povinho, persistem algumas poucas e arruinadas, de granito, que desta feita a máquina fotográfica registou.

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Mas, passado o Verão, o Mindelo e a Póvoa de Varzim retomam a calma e pasmaceira que os "turistas" quebram com o seu "cosmopolitismo" e juventude. Já em Vila do Conde, onde ainda se mantém o ar antigo e uma ou duas ruas manuelinas; (com mais janelas e portas do que em Setúbal), o equilíbrio e o sossego mantém-se pelo ano inteiro.(MBC - 1990.09.19)

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Gosto de ir até ao Mindelo, embora a casa precise de arranjos, designadamente pintura, manutenção dos tacos do soalho e das madeiras de janelas e portas, de um aquecedor de água e de uma banca de alumínio na cozinha.. Fica a poucos metros da estação, com ligações ferroviárias ao centro do Porto (a Sul) ou a Vila do Conde e Póvoa de Varzim (a Norte), em viagens que não ultrapassam os vinte minutos. Para além disso a praia fica a 2 quilómetros. E depois sempre há pessoas que me vão reconhecendo ao fim destes anos. No centro da aldeia o homem dos jornais, o talhante, os donos do minimercado, a rapariga da padaria. Mais adiante, junto à praia, a dona de outra loja, um pouco maior e com maior variedade de mercadoria. Contudo já não gosto tanto do pessoal junto à casa, muitos à espreita de comprarem-na e ao terreno adjacente (...) Gosto da casa e do sítio, mas fica demasiado longe para se ir lá durante o ano.

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No verão a população aumenta grandemente, pois trata-se duma praia muito procurada, com cheiro a algas e maresia, calma na zona rochosa e com ondas alterosas e batidas na zona arenosa, embora fria e ventosa para o meu gosto de pessoa nascida e criada nos trópicos. Deste modo no verão, com o comércio, o pessoal da terra procura tirar o sustento para o resto do ano. Fora isso as pessoas vivem da pesca e da agricultura (por trás da casa há um enorme campo que se cultiva), enquanto na praia se recolhem as algas para adubar as terras.

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Por isso há três zonas habitacionais distintas: a mais antiga e tradicional, onde existem o centro comercial primitivo, em torno do adro da igreja velha, e algumas grandes casas típicas de lavradores abastados como a dos meus bisavós maternos para os lados de Barcelos. Mais perto da estrada nacional, para o sítio onde fica a casa de verão que foi do meu avô materno (um homem na cidade criado numa aldeia e que não perdeu o apego ao campo), abundam as casas de emigrantes, umas mais modestas, outras mais sumptuosas, estilo maison sem arvoredo, encafuadas em minúsculo quintal. Entre estas duas zonas fica a estação ferroviária. A terceira zona, junto à praia e ao longo da costa, é a zona dos veraneantes, mais ou menos endinheirados, com enormes casas no meio de grandes quintais arborizados ou com prédios compridos de vários andares. Neste local fica uma outra zona comercial com frutaria, talho, padaria, minimercados, peixaria, tabacaria, restaurantes e geladaria, entre outros. (MMA - 1993.08.20)

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O Mindelo é para mim um quartel-general donde parto para as minhas explorações paisagísticas e turísticas. Para o interior e ao longo dos rios dão-se belos passeios, com protestos da Susana, que não aprecia ver pedras e monos. (MMA - 1993.08.21)

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O tempo está frio e cinzento, como aliás sucede desde a nossa chegada. No entanto, ao contrário dos dias anteriores, o sol ainda não deu um arzinho da sua graça. Daqui da janela da sala avisto as couves enormes que crescem no quintal e, mais além, os campos verdejantes e, ao fundo, uma mata [um renque] de árvores cujo nome desconheço.

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O Rui e a Susana vêm televisão na sala da frente enquanto a minha mãe dorme no quarto dela. Ainda não fui à praia (o tempo não ajuda, embora esteja cheia de gente) nem dei nenhum dos meus passeios. É difícil fazer andar uma "carruagem" com tantas locomotivas, cada um com seu gosto e hora de levantar. (MFP - 1994.08.21)

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(...) Hoje à tarde fui dar um passeio turístico, aqui pelos arredores, de estradas estreitinhas, com muros de pedra e latadas, ou campos verdejantes. Tirei algumas fotografias para a colecção. Nada mais tenho programado a não ser irmos a Braga, na próxima 6ª feira, e ao Porto um dia destes. Os dias melhoraram, estão mais quentes, mas não me apetece ir à praia. Fora isso vou às compras e passeio‑me por Vila do Conde e Póvoa de Varzim. (MFP - 1994.08.23)

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Na praia faz‑se a apanha do sargaço, na praia, utilizado na adubagem dos campos agrícolas. Aqui situa‑se uma reserva ornitológica. (Notas de Viagem, 1997)

Vila do Conde e Póvoa de Varzim



Fomos até à Póvoa. Uma tarde estival, que me levou a lamentar não ter levado o calção de banho. A cor bronzeada que adquirira e que segundo a Maureen [Baltazar] me dava um ar saudável, desvaneceu‑se há muito, sendo substituída por uma palidez de leite, que um amigo meu, o Martins Pereira, disse, outrora, ser simplesmente nojenta! Ah!, que saudades eu tenho da praia, do ar livre, dos espaços amplos! (1968.09.27)

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A norte do Mindelo ficam Vila do Conde e Póvoa de Varzim, duas cidades de características muito diferentes. Vila do Conde, na foz do rio Ave, é uma povoação antiga, com uma rua com casas do tempo do senhor D. Manuel I, um aqueduto e o Convento de Santa Clara, sobranceiro à ponte que liga as duas margens. Tem uma ampla avenida marginal que a liga à Póvoa de Varzim. É uma cidade de ruas largas, formando uma quadrícula, com jardins espaçosos e casas térreas. A Póvoa, outrora povoação de pescadores, é uma cidade de veraneio, cheia de gente no Verão, com praias ao atravessar da referida avenida marginal. É célebre pelo seu casino, embora a parte antiga seja mais estreita e tortuosa e as casas, em menor escala, parecidas com as do centro burguês do Porto. O trânsito é mais complicado e abundam edifícios de muitos andares junto à praia e na parte nova. Vila do Conde é mais pacata; o movimento aperta apenas às sextas-feiras, dia do mercado ou feira semanal. Na Póvoa [de Varzim] há ruas vedadas ao trânsito automóvel, na zona central comercial, onde se acotovelam os veraneantes. Aqui há também mais comércio e distracções, para além dos cinemas, de um museu de artesanato e duma enorme biblioteca municipal.. Personagens ilustres? Para além do Cego de Maio, célebre pelos náufragos cujo afogamento impediu, temos o poeta José Régio, que nasceu e morreu em Vila do Conde (a casa onde faleceu transformada em museu) e o Eça de Queiroz, escritor cujo humor e causticidade muito aprecio. (MFP - 1994.08.24)

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De José Régio fala também Portalegre, onde viveu e deixou outra casa agora museu, terra onde terá sofrido se acreditarmos na sua Toada de Portalegre. (Notas de Viagem, 1997)

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(...) Os arcos que se vêm para lá da fonte [no claustro do Convento de Santa Clara] são um dos ramais terminais do chamado Aqueduto de Santa Clara, que outrora transportava água para Vila do Conde e constitui um dos seus "ex‑libris". (MFP - 1994.08.24)

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Vila do Conde encontra‑se no caminho de Santiago de Compostela e na foz do rio Ave. Povoação ligada ao mar, possui estaleiros junto à foz e no largo principal. Capela do Socorro, do século XVII, é sobranceira ao rio Ave, com tecto em forma de cúpula semi-esférica, branca, no cimo da rocha, acesso por ruas íngremes de bairro pobre.

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A Póvoa de Varzim é uma vila promovida a cidade, piscatória, atravessada pela estrada nacional. No centro, a rua da Junqueira, novecentista, com edifícios arte nova, varandas de grades de ferro e azulejos policromos, mantém alguns aspectos da urbe antiga, que um crescimento desenfreado descaracterizou. É uma rua pedonal, com muito comércio e azáfama., ponto de cruzamento e convívio das pessoas, especialmente na época estival. Museu e Cego de Maio. No largo principal existe um coreto, a casa de Eça de Queiroz e os Paços do Concelho em edifício com arcadas no piso térreo e azulejado no 2º piso, com torre do relógio, central, e coreto no meio da placa dum jardim arborizado.

O Passeio Alegre, entre o Casino e a Praia, é muito movimentado de pessoas e automóveis, nele se destacando, a sul, uma fortaleza do século. XVIII, graniticamente escurecida. (Memórias de Viagem, 1997)

Caxinas

Terra de pescadores entre Vila do Conde e a Póvoa de Varzim possui a Igreja de N.Sra dos Navegantes, cuja torre sineira tem a forma da quilha dum barco. Caxinas surge com alguma frequência nos noticiários devido a naufrágios e morte de pescadores. (Memórias de Viagem, 1997)

Azurara

Esta povoação já foi sede de concelho, com pelourinho ainda existente. Num outeiro encontra‑se a Capela de Sant'Ana - muito venerada - defronte, o mosteiro de Santa Clara e o Aqueduto, separado pelo rio Ave, onde existem ainda vestígios de azenhas. A igreja de Santa Maria, matriz do século XV, tem um púlpito exterior na torre sineira, tendo alguma semelhança com a de Vila do Conde. O cruzeiro, tal como outros que encontrei por essas terras fora, como em Óbidos, ostenta nas duas faces as esculturas de Cristo na cruz e Santa Maria.

Perto de Azurara, junto ao mar, na margem esquerda do rio Ave, fica a Capela de S. Donato (?), com uma torre ameada quadrangular de janelas góticas (Conferir com FOTOS VNS) - A torre estaria relacionada com a navegação costeira e a embocadura do Rio Ave. (Memórias de Viagem, 1997)

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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Setúbal e a vida quotidiana no muito antigamente

* Victor Nogueira
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Setúbal





A vida quotidiana



Uma breve paragem em Setúbal, para reabastecer a máquina e desentorpecer as pernas. (...) Escrevo enquanto espero o prego, o Compal de ananás e o iogurte de morango, aqui na esplanada dum café duma rua azafamada. O céu escureceu e à minha frente está cinzento. Daqui a pouco deve desabar um dilúvio. Gosto de Setúbal. Não sei bem porquê. É muito diferente de Évora. É mesmo o seu contrário: movimento e vida, azáfama e montes de pessoas, ruas largas e árvores. Reparo mais nas pessoas que em Évora. (MCG - 1972.12.28)

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Demos hoje uma voltas por Setúbal e pela Serra da Arrábida. Os arredores da cidade são muito arborizados e algumas estradas correm junto ao mar (ou rio ?). Mas, contrariamente ao de ontem, o dia de hoje esteve enevoado e chuvoso...

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Tal como em Badajoz, existem ruas por onde só passam pessoas, cheias de lojas. Fui visitar o Museu [Convento de Jesus] que não tive tempo de ver totalmente. Fiquei apaixonado pelos primitivos portugueses (pinturas do século XVI), dum realismo e beleza impressionantes: as expressões, as lágrimas, as ilusões de óptica... Tenho de lá voltar. Agora é que não posso deixar de ir visitar - desta vez - o Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. Também apreciei muito uma escultura chinesa e, sobretudo, um S. Pedro de madeira, cor de camarão, com as veias e as rugas tão reais, tão reais, que se fossem em tamanho natural enganar me ia.

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Terminei a minha digressão turística com uma visita às Igrejas de Santa Maria e de S. Julião. (1) Depois dum lanche frugal, apanhei a camioneta para Cacilhas, depois o ferry-boat para o Cais do Sodré e o comboio para Paço de Arcos. Só me faltou andar de avião. Em Setúbal reconheci o Zeca Afonso. Refreei o impulso de perguntar lhe "Você é que é o Zeca Afonso ?" e deixei o seguir para um café da Praça do Bocage. (MCG - 1972.12.29)

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Daqui da esplanada do café, olhando à minha direita, a paisagem é esta. (2) Olha lá, e se a gente viesse viver para Setúbal? É mais sossegada que Lisboa e é uma hora de camioneta! A tarde está chuvosa, o café está cheio de gente, rapazes e raparigas, e a passarada faz uma chilreada enorme por entre as árvores. (MCG - 1973.11.01)

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Cá arranjei um quarto (só quarto) em Setúbal, para os lados do Hospital.(3) Fica um pouco longe da Escola, mas há transportes regulares e relativamente frequentes, que passam mesmo ao pé da EICS [Escola Industrial e Comercial de Setúbal]. Praticamente ainda não tive uma única aula, umas porque são nuns pavilhões, que não estão construídos, outras, ou não apareceram os alunos ou só um ou dois.(4) Aborrece-me o ofício de professor e ainda mais nestas condições, andando por aí o dia inteiro ou enfiado no quarto, sabendo que em Julho levo um pontapé e recomeça tudo. (NSF - 1978.01.11)

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(...) Olho pela janela e um rebanho de ovelhas vai ali pela placa central da avenida [Bento Caraça], por entre a lataria dos automóveis, vestígio do tempo em que esta era uma zona rural, como testemunham o olival além atrás e os nomes das ruas do Bairro da Belavista. De repente aumenta o movimento automóvel e apercebo-me que é meio dia e trinta e que vão sendo horas de abalada, pois vou almoçar à Baixa, para debater algumas questões político-partidárias.(....) (1986.12.03)

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Olho pela janela da sala e o campo florestado estende se até ao horizonte, aqui além cortado por aglomerados populacionais como o Faralhão, Praias do Sado ou Manteigadas, para além dum e outro casal. (MMA - s/data [1986.12])

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Aqui em Setúbal está uma bela tarde, soalheira, embora este sol de inverno não aqueça e o pessoal diga que o meu gabinete está gelado, consequência de alguém me ter "fanado" (5) o "meu" aquecedor a óleo e não ter descoberto o autor da gracinha; com a celeridade com que trabalha a secção de Compras devo ter o aquecedor lá para o pino do Verão! Enfim, azares que servem para enrijar os ossos e a musculatura. (XXX - 1987.01.19)

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Olho pela janela e apercebo me desta tarde cinzenta e chuvosa, as pessoas correndo enquanto outras passam mais ou menos vagarosas, lutando contra o vento agreste debaixo de guarda chuvas mais ou menos coloridos. À falta de parques de estacionamento próximos, a placa central da avenida [Bento Caraça] está coberta de automóveis arrumados "a la balde", enquanto o trânsito pára em pequenas bichas cada vez que um autocarros estaciona para largar ou meter passageiros. (CTT - 1987.03.24)

Está uma tarde linda, cheia de sol, com os campos verdes cobertos aqui e além com manchas amarelas de flores. Ali no gravador canta o Zeca Afonso, que tinha uma voz muito bonita. E ao mesmo tempo fico triste com elas (canções), porque me fazem lembrar o tempo do fascismo, quando havia esperança de lutar e conseguir um mundo melhor, sem guerra. nem miséria, nem fome, mas onde houvesse alegria, liberdade e paz. (SNS - 1987.04.26)

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Morando e trabalhando em Setúbal, que me encantou outrora, quando jovem e estudante em transito de Évora para Lisboa, Porto ou Luanda. (CTT - 1988.03.06)

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A mudança da paragem do autocarro tornou o café [Lorimar] mais frequentado e menos remansoso em determinadas horas, quando se amontoa pessoal aparecido sabe-se lá de onde. Contudo, em certas horas, ainda continua a ser um local agradável, acolhedor, como simpáticas são normalmente as proprietárias, entre a malta conhecidas como as "manas gordas". Há um outro café, o das escadinhas, também simpático embora mais calmo por não estar em sítio de passagem ou junto a paragem de autocarro.

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Aqui nesta zona residencial ficam parte dos serviços municipais, em área que era para ser um centro comercial, e talvez isso explique o hábito que se criou nos cafés das redondezas dos clientes levarem os comes e bebes para a mesa e, muitas vezes, de retorno para o balcão.

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(...) E foi assim que tudo começou: escolhida a mesa, uns sentaram-se e outros ficaram a fazer o avio e por isso só depois reparámos que a mesa escolhida estava suja, pelo que pedimos às manas que a limpassem, o que lhes caíu mal, enervou e fez com que uma delas derramasse a cafeteira do chá a ferver sobre as minhas calças o que, diga-se de passagem, não foi pêra doce. Por isso, uma hora depois, estava "caído" no Centro de Enfermagem, porque me doía cada vez mais o local da queimadura.

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Às dezoito horas a sala de espera encontra-se habitualmente repleta de pacientes quase sempre "pacientes" enquanto aguardam o médico ou o enfermeiro, pelo que resolvi matar o tempo com aquelas revistas e jornais antigos que jazem nas salas de espera de consultórios. E foi assim que peguei na "Nova Gente" e procurei o ponto de encontro onde encontrei a Maria Helena, arquitecta, que mora em Lisboa, cidade que outrora amei mais do que actualmente, pois entretanto habituei-me ao relativo sossego de Évora e de Setúbal, onde quase tudo está ali ao alcance da mão, pese embora e por vezes a pasmaceira das terras pequenas, entremeada embora pelo individualismo e falta de calor e solidariedade das terras grandes.

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Mas não é hoje que vou falar sobre Évora, essa ilha sem mar no meio da planície alentejana ou sobre Setúbal, vagamente parecida com Luanda, onde nasci e vivi durante vinte anos. E também não é sobre Lisboa que falarei desta feita, essa Lisboa por onde ainda gosto de deambular aos fins de semana ou no Verão, quando não há corridas, nem engarrafamentos, nem esperas de fazer perder a paciência e a boa disposição.

(...) Nas horas vagas leio, procuro conhecer novas terras e novas gentes, ouço música e vou ao cinema ou ao teatro. E também escrevo. E foi num desses que surgiu o Auto-retrato em Passatempo, "inspirado" num poema duma das glórias de Setúbal, de seu nome Bocage, embora se fiquem por aqui as semelhanças e parentescos!

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Com nariz grande, olhar estrelado,

Baixo, cabelo negro, ondulado,

Magro, moreno, mui desajeitado,

Nada ou p'la vida sempre perdoado.

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Buscando amizade, mau achado,

Agindo calma ou mui despeitado,

O êxito logrou, mal torneado,

Com persistência e pouco alegrado.

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Tolerante, mas não libertário,

Conduzindo, longe da multidão,

Na vida procurando liberdade.

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Em tudo mal, buscando seu contrário,

Com ar sério ou risonha feição,

Mal sente, co'a razão, felicidade. (CTT - 1990.03.12)

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(...) Eis-me, pois, regressado a Setúbal, onde amanhã começa mais um Festival de Teatro, este homenageando o Mário de Sá Carneiro, mas que não me seduz muito pelo programa apresentado. Outrora sempre vinham cá companhias de todo o país, das consagradas, que nos permitiam ver ou rever as peças durante o ano representadas em Lisboa, Porto e arredores. E assim se vai perdendo o teatro. Mas não só o teatro. Agora foi a vez do Casino Setubalense, ultimamente especializado em pornografia, após a fase do kung-fu e dos lacrimejantes filmes indianos, onde uma vez consegui ver "Por Favor Não Me Mordam o Pescoço", do Polanski, por uma daquelas insólitas surpresas proporcionadas pelo exibidor. Segue-se este encerramento ao do Luísa Todi (agora Forum Municipal), ao do Bocage, ao do Grande Salão Recreio do Povo (agora Banco, preservada a fachada) ou ao do Salão da Sociedade Recreativa Perpétua Azeitonense. Consequências do vídeo, embora nada se compare ao envolvimento duma ecrã maior ou menor ou do cavaquear no intervalo, ritual também já ultrapassado nas salas de bolso que proliferam nos centros comerciais, desaguando os espectadores directamente para os corredores "montrados" e feéricamente coloridos. (MBC - 1990.09.19)

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Ultimamente a rua parece um forno. como se estivéssemos no Alentejo, com uma brisa sufocante e uma luminosidade que fere o olhar. (...) Há dias em que o brilho do ar é tão intenso que não consigo ler o jornal ao fim de semana no cimo das escarpas de Santos Nicolau, com o Estuário do rio Sado ao fundo e a Serra da Arrábida à direita. Mas aqui à noite, na varanda, corre uma brisa acariciante, conjuntamente com o cheiro da terra molhada. (MMA - 1993.08.10)

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Já é meio da tarde. Enquanto escrevo estou distraído. Como sempre fui comprar os jornais, mas desta feita não fui lê-los para debaixo duma árvore na estrada da Figueirinha ou no cimo das escarpas de Santos Nicolau, com o Rio Sado e a Serra da Arrábida ao fundo. Não, desta vez fiquei me pelo porto de pesca, mas como o tempo se tornara de trovoada quente e desagradável, mudei para debaixo duma árvore do degradado Parque José Afonso, agora transformado em parque de estacionamento automóvel, embora hoje quase vazio. (MMA -- 1993.09.10/11)

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Hoje é feriado municipal, dia do Bocage. Por pouco passava-me desapercebido. Houve um ano em que me esqueci do raio do feriado, só me apercebendo dele quando cheguei ao edifício da Tetra e bati com o nariz na porta envidraçada!

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Como tinha o carro na oficina (só mo vieram entregar agora à tarde), hoje andei de autocarro, o que é por vezes mais interessante do que passar rapidamente de automóvel pela rua, com a atenção fixa ao espaço à nossa frente. Com efeito olha-se para o lado, vêm-se pessoas conhecidas de vista, apreciam se as conversas e os cumprimentos, incluindo os do motorista para com as pessoas que reconhece no passeio enquanto o sinal vermelho não abre. Esta carreira da Terroa e outras similares, em terras como Setúbal, funciona como carreira familiar, onde o motorista e as pessoas se (re)conhecem das viagens de todos os dias.

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Na Praça do Bocage há uma alva barraquinha estilo mourisco, inaugurada hoje, contendo as principais peças do Plano Director Municipal, agora em fase de discussão pública. Lá estava a minha querida directora, rodeada de alguns colegas nossos, que ainda de longe me fez um correspondido aceno de mão com um sorriso de derreter o coração do mais incauto, aceno que se transformou numa amena cavaqueira quando cheguei ao pé deles e da barraquinha. (MMA - 1993.09.15)

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Antigamente havia mais convivência, porque os gabinetes eram salas enormes cheias de vasos e plantas; agora e desde há uns anos as salas foram sendo divididas e subdivididas em gabinetes cada vez mais minúsculos. As pessoas estão mais isoladas e formam se grupos e subgrupos, que se encontram em cafés diferentes: os fiscais no café lá em cima, no Largo, os desenhadores neste ou no café das escadinhas, os técnicos no café das escadinhas, abandonado que foi o café das manas [na Avenida Bento Caraça], onde continuo a ir com as arquitectas Arminda ou Nina e onde vai o pessoal da secretaria. E isto para não falar na Directora, com o seu séquito (arqº Zé Manel e engª Margarida) que já deixaram de se misturar com o maralhal. (MMA - 1994.02.20)

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Antigamente, aos fins-de-semana, ia até à Serra da Arrábida ou até ao morro de S. Filipe ou para a Estrada da Comenda, o carro debaixo da sombra duma árvore para ler o jornal e para ouvir música. Mas agora fico-me pelo descampado no cimo das escarpas de Santos Nicolau, onde as árvores ainda não cresceram e para onde agora vão muitos carros, demasiados para o meu gosto. Aliás cada vez mais a cidade está sendo separada do rio, por causa do aumento do Porto de Setúbal, e cada vez mais nos arredores as casas substituem as árvores ou o arame farpado impede o acesso aos campos. (MMA - 1994.02.20)

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Lá se vai dentro em breve o meu privilégio de trabalhar a escassos metros de casa. Vamos mudar para um edifício novo, com quatro ou cinco pisos, no centro da cidade, perto dos Paços do Concelho. Aqui em cima estamos distribuídos por dois pisos no que também esteve para ser um centro comercial, agora transformado em autêntico labirinto, com portas, corredores, escadas e paredes envidraçadas por todo o lado. Uma autêntica ratoeira em caso de sinistro mas, como se costuma dizer, em casa de ferreiro espeto de pau. Sempre é melhor irmos para o Centro da cidade, não só porque há mais economias nas comunicações entre os serviços e nas deslocações dos munícipes, mas também porque há mais vida e movimento lá em baixo. (1994.02.23)

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Se me ficasse apenas pela aparência do que os meus olhos vêm, a neblina e o cinzento que envolvem a cidade prenunciariam um dia frio, de chuva miúdinha. Mas o suor goticular que permanece à flor da pele sem que se evapore indica que o resto do dia, para além de nublado, será quente e húmido. Uma boa chuvada seguramente que refrescaria o tempo e afastaria este pesado chumbo que me envolve, que em Luanda, na estação quente, prenunciaria grandes e violentas bátegas de água quando não relampejantes e ensurdecedoras trovoadas. Mas este é um país de brandos costumes, de pequenas tempestades, de meias águas e de meias tintas. E depois nem sequer há os quilómetros de areia de praias para mergulhar como na minha terra perdida. Como se não bastassem os ajuntamentos, as praias da costa da Arrábida estão na sua maioria impróprias para consumo devido ao elevado grau de poluição. De modo que ao fim do dia, após o emprego, resta apenas a água fresca do chuveiro. (MMA - 1994.06.20)

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Já mudámos de edifício, vai para mês e meio. Agora trabalhamos no centro da cidade, mas as relações entre as pessoas alteraram-se radicalmente no enorme casarão de seis pisos e paredes frias onde se concentraram vários serviços municipais até então espalhados pela cidade. Distribuídos que estamos pelos vários andares com múltiplos corredores e gabinetes, maior é o isolamento pois menos vezes nos cruzamos uns com os outros, para além de se ter tornado menos natural assomarmos e permanecermos nos gabinetes uns dos outros. Fiquei num gabinete pequeno, com o meu colega geógrafo, e porque a sala é pequena e sem estiradores, foi possível torná-lo menos árido e mais acolhedor que os enormes salões onde despejaram engenheiros, arquitectos e desenhadores, perdidos no meio dum espação onde largaram o mobiliário de estilos e feitios díspares.(MMA - 1994.06.20)

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De Setúbal falei nas linhas anteriores. Mas a cidade de hoje nada tem a ver com aquela que me encantou, ponto de passagem dum estudante universitário de Angola exilado em Évora a caminho de Lisboa ou do Porto. Setúbal era a Avenida 5 de Outubro, com acácias floridas e as miúdas em bando, era o estuário do Sado visto do Forte de S. Filipe, era o Castelo de Palmela visto de qualquer ponto da cidade tal como o estuário do Sado com a Serra da Arrábida ao fundo. Setúbal era também o enorme paredão ribeirinho cheio de carros ao entardecer ou de pescadores de cana, com o pôr do sol sempre variado espelhado nas núvens ou cintilando nas águas do rio. Setúbal eram as praias, o desejo das praias que se vieram a revelar desagradavelmente frias e de acesso difícil.

As acácias floridas, rubras ou roxas, a luminosidade do ar e o céu azul faziam lembrar Luanda, tal como o Estuário do Sado, visto do Castelo de S. Filipe, se assemelhava à Baía de Luanda vista da Fortaleza de S. Miguel, com a península de Tróia confundindo se com a Ilha do Cabo.

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Uma cidade são as pessoas, as pedras, as casas e a paisagem circundante. Mas as pessoas de Setúbal revelaram-se uma desilusão. A cidade reúne a dimensão humana das distâncias dentro de si própria das cidades pequenas com o individualismo das grandes cidades onde cada um trata de si, se a solidariedade dos vizinhos mas, paradoxalmente, com a coscuvilhice e maledicência destes: todos sabem de todos mas cada um trata de si. Nada da camaradagem que encontrei entre as gentes do Barreiro!

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Setúbal, destruída pelo terramoto de 1755 e rapidamente reconstruída, do passado pouco conserva. E o pouco que tinha em edifícios está em ruína e demolição aceleradas. Se é verdade que o Marquês de Pombal não veio a tempo de reconstruir a cidade ao jeito racionalista, Mata Cáceres, o Presidente sucialista desde 1986 tem sido um terramoto que permite que a memória da urbe seja arrasada: moinhos de vento, fábricas conserveiras, bairros como o Salgado ou de Santos Nicolau... Persistem, esses sim, os bairros de lata, como o Mal Talhado, da Cova do Canastro, da Monarquina... Se interesse há por estes bairros, não é porque os seus habitantes mereçam melhores condições de vida mas porque se situam encravados em áreas apetecíveis para a especulação urbana. Nos esteiros, as embarcações típicas de outrora apodrecem afundadas no lodo, sem que a Câmara recupere algumas delas, como outras na Península de Setúbal o fazem.

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Uma cidade é também o seu traçado e a paisagem circundante. Que resta de Setúbal? O Castelo de Palmela e o Forte de S. Filipe estão encobertos por cortinas de prédios altos, iguais em qualquer cidade e sem nada que a distinga. O mesmo se pode dizer do estuário do Sado e da Serra da Arrábida. A cidade voltou as costas ao rio, que os seus habitantes não desfrutam porque entretanto o porto fluvial vai crescendo e acrescentado à barreira física que já era a linha férrea. À beira rio, o horizonte é cortado e abafado por viadutos e muros gradeados. Lisboa alinda-se e Setúbal desfeia se com o lixo dela proveniente.

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É verdade que uma nova camada consumidora surgiu e assim as discotecas e os pubs crescem na parte baixa, sobretudo a poente da Luísa Todi. Mas a vida associativa decresce, os cinemas encerram, a companhia de teatro residente fecha-se em si mesma. Em contrapartida aumentam as situações de marginalização ou exclusão sociais, florescendo as prostituições infantil e feminina, bem como o tráfico e o consumo de droga.

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A várzea, solo agrícola fértil, é ocupada paulatinamente por prédios, acabando com as hortas e laranjais que davam origem a doçaria de nomeada. (Notas de Viagem, 1977)

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Na casa de Setúbal


Amanhã vamos até Setúbal, para envernizar o chão da casa, arrumar umas coisas, receber os ordenados e concluir os inquéritos do corrente mês. Depois regressaremos para acabar os preparativos para a mudança, em meados do próximo mês (salvo erro a 17 tenho serviço de exames). Vamos ver se nessa altura já funcionam os elevadores. (1980.08.28)

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O Rádio Clube de Setúbal transmite música antigota: há pouco, p.ex., El Reloj, de António Prieto, agora Et Pourtant, de Charles Aznavour. Está um fim de dia cinzento e frio, embora a cozinha esteja cheia de luz, como se fosse dia; estou encantado com os girassóis colhidos na berma da estrada e que alegram a nudez e o ascetismo desta casa, agora entregue apenas a mim. (1986.12.11)

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Chove agora a cântaros e tenho saudades do casarão de Évora [na rua Serpa Pinto], quando ouvia a chuva bater no telhado, encanto que me está vedado neste prédio de betão armado, onde muitas vezes só dou por ela quando chego lá abaixo à rua [largo] e ela cai em rajadas ou deixou a marca no asfalto molhado. (1986.12.14)

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Olho pela janela da sala e o campo florestado estende se até ao horizonte, aqui e além cortado por aglomerados populacionais como o Faralhão, Praias do Sado ou Manteigadas, para além dum e outro casal. [Assomando à varanda, para a esquerda, o castelo de Palmela] ([1986.12])

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Olho pela janela nesta tarde soalheira, do alto deste nono andar com os campos, as casas e os carros minúsculos lá em baixo [na Avenida Bento Caraça]. (1988.03.06)

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Já o sol e a lua se puseram (...) o que significa que é um novo dia, oscilando entre o sol quente e o cinzento nublado ameaçador de chuva. Estou partido, pois andei a mudar estantes para ver se consigo arrumar em novas prateleiras os livros que proliferam como coelhos. (1990.09.19)

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Eis-me pois regressado de novo a Setúbal, sentado aqui no meu "escritório-biblioteca-armazém", ouvindo o eterno bater da janela nas calhas e os ruídos das obras nos prédios que estão construindo aqui ao lado e que tiraram a vista para o Jardim da Lanchoa ao pessoal que mora até ao 5º andar. O que não é o meu caso, alcandorado que estou neste 9º andar, dos últimos lugares do lugarejo a ser submerso se algum dilúvio acontecesse. (1993.08.03)

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Este fim-de-semana não me deu para arrumações. No anterior resolvi cuidar do meu "jardim" ali na varanda da sala, cujas plantas já estavam demasiado crescidas, invadindo para além disso vasos alheios. Foi um desbaste enorme, coitadinhos dos vasos, que ficaram quase carecas. Bem sei que esta não é a melhor altura para tratar da saúde às plantas, mas aquilo já parecia uma selva ou matagal, onde mal me podia mexer ou sentar nestas quentes noites de verão, pois é um local onde normalmente corre uma brisa agradável. No entanto, para a próxima Primavera, tenho de pensar em reservar uma parte para agricultura, não de cebolas ou batatas, que é pequena a herdade, mas de alface, salsa, coentros, piripiri e espécimes similares, para os meus cozinhados. (1993.08.07)

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Estive há pouco a regar as plantas e gosto muito do cheiro da terra seca depois de molhada. Olho pela janela e verifico que as vidraças estão precisando duma limpeza. É estranho, pois morando num sítio tão alto, não consigo livrar-me da poeira. Quando estreamos esta casa nas varandas havia montículos de terra, possivelmente trazidos pelas correntes de ar ascendentes.

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Olhando pela janela vejo os campos ao longe, lá embaixo, cada vez mais afastados pelas casas que se vão construindo; daqui a uns tempos deixarei de morar no limite oriental da cidade. Mas no Verão o único verde é o dos aglomerados de árvores (sobreiros e azinheiras ?), pois a terra ressequida é simplesmente castanha. E à noite, em qualquer altura, a vista é encantadora, com a claridade da iluminação das ruas, das casas e, quase no horizonte, das fábricas da zona industrial da Mitrena. para além do luzeiro cintilante das luzes das povoações dos arredores. Isto para não falar do nascer do sol, alguns dos quais me fizeram levantar cedo para fotografá los.(...)

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Como sempre o vento faz vibrar as janelas nas calhas, dum modo monótono, mesmo irritante por vezes. "Música" à qual um dia destes tenho de pôr fim. Para além disso tenho por vezes o acompanhamento da voz esganiçada do cão aqui do vizinho do andar de baixo. Para lá da janela, quando aberta, chega o ruído dos carros que passam lá em baixo na avenida, conjuntamente com o falar das pessoas ali no Parque da Lanchoa, cavaqueando em noites frescas até altas horas da matina. O cãozinho recomeçou os seus latidos; ao menos, eu não incomodo a vizinhança quando não estou em casa. Mas o cãozinho, ah! o cãozinho... esse ladra... quando os donos estão ausentes.! )(...) Aqui à noite, na varanda da sala, corre uma brisa acariciante, conjuntamente com o cheiro a terra molhada. (1993.08.10)

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Acabei de temperar o frango para o jantar: sal, como não podia deixar de ser, pimentão doce ou colorau (embora também goste de paprika ou de piripiri), molho de soja e aguardente. (1993.08.15)

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É meia noite e o silêncio da madrugada, que apenas começa, só é perturbado pelo suave ruído das ventoinhas do quarto e do ventilador do computador, para além do matraquear das teclas que permitem a fixação deste texto. Quando paro para pensar ou refazer o que escrevo ouço um leve barulho da televisão que o Rui e a Susana vêm, entremeado com a conversa deles, lá ao fundo na sala. (1993.08.15)

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Antigamente as pessoas escreviam muito e as cartas eram meio de transmitir notícias e muitas delas, com maior ou menor valor literário, tornaram-se testemunho dos factos, acontecimentos, ideias e sentimentos. Mas hoje, hoje as pessoas telefonam ou encontram-se, devido à facilidade e rapidez dos transportes e das comunicações, e o tempo é pouco, paradoxalmente, devido à sobrecarga do que se gasta em transportes, sentado frente à TV ou em tarefas domésticas.


O mesmo sucede com o convívio e a conversação: por vários motivos os cafés e as tertúlias desaparecem, só se conhece o vizinho da frente ou do lado, quando se conhece, e as pessoas metem-se na sua concha, casulo, carapaça ou buraco. Muita gente junta, ao alcance da mão ou da voz, não significa que estejamos mais acompanhados e humanizados. (MMA - 1993.08.19)


Fiz para o almoço pernas de frango estufado com arroz de manteiga. Já ando a ficar farto de enlatados e congelados, que às tantas sabem sempre ao mesmo. (MMA - 1993.09.09/10)

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A lavagem da louça suja fica para amanhã. (...) Resolvi fazer uma "bruta" omolete de camarão com cebola picada, salsa e queijo ralado. Não ficou mal, mas deveria ter posto menos azeite na frigideira. Menos sorte tive ontem, que me distraí e não ouvi o marcador de tempo, pelo que os "raviolli" pegaram ao fundo do tacho e ficaram um amontoado esquisito e sem graça. (MMA - 1993.09.10/11)

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Depois, bem depois resolvi almoçar um prato africano, moamba de galinha com farinha de pau, num restaurante aqui perto de casa. Faço isso normalmente uma vez por semana, para variar e porque me aborrece tomar as refeições sistematicamente sozinho. Mas desta vez o único comensal era eu, mas ao menos comi um prato que não sei cozinhar e não me preocupei com a arrumação da cozinha. (1993.09.10/11)

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Afinal as ameaças deixaram de sê lo, pois acabei de assomar à janela e lá em baixo o asfalto apresenta se molhado e as pessoas passam de guarda chuva aberto. (...) Tudo indica que passarei este domingo em casa, lendo, organizando as fotografias de férias e vendo algum filme ou uma cassete de vídeo que comprei, sobre fotografia. (1993.09.12)

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O domingo está passado. Para além da janela envidraçada, o negrume da noite pontilhada de luzeiros e reflectindo as estantes cheias de livros. (1993.09.25/26)

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Cheguei há pouco da Feira [de Santiago], onde fui dar uma volta e dois dedos de conversa com o pessoal conhecido após o jantar lá em baixo no Centro, única maneira de variar o cardápio, pois ao almoço não tenho tempo para grandes variações e aprendizagens. Tal como as mulheres, os homens, desde pequeninos, deviam ser ensinados a cozinhar coisas variadas e saborosas, embora simples. Felizmente que em tempos descobri um livrito acessível que posso consultar e seguir sem necessidade de ter ao lado, para consulta permanente, um dicionário da especialidade, para decifrar os termos técnicos como "refogado" ou "esturgido" e quejandos. (XXX - data ?) (6)

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Em Setúbal é tempo da Feira [de Santiago] onde fui duas ou três vezes e onde sempre vou encontrando gente conhecida para dois dedos de conversa. Este ano há apenas uma exposição dedicada a uma das celebridades cá da terra, que foi a cantora lírica. Falta me ver a parte da cerâmica e olaria, embora este ano já tenha comprado o "recuerdo", cerâmica dum país andino ou como tal vendida. Mais uma "bonecada" ali para uma das estantes, para dificultar a limpeza do malfadado pó que mal acabado de limpar logo renasce dum modo que faria inveja à capacidade reprodutora dos coelhos! (1993.08.03)

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1 - A igreja de Santa Maria é a Sé, com aspecto imponente; a de S. Julião, destruida pelo terramoto de 1755, tem um aspecto desgracioso, mas conserva dois portais manuelinos.

2 - Árvores frondosas e trânsito automóvel, que já não existem em 1996, a estátua do Bocage e, ao fundo, o edifício da Câmara, onde vim a trabalhar de 1984 a 1986, além da casa, na altura azulada, por cima duma tabacaria, cheia de sol, onde gostaria de viver e que compraria se tivesse dinheiro.. O café referido no postal deveria ser o Central.

3 - Tratava se da vivenda Ruxa, situada aos Quatro Caminhos.

4 - Estes 4 pavilhões pré-fabricados, portanto provisórios, ainda funcionavam e estavam para durar 18 anos depois, isto é, no final de ... 1996 !

5 - Termo da gíria, que significa - roubado

6 - Passe a publicidade, trata se do Guia Prático de Cozinha, da autoria de Léone Bérard, editado pela Livraria Bertrand em 1977.