Na casa de Goios - Na janela eu e o meu tio Zé Barroso
(foto de família)
Aqui na cidade [do Porto] a maioria das freguesias paroquiais já não têm "compasso", isto é, procissão pascal - o pároco leva a cruz às várias residências; por ser uma manifestação inadequada aos dias de hoje. Mas na aldeia [Goios, ao pé de Barcelos] (e não só) ainda as pessoas aguardam a visita pascal - o padre deslocando-se pelas aldeias, cujas casas aguardam a sua visita. Na sala de entrada, bolos secos e vinho. No ar estralejam foguetes ! As pessoas dizem: " O compasso vai na casa de Fulano, daqui a xis horas está aqui!" As horas vão diminuindo e eis que aquela malta irrompe pela sala dentro, o povo ajoelha-se para beijar a cruz, (mais ou menos devotamente), e depois começa a comezaina e a copofonia. Ah! Ah! Ah! Ao fim do dia de certeza que o padre e seus acompanhantes estarão já um tanto ou quanto toldados!
(...) São 16 horas e o meu avô já me chamou ali do lado para me pedir um favor, muito de mansinho: que me ajoelhe e beije os pés da imagem. Se o não fizesse seria um escândalo, que as pessoas reparam em tudo: "Então ele é um ateu ?!" Quem diria, o sobrinho-neto do senhor D. António [de Sousa] Barroso", [que foi] Bispo do Porto (e esteve em S. Salvador do Congo, em Angola) ! Enfim ...
Na varanda coberta e fechada e comprida para onde dão os quartos de dormir a família aguarda o compasso. O primo Adelino tem o gravador aos berros, transmitindo música de ranchos folclóricos. É uma música mexida e movimentada, própria para bailar. Gosto muito mais da música alentejana.
Ali do guarda-fatos e das arcas retirou-se já a roupa domingueira. Estão todos enfiados nas fatiotas, colete, camisa de ver-a-Deus e gravata. Das arcas retiraram-se as cortinas, agora colocadas nas janelas, o soalho lavado, na casa velha cujo solo treme com o peso dos passos. Olho pela janela e a minha vista alcança os campos verdejantes, no meio da pequena e densa mata arborizada. O meu primo, dono da casa, sai descalço do quarto, sapatos e calçadeira na mão. O avô Barroso fala com o António e o resto da malta fala alto atrás de mim, enquanto o tio Zé [Barroso] está ali embrenhado na leitura dum "Précis de Statistique", dizendo‑me que ainda não percebe para que serve a Estatística.
Estralejam foguetes neste entardecer frio, cinzento e nublado. O compasso já está ali a dois passos: Vim agora da ponte que atravessa além o riacho, ao cimo da estrada, junto à pequena escola abandonada e arruinada onde o meu avô estudou.
Trouxeram o televisor lá de baixo da cozinha, onde estivemos no Natal, Estão a transmitir uma tourada do Campo Pequeno [em Lisboa] e toda a gente está entusiasmada, esquecida de meditar na Paixão e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, nesta casa onde há imagens e estampas devotas nas paredes da sala de estar, para além das fotografias do já falecido "Senhor D. António "e do seu secretário e sobrinho, também padre mas que não chegou a bispo.
A dona da casa, minha prima, pede‑me que avise quando o compasso se aproximar. Pego em mim e venho até aqui à janela, assim transformada em posto de vigia. No peitoril continuo o relato dos acontecimentos.
A malta ali na sala e na varanda está entusiasma: "Aquilo é que foi uma pega!".
A estrada está atapetada de flores, melhor, de pétalas.
Reparo que sou o único barbado das redondezas. Tenho desculpa (terei ?) porque sou da cidade.
A televisão pode mais que o Nosso Senhor!
O compasso veio, as pessoas foram para a sala de entrada. Toca a sineta, que um miúdo traz adiante; uma cruz florida transportada por um homem de opa vermelha é dada a beijar às pessoas - que não se ajoelham - e o jovem seminarista aperta a mão aos presentes, desejando Boas Festas. Segue‑se uma "orgia" de apertos de mão e votos de boas festas. Alguns velhotes detêm‑se a falar com a sra.Elvira, criada do avô Barroso. Este está muito sorridente, apresenta a filha "que é professora em Luanda" e o neto. Não posso deixar de sorrir‑me e enternecer‑me com o ar jovial do avô, enquanto cumprimento "gravemente" as pessoas.
É para aí o 5º compasso em 8 anos e alguns destes homens são "habitués" nestas andanças (Sempre se come e bebe à custa dos outros). Mas ainda o compasso não abandonou a casa e já os meus primos e alguns amigos se precipitam para o televisor, "onde" um forcado é retirado de maca do redondel.
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São 18:20 e ainda estralejam foguetes. O pessoal continua a assistir à tourada. A prima Clementina - mãe das que vimos a conduzir um carro de bois - tem um linguarejar (pronúncia) muito catita. Ali na outra casa [do primo Manuel] só se fala de terras e riqueza! Safa! Fazem parte da "elite" cá do sítio. Mas enquanto que os filhos do José são folgazões e desinibidos, mais que o pai, os do Manuel são muito acanhados.([1])
A senhora Elvira foi visitar uma amiga e ainda não voltou. A tourada já terminou e agora transmite‑se um programa de ginástica. (MCG - 1974.04.16)
[1] - Em 1975, com a morte do meu avô Barroso e com o meu casamento com a Celeste, perdi o contacto com os primos de Barcelos (Goios e Pedra Furada). Em 1989, sediados no Mindelo no Verão, fui com a minha mãe, o Rui, a Susana e a Joana Princesa a Goios, para (re)vermos os primos. Mas uns tinha morrido, os mais sociáveis, e os outros nem apareceram, deixando-nos a secar na estrada. Como na altura me não lembrava do nome dos da Pedra Furada, não fomos a esta aldeia, onde regressei mais tarde, com a Fáfá das Caldas, mas apenas numa das nossas múltiplas deambulações tutrísticas por Portugal de lés a lés, amiga, navegadora, auxiliar de fotógrafo e scipt-girl dum Livro de Viagens inacabado do qual restam milhares de fotos e o borrão duma «peregrinação» em livro inacabado, casa vez mais perdido nas brumas do tempo e da memória.
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