Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

sábado, 5 de outubro de 2013

( a poesia nas palavras em setembro 10 ) - dispersos 02

5 de Outubro de 2013 às 7:36

* Victor Nogueira

É de madrugada, deu-me a espertina e a vontade de rasgar tudo e partir para longe porque apesar do meu desejo não consigo descansar  em ti o meu cansaço e se isto e o que escrevo é verdade ou efabulação, só eu veramente e de verdade o sei ! Com o mote "veramente" e seus múltiplos significados o artesão das palavras poderia escrever um romance. Mas como nas palavras que se ficam pela ausência ou negação dos gestos meus e/ou de outrem nada valem e são um rio sem retorno, arrumo a caneta no bolso, sem usar nem a "pena" nem a "pluma", porque então o romance não teria fim.
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O discurso lógico trai a manifestação dos sentimentos; "as palavras são (redes) de dois gumes..." e o discurso lógico uma corrente que nos arrasta para onde não queremos. Um olhar, a mão que se levanta para acariciar um rosto, os dedos entrelaçados, o corpo que sentimos junto ao nosso, a simples presença, o saber-se aqui nesta sala ou na outra, não entendes que tudo isto, na sua simplicidade, diz mais e responde e/ou acalma mais interrogações que todas as palavras? É preciso saber ler para além das palavras ou não recusar essa leitura.

1993
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            É um novo dia. de manhã choveu mas agora á tarde o sol despontou. Hoje resolvi ficar em casa para preparar a reunião sindical de amanhã e programar o trabalho até ao final do mês. Tenho oito dias por mês para actividade sindical sem desconto no ordenado. Entretanto, na próxima quinzena, terei reuniões em Coimbra e no Porto, para além de uma série de plenários na Câmara de Setúbal, por causa do processo negocial com o Governo.

          Fiz para o almoço pernas de frango estufado com arroz de manteiga. Já ando a ficar farto de enlatados e congelados, que às tantas sabem sempre ao mesmo.  Tenho ainda de ver se marco consulta para o médico, que aliás agora é médica, o que por vezes me intimida na exposição das minhas maleitas e problemáticas.

            Quem também anda doente é a minha carripana, que de repente ficou ontem sem pisca-pisca, o que é aborrecido pois nem sempre me lembro de fazer manualmente os sinais de mudança de direcção ou de conduzir com mais cuidado. De modo que tenho de passar ainda pelo mecânico, tanto mais quanto amanhã terei de ir a Lisboa.
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O carro já está consertado e sempre consegui consulta na médica. É uma senhora muito simpática mas começamos sempre por uma longa conversa sobre variadíssimos assuntos, da vida em Setúbal à política, passando pelos filhos. A parte final, essa sim, é dedicada à exposição e diagnóstico das minhas maleitas. Resumindo e concluindo, para além docheck-up anual conveniente para as pessoas da minha idade, mais uma série de exames por causa das maleitas para prevenir ou remediar. E uma nova sessão de  fisioterapia, que o ano passado me fez passar os meses até agora com menos problemas provocados pela coluna. O avio dos remédios deixou-me no entanto pasmado. Não só estão cada vez mais caros como diminuem grandemente as comparticipações do Estado. Entretanto ela disse-me que tínhamos direito a quinze dias anuais em estâncias termais, para tratamento, sem colisão com os dias de férias. Tenho de informar-me melhor, para passar uma temporada a tratar da coluna, repimpado, sem preocupações com arrumações de casa e preparação de refeições.

            De vez em quando passo aqui pelo computador e acrescento mais umas linhas de conversa. Estou cansado e com sono, mas mesmo que durma um sono seguido como acontece normalmente, isso  possívelmente não me trará descanso. Isto é um círculo vicioso: a pedrada depressiva impede-me de dormir repousadamente e a falta de repouso aumenta a neura. Quem diria que o fim de férias e o regresso à Câmara teriam um efeito tão desgastante. Deveria mas é ter ido a casa  de alguém. Mas também a maioria  está metida no seu buraco, numa sociedade onde estou a mais porque dela estão cada vez mais ausentes a solidariedade e o companheirismo.

            Vou  encerrar esta escribadura. Tenho ainda a louça do jantar para lavar e parte do conteúdo dos sacos de férias para arrumar. Nem acredito nesta minha desorganização, eu que por vezes até tenho raiva de mim mesmo por ser tão arrumadinho  e organizado, embora menos que há uns anos atrás!

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Setúbal, 1993.09.10/11

            Depois de chegar a este casarão onde vivo, pus a Cesária Évora no leitor de CD's e dei comigo a bailar ao som da música de Cabo Verde, maneira de descontrair e quebrar a tensão e os rios de lágrimas.  De resto a música serve muitas vezes para me descontrair. Agora, estou na ressaca, como quem apanhou uma sova. A propósito, comprei um CD com música do Mendelssohn para  oferecer á Maria do Mar. Trata-se de Sonho de Uma Noite de Verão e de Sinfonia A Italiana.
  
            Bem daqui a pouco vou interromper para ver um filme policial na televisão. Entretanto apareceu o Caló [um miúdo cigano das redondezas], o miúdo de quem  falei em tempos, para visitar o grande amigo dele [como diz a todo o mundo], que sou eu. Abancou ali numa cadeira a ver fotografias, comentando-as em voz alta, com perguntas e grandes exclamações. Agora fez uma interrogação enorme  por causa dum bicho que nunca tinha visto: um perú. Entretanto viu  umas fotografias de esculturas feitas pelo  meu irmão e diz que não acredita que ele as tenha feito, respondendo que não, que não me estava a chamar mentiroso, mas lá que não acreditava, não acreditava, acrescentando Mas o meu pai sabe desenhar. Vai daí, disse-lhe: Eu não sei desenhar nem cuidar de ovelhas como o teu pai  mas escrevo melhor que ele. Não acreditou. Que escrevesse Fernando ali num papel. Disse-lhe, apontando para o meu volumoso livro de poemas: Então não vês que escrevi aquele livro?  Respondeu-me: Ah! mas isso não é escrever, isso foi feito no computador.

     Claro que para o Caló não saberei escrever, tanto mais quanto ele não será capaz de ler os meus hieroglifos.  Depois perguntou-me onde é que eu trabalhava e respondi-lhe que na Câmara. Exclamou ele: Ah! Apanhas o lixo! ? No prédio dele mora um cantoneiro de limpeza do Município, o Ramiro. Respondi-lhe que não, que trabalhava num escritório, o que nada lhe terá dito pois não deve conhecer a palavra e muito menos o que faz um sociólogo. Enfim !
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            Bem, lá voltei aqui depois de ver o filme Armadilha Mortal, com suspense e surpresas no enredo umas atrás das outras. Os principais intérpretes eram o Michael Caine, que aprecio, e o Cristopher Reeve (o Super-Homem, que acho um canastrão). Entretanto revi o texto anterior e reparo agora que já é uma da matina, pelo que vousozinhito para Vale de Lençóis. A lavagem da louça do jantar fica para amanhã.

            Hoje resolvi fazer uma bruta omolete de camarão com cebola picada, salsa e queijo ralado. Não ficou mal, mas deveria ter posto menos azeite na frigideira.  Menos sorte tive ontem, que me distraí e não ouvi o marcador de tempo, pelo que os raviolli pegaram ao fundo do tacho e ficaram um amontoado esquisito e sem graça. Ora, mas só não faz asneira quem não cozinha, não é ?
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            Já é um novo dia, dum sábado soalheiro mas coberto com uma leve neblina.  Continuo rouco, com a garganta irritada e tosse, desde que anteontem saí do consultório médico. 

            Já é meio da tarde. Enquanto escrevo estou distraído. Como sempre fui comprar os jornais, mas desta feita não fui lê-los para debaixo duma árvore na estrada da Figueirinha ou no cimo das escarpas de S.Nicolau, com o Rio Sado e a Serra da Arrábida ao fundo. Não, desta vez fiquei-me pelo porto de pesca, mas como o tempo se tornara de trovoada quente e desagradável, mudei para debaixo duma árvore do degradado Parque José Afonso, agora transformado em parque de estacionamento automóvel, embora hoje quase vazio.

            Depois, bem depois resolvi almoçar um prato africano, moamba de galinha com farinha de pau, num restaurante aqui perto de casa. Faço isso normalmente uma vez por semana, para variar e porque me aborrece tomar as refeições sistemáticamente sozinho. Mas desta vez o único comensal era eu, mas ao menos comi um prato que não sei cozinhar e não me preocupei com a arrumação da cozinha.

            Com isto tudo já são oito e trinta da noite, o Fausto toca Por este Rio Acima, um álbum que aprecio, e vão sendo horas de fazer o jantar, hoje será bacalhau á Brás.
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Setúbal, 1993.09.15

            Decididamente este mês de Verão tem sido um  surpreendente catálogo de variações atmosféricas.  Há uma semana estava quente e soalheiro.  Hoje este dia de domingo apresenta-se com um céu cinzento, carregado de ameaças de chuva. Afinal as ameaças deixaram de sê-lo pois acabei de assomar á janela e lá em baixo o asfalto da avenida apresenta-se molhado e as pessoas passam de guarda-chuva aberto.

            Daqui a pouco vou sair para comprar o jornal e pão. Entretanto, enquanto não me ponho debaixo da água tépida do chuveiro, ouço o Nino Rosso. Gosto muito de música de trompete.

            Não creio que o tempo levante, pois a chuva de hoje do estilo miúdinho mas contínuo, género faz que não molha mas molha mesmo. De modo que tudo indica que passarei este domingo em casa, lendo, organizando as fotografias de férias e vendo algum filme ou uma cassete de vídeo que comprei, sobre fotografia. Entretanto andei à pesca de fotografias da Maria do Mar, que lhe tirei ou em que ela está. Gosto muito de uma das que lhe tirei no jardim de Oeiras, sem óculos, com a cabeça levemente inclinada e a sombra dos seus cabelos pretos no rosto. De qualquer modo parece-me que a preferida dela é uma em que está sentada na relva, porque a vi uma vez emoldurada no armário da sua sala. 

     Dos filmes que abordam a relação entre um homem e uma mulher há dois que aprecio sobremaneira, embora sejam de géneros diferentes. Talvez porque me identifique com os personagens masculinos, isto é, com o modo como através deles as coisas são apresentadas. Um deles, África Minha,  com  Meryl Streep e  Robert Redford, é um drama. O outro, que de novo revi há pouco com boa disposição e sonoras gargalhadas, é Um Amor Inevitável (no original When Harry met Sally), com Billy Crystal e Meg Ryan.
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            O filme conta com humor a história dos (des)encontros do Harry e da Sally. No primeiro detestaram-se, porque nada tinham em comum  (o que não foi o nosso caso), no segundo tornaram-se amigos (o que aconteceu connosco) e no terceiro casaram-se (o queainda não sucedeu connosco).  O primeiro encontro é numa viagem que fazem juntos, para a universidade, durante a qual Harry afirma que é impossível um homem e uma mulher atraente serem amigos porque surge sempre o desejo de sexo pelo meio. Na sequência do segundo encontro, anos mais tarde, Harry confessa a um amigo que é amigo de Sally e como não há mais nada pelo meio não precisa de mentir-lhe e podem falar e estar á vontade um com o outro. Á terceira casam-se mesmo. O filme tem cenas deliciosas. Numa delas, na fase em que eles são apenas amigos, á mesa dum restaurante Harry gaba-se do seu sucesso entre as mulheres, o que leva Sally a interrogá-lo sobre os fundamentos da sua presunção. Perante a convicção dele de que um orgasmo não se simula, ela, na cadeira, com a voz e gestos, "representa" uma cena de amor e orgasmo, finda a qual termina voltando á pose anterior como se nada se tivesse passado perante a estupefacção dos comensais e o embaraço do presunçoso. Pois é, nesta sociedade pretensamente dominada pelos homens, a estes cabe a presunção da iniciativa, mas nem sempre a conseguem fechar com chave de ouro! Mas, ... entre mortos e feridos alguém há-de escapar. E espero que cheguemos á terceira fase da história de Quando o Victor Encontrou a Maria do Mar.
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            Em África Minha identifico-me com o modo como aquele homem e aquela mulher tentaram e em certa medida conseguiram viver o seu amor respeitando a independência de cada um deles.

            Está uma tarde bonita mas estou alquebrado  com a malfadada inflamação nosgorgomilhos, que não tratei convenientemente com a automedicamentação feita em férias. De modo que tive ontem de voltar à médica para ver se agora é que é de vez. E hoje, hoje, contra o que é habitual tive mesmo de me meter em vale de lençóis com arrepios. Coitados dos vizinhos do andar de baixo, que pela madrugada fora  me têm ouvido tossir desalmadamente. Seja por desconto das maldades do cãozinho deles, que aliás está mais civilizado, pois agora raramente se ouve ladrar. 

            Como resultado da segunda consulta descobri que estava com uma depressão inibida (vejam lá o nome que os médicos arranjam), pancada que se agrava quando regresso de férias, ao emprego e os miúdos a casa da Celeste. De qualquer modo na 2ª feira à tarde resolvi fazer uma breve passagem  pelas brasas antes de voltar para a Câmara e de repente o meu cérebro desbloqueou-se e deixou de funcionar como roda sem destino. Pelo que encaro as coisas com menos dramatismo. Por muito que me desagradem o emprego, algumas pessoas que me rodeiam ou seja mutilante  estar  sozinho  ano após ano desde que me divorciei. De resto não posso permitir-me ficar na fossa, se não quem trata de mim? Assim um tipo nega uma parte de si mesmo e da sua sexualidade, põe a viseira e a máscara sempre sorridente á flor-da-pele, mete-se na mala e põe o pé no caminho, em busca de melhores dias, com alegria e sol no coração. 

            Na 2ª feira coube-me a vez de servir de ama-seca ao Rui, pois tive de ir com ele à escola da Belavista, onde pela última vez dei aulas há 12 anos, para mudar para a turma onde ficou a maioria dos colegas que foram transferidos com ele da escola do Aranguez. Na sala onde eu dava Geografia agora é o Conselho Directivo e alguns empregados ainda me reconheceram, o que não deixa de ser agradável. O que não me agrada é ele ficar possívelmente com aulas á tarde e não sabiam ainda se também ao sábado de manhã. Devido á falta de salas de aulas, o turno funciona salvo erro com seis horas seguidas, o que é uma violência.  De resto nesta escola foi a única vez que dei 22 horas de aulas semanalmente, apenas num turno, o da tarde, o que me custou imenso. Felizmente que a meio desse  ano  fui para a Câmara do Barreiro.

            Hoje é feriado municipal, dia do Bocage. Por pouco passava-me desapercebido. Houve um ano em que me esqueci  do raio do feriado, só me apercebendo dele quando cheguei ao edifício da Tetra e bati com o nariz na porta envidraçada!

            Como tinha o carro na oficina (só mo vieram entregar agora à tarde), hoje andei de autocarro, o que é por vezes mais interessante do que passar rapidamente de automóvel pela rua, com a atenção fixa ao espaço à nossa frente. Com efeito olha-se para o lado, vêm-se pessoas conhecidas de vista, apreciam-se as conversas e os cumprimentos, incluindo os do motorista para com as pessoas que reconhece no passeio enquanto o sinal vermelho não abre. Esta carreira da Terroa e outras similares, em terras como Setúbal, funciona como carreira familiar, onde o motorista  e as pessoas se (re)conhecem das viagens de todos os dias. 

            Na Praça do Bocage há uma alva barraquinha estilo mourisco, inaugurada hoje, contendo as principais peças do Plano Director Municipal, agora em fase de discussão pública. Lá estava a minha querida directora , rodeada de alguns colegas nossos, que ainda de longe me fez  um correspondido aceno de mão com um sorriso de derreter o coração do mais incauto, aceno que se transformou numa amena cavaqueira quando cheguei ao pé deles e da barraquinha. 
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Setúbal, 1993.09.16/19

            Afinal ontem, 5ª feira, acabei por não ir à reunião sindical em Lisboa; o tempo estava chuvoso e mau para os meus inflamados gorgomilhos. E depois, perante a crónica indisponibilidade dum dos carros do sindicato, decidi não levar o meu velho R5. Coitado do senhor Rui, o electricista-auto, que foi trabalhar na manhã do feriado municipal, contra a minha opinião, para mo entregar a tempo, para eu não faltar à dita reunião.

            Mas hoje é que choveu mesmo, aumentando a minha rouquidão. Que linda despedida o Verão nos tem dado nesta arrancada final para o Outono! Ali a avenida Bento Jesus Caraça parecia um rio caudaloso e lamacento, com água pelo passeio, devido aos boeiros entupidos. Felizmente que me precavera previamente com as botas pelo que não precisei de andar com bote!

     Aproveitei a pasmaceira do serviço para terminar a organização dos negativos fotográficos e a relação das cópias a efectuar. Para além disso continuei a ler o manual de instruções e a praticar numa máquina de dactilografia eléctrica, que ainda não domino completamente. É mais complicada do que a que eu tinha no serviço e que desapareceumisteriosamente do meu armário e do edifício no verão do ano passado. Um dia destes quis escrever  na da Fátima [a secretária da chefe da divisão de planeamento urbanístico], mas apesar das breves explicações dela e do Carapeto, não dei conta do recado, pois não é á primeira que se dominam as funções todas, pelo que desisti e limitei-me a enviar á Maria do Mar um postal com vista para o Estuário do Sado e Península de Tróia. 

            O Rui e a Susana vieram para o habitual fim-de-semana quinzenal que passam comigo. Amanhã começam as aulas. Fiquei por Setúbal, fazendo o habitual: arrumar a casa, comprar e ler os jornais, lavar e estender a roupa, comprar víveres na cooperativa, ouvir música. Não me apeteceu ir a Lisboa, embora a minha velha amiga Musa d'Ante, regressada definitivamente do Parlamento Europeu, me tenha convidado para ir conhecer a casa que alugou em Benfica e comer uns hamburgers especiais. Também não me apeteceu aceitar o convite do Zé e da Madalena, um casal amigo do Seixal, para irmos jantar a casa deles hoje ou para irmos amanhã ao Barreiro ver a pastelaria que em sociedade com uma irmã do Zé abriram nesta cidade. Ando fatigado e não há meio de passar a inflamação nos gorgomilhos que me acompanha desde meados de Agosto e que com a chuvada piorou.

            O Rui anda todo orgulhoso porque lhe teria aparecido uma borbulha de acne no rosto, sinal  segundo ele de que já entrou na puberdade. Agora deu-lhe para experimentar penteados a ver qual lhe fica melhor. Já não bastava o orgulho na musculatura! 
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1993.09.20

    Amanhã vou reiniciar a minha aprendizagem com as folhas de cálculo (matemático), interrompida há semanas e recomeçada hoje com umas breves lições do Luís, oinformático do STAL. Entre as minhas actividades e responsabilidades extra-laborais  está a coordenação e participação num grupo de trabalho de quadros técnicos da Administração Local. Ora, antes de partir para férias, uma colega nossa ficou de trabalhar uns dados, para permitir a sequência do nosso trabalho relativo à reestruturação de carreiras e revisão do sistema retributivo.  Só que já lá vão umas seis semanas sem que ela tenha feito qualquer coisa, porque anda deprimida. De modo que tenho de ser eu a tratar do assunto, já que não posso permitir que as minhas depressões me façam andar pelos cantos durante muito tempo.

            Entretanto hoje resolvi fazer o que foi o terceiro bolo da minha vida, desta feita um bolo mármore. Das vezes anteriores foi pão-de-ló. O bolo come-se, não ficou muito mal.  De qualquer modo só poderei lavar a forma depois dele acabar, pois ficou agarrado ás paredes da dita cuja, apesar de untada com margarina (acho que faltou passar as paredes  com farinha). Para além disso a parte de cima não ficou nivelada, antes parecia o mar agitado em dia de vento, aos altos e baixos. Pois é, preciso é não perder a calma!

            A especialista em bolos é a Susana, mas ultimamente tem-se dedicado mais ásmousses de chocolate, que já deixei de apreciar, não por serem dela, que até tem jeito, mas porque antigamente gostava mais de doçarias.

            fim de semana passado, que ameaçava ter sido chuvoso, acabou soalheiro. No domingo á tarde fui com o Rui e a Susana ao Jumbo comprar material escolar para  ocaçula depois de termos ido a uma das salas de cinema do centro comercial ver um filme de que te falei anteriormente: Dennis, o Pimentinha, sobre as diabruras duma criancinhatraquinas. Embora me tivesse rido nalgumas cenas, achei o filme inferior a qualquer um dos da série Sózinho em Casa, não só porque nestes o miúdo/actor era mais expressivo, mas também porque nestes a história tinha mais consistência. Embora qualquer deles sejam filmes para miúdos cujo principal intérprete é uma criança, são  duma extrema violência sobre os bandidos, adultos, que sofrem autênticos tratos de polé. Mas a verdade é que o Rui e os seus amigos deliram com tais cenas de violência, muito semelhantes ás dos filmes de desenhos animados, sobretudo dos de origem  norte-americana que a televisão passa nos programas infantis.
            Foi um fim-de-semana relativamente folgado, pois à Susana deu-lhe o apetite de fazer todas as refeições por sua iniciativa. Quanto ao Rui, como já entrou na adolescência, cozinha as refeições dele quando não gosta do rancho da maralha. Claro que só fecho os olhos ás ementas do Rui para ele próprio porque fins-de-semana não são todos os dias a comer arroz de manteiga e douradinhos ou sandes de atum de conserva!

            Hoje tive visitas ao jantar: o Caló. Reparei que também  utiliza muito o Victorquando fala comigo, tal como sucede com a filha da Maria do Mar. Aquele devia ir para diplomata: oferece-se para ajudar-me, pergunta-me pelo Rui, pela Susana e pela minha mãe, elogia a minha comida ...
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Setúbal , 1993.09.22

            Escrever  e telefonar e são modos de estar com outrem ou com a Maria do Mar. Mas depois ... As cartas levam muito tempo a chegar e por vezes não há retorno escrito nem são motivo de conversa telefónica ou presencial. 

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Setúbal, 1993.09.25/26

            Desta vez é que fui mesmo ao tapete, usando a gíria do pugilismo. Pois é, desde 5ª feira passada (23 Setembro) que mal me aguento nas canetas, pelo que na 6ª voltei ao médico, que me queria passar um atestado para ficar em casa, decisão que adiei para 2ª feira (27 Setembro). Está um fim de semana bonito, soalheiro, grande parte do qual passado a dormitar, eu que normalmente não consigo dormir de dia e que me deito já quando a noite vai alta. Porque me sentia bastante embaixo  ainda telefonei à minha vizinha Estrela para me comprar pão, fruta e os jornais, mas como ela já saíra tive de meter-me no carro para ir ao Jumbo abastecer-me. Mas hoje, embora zonzo, lá saí novamente á hora de almoço para comprar o jornal.

            Isto dos médicos é uma ova, porque amigos amigos, negócios á parte. Claro que a médica deveria ter-me auscultado quando a consultei no regresso de férias, porque lhe dissera que tinha estado com problemas na garganta durante férias, que tentara resolver com auto-medicamentação. Como o não fez, uma semana depois estava lá  (re)caído,descobrindo então a lástima em que eu tinha a garganta e os brônquios. No entanto, na semana seguinte tive de lá voltar, á consulta não dela mas do marido, porque não estive para passar o fim de semana com violentos ataques de tosse. De modo que  o médico decidiu-se pelos antibióticos e uma radiografia. Tudo bem, só que cada consulta é paga, pelo que um tipo que já não tem amor aos médicos (e ás médicas) não fica muito encantado com as recaídas ou tratamentos deficientes [...]
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            Disse um dia destes que relera com emoção um poeta que é o Eugénio de Andrade  Dou comigo a relê-lo com uma certa tristeza. Porque afinal muitos dos poemas do Eugénio de Andrade expressam não a plenitude da alegria do amor alcançado mas a nostalgia do que se perdeu ou não alcançou.

            A propósito, noutra ocasião, por lapso, escrevi "Prefiro o amor á amizade ... " quando o que deveria ter saído seria "Prefiro a amizade ao amor".  Mas hoje não me apetece dissertar sobre este tema.

            Houve na minha vida dois breves tempos de grande alegria, libertação e crença numa vida diferente: os meses a seguir ao 25 de Abril, (quando a alegria e a solidariedade andavam no ar e em cada esquina), e as primeiras semanas de 1986,  (quando [após o neu divórcio] reatei relações com velhos amigos e  amigas e "encontrei" a Maria do Mar). Mas não se concretizaram as promessas que eles continham e hoje está de novo este tempo cinzento e fechado que  me cerca. Um tempo retratado num velho poema meu de 1985. 

            Notícias do Bloqueio II

Estão suspensas as palavras
Proibidos os gestos
                        de ternura, amizade e amor.
            O silêncio invade as ruas
                        entra nas casas
                        senta-se á mesa da gente.
            Que sentido tem dizer
                        amor
                        amiga
                        camarada
                        companheiro?
            Que sentido tem
                        abrir as mãos e os olhos
                        e perguntar qual o significado do
                        que vemos, ouvimos, entendemos e sentimos?
            Gaivotas loucas, alvoraçadas, enchem os ares
            de movimento e ruído
            enquanto a vida escorre pelos dedos
                        indiferente
                        medíocre
                        submissa.
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O domingo está passado. Para além da janela envidraçada, o negrume da noite pontilhada de luzeiros e reflectindo as estantes cheias de livros. Liguei o televisor aqui do escritório, que transmite uma telenovela, para dar notícia do começo de mais um episódio da 6ª série de O Polvo, sobre a Mafia Italiana.

Passei o fim de semana metido em casa. Apenas o Caló por cá apareceu á tarde, para ver e interrrogar-me sobre as fotografias e ver no vídeo filmes de desenhos animados do Walt Disney. Quando me preparava para regar as plantas ofereceu-se para fazê-lo, mas não jantou cá, pois entretanto a madrasta veio buscá-lo.
1.
Com os meu dedos
sigo lentamente os teus lábios
            Uma leve brisa agita o teu olhar
            e não sei bem se é um pássaro
                                   ou uma flor
            o sorriso que nasce no teu rosto.
            Será noite
ou uma criança  a navegar?

vem de  (a poesia nas palavras em setembro 09) - dispersos 01
epistolário 006 - As palavras segundo Eugénio de Andrade e Victor Nogueira

continua em ( a poesia nas palavras em setembro 11 ) - 2013 B &nb

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