Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

.

Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

.

Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

terça-feira, 27 de março de 2018

Histórias com o Caló




Histórias com o Caló
* Victor Nogueira

Hoje veio visitar-me o Caló, um miúdo que mora aqui no Largo e anda aí pelo prédio a pedir esmola e que asila aqui muitas vezes para jantar e ver filmes de desenhos animados ou banda desenhada. É um miúdo com dez anos, delicado e simpático (mas também com a escola da vida), muito franzino e parecendo por isso mais novo, embora tenha um rosto envelhecido, cujo pai, segundo ele, é pastor. Por vezes, ao fim de semana, aparece arranjado, mas isto não é regra nos restantes dias, talvez porque a madrasta não lhe ligue muito, embora esta não ande mal cuidada, quando por vezes aparece a procurá-lo; no princípio era todo machista, mas agora oferece-se para pôr a mesa, lavar a loiça e regar as plantas. As pessoas escorraçam-no ou não lhe devem dar muita atenção, por ser pobre e pedinte, pelo que ele diz a toda a gente que eu sou o maior amigo dele.

Hoje anda por aí muito feliz e risonho, admirado com as magias do Rui e para as quais me vem chamar a atenção com frequência. (MMA - 1993.08.15)

Bem daqui a pouco vou interromper para ver um filme policial na televisão. Entretanto apareceu o Caló, o miúdo de quem falei em tempos, para visitar o grande amigo dele, que sou eu. Abancou ali numa cadeira a ver fotografias, comentando-as em voz alta, com perguntas e grandes exclamações. Agora fez uma interrogação enorme por causa dum bicho que nunca tinha visto: um perú. Entretanto viu umas fotografias de esculturas feitas pelo meu irmão e diz que não acredita que ele as tenha feito, respondendo que não, que não me estava a chamar mentiroso, mas lá que não acreditava, não acreditava, acrescentando Mas o meu pai sabe desenhar. Vai daí, disse-lhe: Eu não sei desenhar nem cuidar de ovelhas como o teu pai mas escrevo melhor que ele. Não acreditou. Que escrevesse Fernando ali num papel. Disse-lhe, apontando para o meu volumoso livro de poemas: Então não vês que escrevi aquele livro?. Respondeu-me: Ah! mas isso não é escrever, isso foi feito no computador. Claro que para o Caló não saberei escrever, tanto mais quanto ele não será capaz de ler os meus hieroglifos. Depois perguntou-me onde é que eu trabalhava e respondi-lhe que na Câmara. Exclamou ele: Ah! Apanhas o lixo! No prédio dele mora um cantoneiro de limpeza do Município, o Ramiro. Respondi-lhe que não, que trabalhava num escritório, o que nada lhe terá dito pois não deve conhecer a palavra e muito menos o que faz um sociólogo. Enfim! (MMA - 1993.09.10/11)

Hoje tive visitas ao jantar: o Caló. Reparei que também utiliza muito o Victor quando fala comigo, tal como sucede com a filha da Maria do Mar. Aquele devia ir para diplomata: oferece-se para ajudar-me, pergunta-me pelo Rui, pela Susana e pela minha mãe, elogia a minha comida ... (MMA - 1993.09.20)

Passei o fim de semana metido em casa. Apenas o Caló por cá apareceu à tarde, para ver e interrrogar-me sobre as fotografias e ver no vídeo filmes de desenhos animados do Walt Disney. Quando me preparava para regar as plantas ofereceu-se para fazê-lo, mas não jantou cá, pois entretanto a madrasta veio buscá-lo. (MMA - 1993.09.25/26)

Um dia destes dei pela falta dum velho binóculo de teatro, que era da minha avó materna e tinha ali na sala. O Caló negou que o tivesse levado, mas sugeri-lhe que procurasse bem lá em casa pois poderia ter caído para o saco sem ele dar por isso. E hoje bateram à porta e lá estava a figura franzina e envelhecida do miúdo, com um enorme sorriso de alegria quando me viu. Mas perguntei-lhe pelo binóculo e ele respondeu-me que o não encontrara, apesar de tê-lo procurado pela casa toda (dele). Observei: se não levaste o binóculo, porque o foste procurar? ao que me respondeu com um ar muito sério e convicto que o não havia tirado e que o tinha procurado em casa porque eu dissera que ele poderia ter caído para o saco sem ele dar por isso. Disse-lhe então que não viesse a minha casa enquanto o binóculo não aparecesse. Olha, o miúdo ficou com um ar tão triste, os ombros alquebrados numa enorme fragilidade, que eu tive pena dele. E depois pediu--me um pacote de leite para o irmão mais novo mas tive de dizer-lhe que não podia dar-lhe um pacote de leite e comida todos os dias. E assim se meteu no elevador. Não posso garantir que foi ele que levou o binóculo, mas de qualquer modo terei perdido a única pessoa que me vinha visitar, para além da vizinha Maria, que falava comigo e me fazia companhia ao jantar, me regava as plantas e ajudava a pôr a mesa e a lavar a louça. (MMA - 1993.09.26)

Tive duas visitas: o Caló e um irmão, que vieram pedir um pacote de leite e a quem além disso dei dois chocolates. (MMA - 1994.01.01)

Victor Nogueira in RETRATOS

Nunca mais soube do Caló: desapareceu, simplesmente.

Sobre o Caló (falar cigano)
Sobre o povo cigano no Brasil ver:



crianças no bairro azul da belavista, em setúbal


foto victor nogueira -- crianças no bairro azul da belavista, em setúbal

Nas minhas deambulações em Portugal não poucas pessoas, especialmente crianças, me pedem para fotografá-las. Na maioria dos casos dava-lhes posteriormente as cópias indo a casa delas ou enviando pelo correio.embora neste caso nunca me acusassem a  recepção. Mas havia adultos que pretendiam apenas ser fotografados, como se daquele modo ficasse o registo para a eternidade. 

Esta é uma das fotos de que gosto imenso. O olhar fixo na câmara, de expectativa, o alheamento total de tudo o resto, o gesto como que protector da miúda relativamente à criança central...

Sem comentários: