(texto e fotos, excepto as que representam os quadros de Malhoa e a Virgem do Leite e a escultura da Senhora do Ó)
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Quem não conhece o São Martinho, da castanha assada e do bom vinho? Conhecer, conhecer, talvez não, pois há muito que a ter existido se transformou em pó e cinzas.
Quem não se lembra dos homens das castanhas, com os seus “carros” ambulantes, puxados à mão ou atrelados a uma motoreta, com os fogareiros fumegantes nas esquinas das povoações, vendendo-as em cartuchos cónicos de papel de jornal ? "São quentes e boas!", entoam os/as vendedores/vendedeiras. Mas hoje em dia o preço das castanhas, muitas estragadas, está pela hora da morte. Enfim ... adelante.
Também há o Verão de S. Martinho, mas a tradição já não é o que era. Aqui nestes dias entre Lisboa e Setúbal o tempo tem estado frio, cinzento, chuvento, por vezes aguaceiroso. Com algumas abertas soalheiras, de sol de inverno, com céu azul coalhado de nuvens brancas. Bom para fotografias, incluindo o pôr-do-sol.
S. Martinho foi também imortalizado num célebre quadro do pintor José Malhoa, com vasta obra exposta num dos museus das Caldas da Rainha. E perto desta ficam Óbidos e o seu afamado e saboroso licor de ginja, que nada tem a ver com as mistelas dos supermercados. Já agora, Óbidos é uma encenação, pois a vila foi completamente arrasada pelo terramoto de 1755, que destruiu completamente inúmeras povoações da Beira Litoral até ao Algarve, muito, mas muito para além de Lisboa. E perto desta vila, atravessando a serra do Bouro, desembocamos na povoação de S. Martinho do Porto e a sua “concha” lagunar. Aqui, numa das minhas eternas andanças e “peregrinações” de photoandarilho, encontrei a imagem dum cavalo branco num quadro em destaque no altar mor duma igreja. Bem, o cavalo está acompanhado de S. Martinho e do mendigo que seria Cristo, segundo reza a lenda. Como esta cena insólita uma outra, num altar da Igreja da Misericórdia duma vila Alentejana, num painel de azulejos, uma sereia de seios ao léu.
É verdade que outrora em muitas igrejas católicas havia representações escultóricas ou em quadros da Senhora do Ó, representado a Virgem com um seio desnudo amamentanto o Menino, mas esse culto foi proibido e muitas das representações destruídas, devido à "pudibundícia" e misogenia da Igreja Católica, seus sacerdotes e respectivas hierarquias. A tallhe de foice, é contraditório o culto e eudeusamento, idólatra, católicos da Virgem Maria, que teria concebido por obra e graça do Espírito Santo, e a menorização e diabolização das mulheres, de carne e osso. Incluindo Eva, que em meu entender teve o enorme mérito de quebrar a submissão do homem e libertá-lo dos dogmas e questionarem o Mundo, o Bem e o Mal, incluindo Deus e a "ordem" divina, em si inquestionável. Uma vez mais .... adelante.
E, do meu inacabado Livro de Viagens. as notas em torno de S. Martinho do Porto
Da Foz do Arelho, nas terras da Rainha, a S. Martinho do Porto, nas terras do Mosteiro [de Alcobaça] de que foi granja, podemos seguir pelo cume da Serra do Bouro, cuja altitude é de apenas 162 m, sobranceiro ao mar, primeiro caracterizada por ser ventosa, com vegetação rasteira, inóspita, que vai dando lugar a arvoredo à medida que nos aproximamos de S. Martinho. Não obstante o deserto, na encosta norte até ao vale existem alguns casais, como o de Celão e o das Cidades, de ruas ingremes, estreitas e casas arruinadas. Alguns moinhos estão reconvertidos em residências. No Cabeço da Vela, à berma da estrada, uma enorme eira, reconstruida recentemente.
Numa povoação que um velho mal-humorado me diz ser a da Serra do Bouro, registo nomes de ruas como a das Hortas, da Prata, do Loureiro, do Centro Social, do Chafariz e dos Quintais. Em Casal Celão reparo na rua dos Ribeiros. (Notas de Viagem, 1998.02.09 e 24)
Vagueando de noite pela serra, deparamos com o que resta da estação do caminho-de-ferro, perdida num ermo, um barracão de madeira longe da povoação. Da estação resta apenas este fantasmagórico armazém e no chão a marcação do edifício demolido e roseiras do jardim que outrora alindavam o local. Nesta existe uma pequena igreja branca, adjacente ao cemitério e a um coreto de betão armado, com coberto. (Notas de Viagem, 1998.02.24)
S. Martinho do Porto
Chove desalmadamente na noite em que vamos a S. Martinho do Porto, em baia conchiforme que figura num azulejo à entrada da povoação, em curva apertada onde não se pode parar o carro, pelo que sigo caminho. A chuva não convida a passeios pedestres e da povoação retenho as ruas molhadas, a iluminação, as casas ao longo da baia e outras pela encosta acima.
De dia noto que os cabeços das colinas em volta estão cobertos de moinhos, muitos com ar de abandono. (Notas de Viagem, 1997.10.26)
Por acaso, doutra feita, sigo por uma rua acima e tenho uma surpresa agradável, pois vou ter ao centro antigo da povoação, que afinal não se resume à estrada marginal. Esta parte tem algumas parecenças com Aljubarrota, na brancura das casas e na estreiteza das ruas; num largo que pouco mais é que o alargamento duma rua encontra-se a incaracterística Igreja Paroquial de S. Martinho. Insolitamente, no altar mor, um enorme quadro representa S. Martinho ... e o seu cavalo branco! Nunca tal vira, a imagem dum animal no altar‑mor! Mais adiante, em direcção à baia, um fontenário amarelo, mandado construir no século XIX com o legado de José Bento da Silva, personagem que reaparece mais adiante, num aprazível largo sobranceiro ao mar.
O que há de notável nesta povoação, procurada pela burguesia para banhos, é o mostruário de variados estilos arquitectónicos, de várias épocas, que se encontram ao percorrer as suas ruas.
Prosseguindo a subida. em busca do pôr-do-sol, subimos ao Monte do Facho, algo inóspito, donde se avista a entrada da barra e, mais adiante, S. Martinho e Salir do Porto. (Notas de Viagem, 1998.02.09 e 24)
Salir do Porto
Foi esta povoação porto de mar e estaleiro naval, até que o assoreamento da barra transferiu esta função para S. Martinho, povoação fronteira, que sofreu o mesmo destino sem que pudesse transferir aquelas funções. O mar já não vai terra adentro, até Alfeizerão e à Cela, e a concha de S.Martinho é alimentada por um modesto riacho que passa por entre as dunas de areia.
A povoação, que foi outrora importante e pertencia às terras da Rainha, hoje é mais modesta e à noite uma e outra reflectem as suas luzes no negrume da escuridão. Um parque de campismo por entre as dunas, que me parece não ter condições, não constitui concorrência ao cosmopolitismo da povoação que lhe fica defronte.
Pelas ruas ingremes ascende-se a um pequeno largo ajardinado em escadaria, no topo do qual se situa uma bica. Mais para cima sobressai a brancura da Igreja, no topo duma pequena escadaria. (Notas de Viagem, 1998.02.09)
Os pescadores de Salir do Porto, nas terras da Rainha, estavam obrigados a manter um determinado número de caravelas para pescaria e a fornecer ao rei 1/3 do pescado, para que este e sua comitiva pudessem sobreviver durante as estadias no Paço da Serra d'el Rey ou no de Monte Real. (Notas de Viagem, 1997.12.05 e 1998.02.23)
Neste mapa se localiza a região atrás referida, incluindo os Coutos do Mosteiro de Alcobaça. Não figura Óbidos, a SE das Caldas da Rainha, que fazia parte das Terras da Rainha. No canto superior direito a partir da "concha" de S. Martinho, encontram-se os coutos de Alfeizarão e da Cela, até onde chegavam as águas oceânicas e os barcos. Se quiseres viajar pelos coutos de Alcobaça e cercanias, segue este camnho:
entre as caldas e óbidos 01
entre as caldas e óbidos 02
entre as caldas e óbidos 03
de caldas a benedita e rio maior passando pelos coutos de alcobaça
por alcobaça 01
por alcobaça 02
por alcobaça 03
por alcobaça 04
por alcobaça 05 e nazaré
E para terminar, "o homem das castanhas", um poema de Ary dos Santos cantado por Carlos do Carmo:
* Ary dos Santos - O Homem das Castanhas
Na Praça da Figueira,
ou no Jardim da Estrela,
num fogareiro aceso é que ele arde.
Ao canto do Outono,à esquina do Inverno,
o homem das castanhas é eterno.
Não tem eira nem beira, nem guarida,
e apregoa como um desafio.
É um cartucho pardo a sua vida,
e, se não mata a fome, mata o frio.
Um carro que se empurra,
um chapéu esburacado,
no peito uma castanha que não arde.
Tem a chuva nos olhos e tem o ar cansado
o homem que apregoa ao fim da tarde.
Ao pé dum candeeiro acaba o dia,
voz rouca com o travo da pobreza.
Apregoa pedaços de alegria,
e à noite vai dormir com a tristeza.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
A estalarem cinzentas, na brasa.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
Quem compra leva mais calor p'ra casa.
A mágoa que transporta a miséria ambulante,
passeia na cidade o dia inteiro.
É como se empurrasse o Outono diante;
é como se empurrasse o nevoeiro.
Quem sabe a desventura do seu fado?
Quem olha para o homem das castanhas?
Nunca ninguém pensou que ali ao lado
ardem no fogareiro dores tamanhas.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
A estalarem cinzentas, na brasa.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
Quem compra leva mais amor p'ra casa.
Em tempo - no melhor pano cai a nódoa. Ao procurar pela iconografia, verifiquei que confundira a Senhora do Ó com a Senhora do Leite. Se o culto proibido foi o da primeira, da devoção das parturientes, a sua representação era a duma mulher pejada, em adiantado estado de gravidez, o que não estava muito de acordo com a pretensa virgindade da Senhora e seu emprenhamento pelos ouvidos, por obra e graça do Espírito Santo.
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