Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

O Cunha, alfarrabista em Luanda

* Victor Nogueira


No seu texto evocativo da Livraria Lello, em Luanda (1), o meu amigo e conterrâneo Fernando Pereira fala no Cunha, alfarrabista, e só assim fiquei a saber o seu nome completo e o nome da Livraria: «“Livraria Popular” de José Marques da Cunha»

Sobre o Cunha alfarrabista em Luanda tenho duas pequenas memórias escritas naquele tempo, que podem encontrar em "Retratos (2) - O Cunha, alfarrabista em Luanda"

* Victor Nogueira , (...) Lembras-te do Cunha? Em Luanda era um alfarrabista de corpo dolorido e disforme a quem os miúdos roubavam e provocavam. Cria em mim, esperava ainda ver o meu canudo de senhor doutor, dizia ser eu um jovem diferente dos outros e nunca o consegui convencer do seu erro; falávamos de ópera e ele trauteava as árias, falávamos do Camilo e do Zola e da enorme fortuna que ele teria se o os livros em stock fossem libras. O homem que não conseguiu ser ele mesmo, condenado a vender a abominável literatura de cordel. "Escreva-me, não se esqueça deste pobre velho!""Havemos de ver-nos nas Ferias Grandes! " O meu postal ficou sem resposta. O Cunha morreu, só, abandonado, como um cão! (Eu, que era seu amigo, nunca o convidara para a minha mesa). E nas tardes quentes e plúmbeas mais uma voz silenciou-se: os frigoríficos do Pólo Norte -Frimatic, o Rei dos Frigoríficos - substituem os livros que nunca foram libras! (1) ____________ 1 - Escrito em Évora, em 1969.03.16 (Num repelão) O Cunha havia falecido em fins de 66, princípios de 67. O "Notícias" de Luanda dedicou-lhe umas linhas, lastimando a sua morte e o egoísmo dos homens. Teriam posto em leilão os livros da livraria e a Casa dos Frigoríficos anexou a lojeca, perto da Sé. Ficou deste modo privado do seu único meio de subsistência. O seu sonho era vender tudo e regressar a Portugal (à Metrópole, como então se dizia). Gostaria de ter vendido bons livros, de ter sido um bom alfarrabista. E dizia-me, quando vim para Lisboa: "Escreva me, meu amigo, não se esqueça deste velhote. O senhor há de ser alguém!" (NSF - 1968.08.20) .
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Foto do post em memorias3
. Ao fundo à esquerda ficava a Cervejaria Polo Norte, na esquina, e à direita a loja dos Frimatic. No meio, no prédio mais baixo, ficava a loja do Cunha; à direita, a Igreja de N, Sra dos Remédios (Sé de Luanda), onde oficiava o Cónego Manuel das Neves, de que falei noutros posts, preso pela PIDE a seguir aos ataques do MPLA de 4 de fevereiro de 1961. Publicada por Victor Nogueira à(s) sábado, outubro 13, 2007
(1) Fernando Pereira, "FECHOU A LELLO", 

Sobre o Cunha escreve Fernando Pereira: «É da mais elementar justiça falar da “Livraria Popular” de José Marques da Cunha, numa loja pequenina na ex-“Av. dos Restauradores de Angola”, e que foi durante muito tempo o único alfarrabista de Angola. No meio de um amontoado de livros saia sempre qualquer coisa que o Senhor Cunha convencia o meu pai a comprar, por “dez reis de mel coado” , como diria o mestre Aquilino Ribeiro. O Senhor Cunha desapareceu e a sua livraria fechou há muitas décadas, mas cada vez que por ali passo olho para aquele lugar com a saudade de” um homem muito bom, mas que tinha tido pouca sorte na vida”, como ouvia dizer em Luanda nos meus tempos de descuidada meninice.»

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